Quem são os Lactobacilos?
Lactobacilos são bactérias gram-positivas, não formadoras de esporos, consideradas anaeróbias, mas tolerantes à presença de oxigênio, e que apresentam metabolismo fermentativo, com produção de ácido lático (Oberg et al., 2022; Zheng et al., 2020; Duar et al., 2017). Devido a esta distinta característica, fazem parte do grupo das Bactérias Ácido Láticas (BAL), e estão entre os primeiros microrganismos descritos na literatura científica, devido à sua participação na elaboração de leites fermentados, e aos benefícios promovidos à saúde de seus consumidores.
A descrição do gênero ocorreu no início do século XX, por Beijerinck (1901), e poucos anos depois, a influência destes microrganismos na transformação do leite em produtos fermentados foi comprovada pelo médico e microbiologista búlgaro Stamen Grigorov (Fisberg & Machado, 2015).
As pesquisas de Grigorov permitiram a identificação da bactéria responsável pela produção do iogurte, levando à denominação da espécie de Lactobacillus bulgaricus, em homenagem ao país de origem do pesquisador. Contudo, a popularização dos lactobacilos como microrganismos de interesse à produção de alimentos e à saúde ocorreu quase três décadas depois, graças ao médico e microbiologista japonês, Minoru Shirota.
Em seus estudos, desenvolvidos na Universidade de Medicina de Kyoto, Shirota identificou uma espécie probiótica, capaz de resistir à acidez estomacal, e se manter viável em grandes quantidades no intestino, competindo com bactérias patogênicas e prevenindo a ocorrência de infecções gastrointestinais (Tang & Zhao, 2019).
A espécie foi denominada Lactobacillus casei Shirota e graças a ampla divulgação dos benefícios à saúde promovidos pelo consumo de leites fermentados, e às ações de marketing da marca Yakult, estas bactérias foram popularizadas pelo inesquecível slogan dos “Lactobacilos vivos”, tornando-as provavelmente a mais conhecida do público geral.
O número de espécies identificadas se expandiu ao longo dos anos, e diversas classificações foram propostas desde então. Em função da grande diversidade genética e metabólica, e da heterogeneidade de nichos ecológicos colonizados pelos lactobacilos, uma nova organização taxonômica foi necessária, a partir da melhor definição e classificação das bactérias que exercem efeitos benéficos para a saúde.
Assim, em 2020, a partir de metodologias avançadas de caracterização genética, o gênero Lactobacillus, composto atualmente por 261 espécies, foi reorganizado. Apenas 35 espécies foram mantidas no gênero e as demais foram distribuídas em 23 novos gêneros dentro da família Lactobacillaceae (Zheng et al., 2020). A fim de facilitar a consulta da nomenclatura atualizada, a Universidade de Alberta, Canadá, disponibiliza uma ferramenta gratuita e online https://lactobacillus.ualberta.ca/.
Onde vivem?
A variabilidade genética destas bactérias permitiu sua adaptação a diversos ambientes ao longo da evolução, pela flexibilidade em realizar trocas de material genético. As fontes de isolamento de lactobacilos são abundantes e incluem superfícies de flores e outros vegetais, silagem, solos, hospedeiros invertebrados, como moscas e abelhas, além de hospedeiros vertebrados, como aves, roedores, animais de produção e humanos (Figura 1).
Além disso, estas bactérias podem ser encontradas no leite e dominam a microbiota da maioria dos alimentos fermentados, podendo atuar em alguns casos, como importantes deteriorantes de alimentos (Oberg et al., 2022; Duar et al., 2017; Dicks & Endo, 2014).
Apesar disso, exigências nutricionais específicas fazem com que algumas espécies, especialmente as envolvidas na fermentação de produtos lácteos, sejam mais adaptadas a ambientes específicos, enquanto outras podem ser chamadas de nômades, devido à facilidade em migrar e adaptar-se a novos hábitats (Zotta, Parente & Ricciardi, 2017).
Figura 1. Diversidade genética e de hábitats da família Lactobacillaceae, a partir da reclassificação taxonômica do gênero Lactobacillus. Os anéis externos fornecem informações sobre características genômicas e habitats inferidos da espécie, como adaptados a hospedeiros vertebrados (vermelho), adaptados a insetos (laranja), nômades (verde), de vida livre (azul) ou não atribuídos (branco). Os círculos preenchidos representam proporcionalmente o tamanho dos genomas.
Fonte: Adaptado de Zheng et al. (2020).
Como participam da elaboração de produtos lácteos fermentados?
A fermentação é um dos métodos de preservação mais antigos praticados pelo ser humano e consiste no catabolismo anaeróbico de carboidratos por microrganismos. A origem exata da primeira fabricação de produtos lácteos fermentados é difícil de ser estabelecida, mas pode datar de 10.000 a 15.000 anos atrás, quando o modo de vida dos seres humanos foi modificado da coleta para a produção de alimentos, nas regiões do Sudoeste Asiático e Europa Oriental (Binstis & Papademas, 2022).
Os leites de várias espécies de mamíferos usados para a fabricação de produtos lácteos fermentados diferem na composição química, incluindo diferenças significativas em parâmetros como sólidos totais, lactose, gordura, proteína e teor de minerais.
Podem ser encontradas, ainda, variações na composição química do leite de uma mesma espécie, associadas a condições geoclimáticas, a saúde animal, a raça, a alimentação, a estação do ano e a fase de lactação.
Segundo Tamang et al. (2020), o leite de vaca é a base para a maioria dos produtos lácteos fermentados em todo o mundo, contudo, o leite de outros mamíferos, incluindo ovelhas, cabras, camelos, éguas e búfalas pode ter sido historicamente mais importante e permanecer assim em certas regiões (Figura 2).
Naquele período, o processo de fermentação era desenvolvido por microrganismos naturalmente presentes no leite, sob o clima quente daquelas regiões, promovendo sua acidificação e alterações no aroma, sabor e viscosidade da matéria-prima original.
Gradualmente, as tribos nômades desenvolveram certas etapas do processo de fermentação e conseguiram controlá-lo, utilizando os mesmos recipientes, ou a partir da adição de leite fresco, contando principalmente com a microbiota autóctone para iniciar o processo fermentativo (Binstis & Papademas, 2022).
Figura 2. Produtos lácteos obtidos a partir da fermentação promovida por bactérias naturalmente presentes no leite de diferentes espécies animais.
Fonte: os autores.
Com o avanço do conhecimento viabilizado pela ciência moderna, os microrganismos envolvidos nos processos fermentativos puderam ser identificados, e aquelas espécies com características tecnológicas mais promissoras, foram selecionadas para uso industrial, na elaboração dos produtos que conhecemos atualmente.
Basicamente, a fermentação industrial de derivados lácteos pode ser feita de duas maneiras: com a adição de “culturas starter” — responsáveis por iniciar o processo fermentativo pela produção de ácido lático; ou com “culturas não starter” — que contribuirão com o desenvolvimento de outras características específicas do produto.
Neste contexto, bactérias do grupo BAL, são fundamentais na produção industrial de produtos lácteos fermentados. Particularmente, a participação dos lactobacilos na elaboração de leites fermentados é bastante conhecida e em muitos países, incluindo o Brasil, as legislações de alimentos exigem a presença de lactobacilos vivos e abundantes em iogurtes até o prazo final de validade, em uma contagem mínimas de 107 UFC/g (Oyeniran et al., 2020; Brasil, 2007).
Em culturas starter, os lactobacilos auxiliam no controle do pH dos fermentados, influenciando o desenvolvimento de outros microrganismos, promovendo alterações em proteínas e lipídeos, influenciando na textura do produto e na formação de compostos de sabor específicos.
Além disso, atuam como bioprotetores do alimento, por meio da produção de álcoois, ácidos orgânicos, dióxido de carbono, diacetil, peróxido de hidrogênio e outras substâncias capazes de inibir o crescimento de microrganismos indesejados (Yilmaz et al., 2022; Widyatstuti, Febrisiantosa & Tidona et al., 2021; Cavicchioli et al., 2015). J
Já os lactobacilos não “starter”, são microrganismos dominantes ao longo da maturação de alguns tipos de queijos. No Quadro 1, são apresentadas as principais espécies de lactobacilos associadas a produtos lácteos fermentados.
Quadro 1. Principais aplicações de Lactobacilos em produtos lácteos fermentados, conforme a nomenclatura proposta por Zheng et al. (2020).
Fonte: autores.
Agora que você conhece um pouco destes microrganismos tão fascinantes, tem ainda mais motivos para consumir os derivados lácteos fermentados e aproveitar todos os seus benefícios!
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Centro de Pesquisa em Alimentos pelo apoio ao ensino, extensão, pesquisa e sua divulgação.
Referências
BEIJERINCK, Martinus W. Anhaufungsversuche mit ureumbakterien. Zentralbl. Bakterol. Parasitenkd. Infektionskr. Hyg. Abt. II., v. 7, p. 33-61, 1901.
BINTSIS, Thomas; PAPADEMAS, Photis. The Evolution of Fermented Milks, from Artisanal to Industrial Products: A Critical Review. Fermentation, v. 8, n. 12, p. 679, 2022.
CAVICCHIOLI, Valéria Quintana et al. Genetic diversity and some aspects of antimicrobial activity of lactic acid bacteria isolated from goat milk. Applied biochemistry and biotechnology, v. 175, p. 2806-2822, 2015.
DICKS, Leon; ENDO, Akihito. The Family Lactobacillaceae: Genera Other than Lactobacillus. The Prokaryotes, p. 203-212, 2014.
DUAR, Rebbeca M. et al. Lifestyles in transition: evolution and natural history of the genus Lactobacillus. FEMS microbiology reviews, v. 41, n. Supp_1, p. S27-S48, 2017.
FISBERG, Mauro; MACHADO, Rachel. History of yogurt and current patterns of consumption. Nutrition reviews, v. 73, n. suppl_1, p. 4-7, 2015.
OBERG, Taylor S. et al. Invited review: Review of taxonomic changes in dairy-related lactobacilli. Journal of Dairy Science, 2022.
OYENIRAN, Ayowole et al. A modified reinforced clostridial medium for the isolation and enumeration of Lactobacillus delbrueckii ssp. bulgaricus in a mixed culture. Journal of dairy science, v. 103, n. 6, p. 5030-5042, 2020.
TAMANG, Jyoti P.; WATANABE, Koichi; HOLZAPFEL, Wilhelm H. Diversity of microorganisms in global fermented foods and beverages. Frontiers in microbiology, v. 7, p. 377, 2016.
TANG, Xin; ZHAO, Jichun. Commercial strains of lactic acid bacteria with health benefits. Lactic Acid Bacteria: Omics and Functional Evaluation, p. 297-369, 2019.
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YILMAZ, Birsen et al. Recent developments in dairy kefir-derived lactic acid bacteria and their health benefits. Food Bioscience, v. 46, p. 101592, 2022.
ZHENG, Jinshui et al. A taxonomic note on the genus Lactobacillus: Description of 23 novel genera, emended description of the genus Lactobacillus Beijerinck 1901, and union of Lactobacillaceae and Leuconostocaceae. International journal of systematic and evolutionary microbiology, v. 70, n. 4, p. 2782-2858, 2020