A concentração e a composição dos lipídios presentes no leite apresentam grandes variações em função de fatores genéticos (tanto em relação à espécie quanto a raça), fisiológicos (fase de lactação, idade, saúde e dieta) e ambientais (estação do ano e temperatura) (BUENO et al., 2017).
Geralmente, o teor de gordura no leite bovino é de aproximadamente 4,0% (m/v), mas pode variar de 3,0 até 6,0% (m/v), sendo composta por mais de 400 tipos diferentes de ácidos graxos com pontos de fusão (PF) variando de -75,0 a 72,0 °C.
Os ácidos graxos presentes em maior quantidade no leite bovino são o palmítico (PF de 62,9°C), o oleico (PF de 16,0 °C), o esteárico (PF de 70,1 °C) e o mirístico (PF de 54,4 °C). Assim, o PF da gordura láctea é uma combinação do PF dos diversos ácidos graxos presentes no leite, sendo que na temperatura corpórea do animal (~ 37 °C) a gordura do leite encontra-se no estado líquido e sob temperatura ambiente (~ 25 °C), no estado sólido (SIRAM et al., 2019).
Dessa forma, esses glóbulos possuem a interface com a maior tensão interfacial em relação à fase contínua do leite. A tensão interfacial é o excesso de energia livre de Gibbs que existe em determinada interface por unidade de área devido às interações desfavoráveis que ocorrem entre as moléculas de duas fases em relação às interações que ocorrem nas fases (DEWETTINCK et al., 2008; MCSWEENEY et al., 2020).
Composição da membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL)
Os glóbulos de gordura são envoltos por uma membrana fina conhecida como membrana do glóbulo de gordura do leite (MGGL) que compreende três camadas formando uma estrutura complexa que recobre cada glóbulo de gordura presente no leite sintetizado pelos mamíferos durante a fase de lactação (ORTEGA-ANAYA, et al. 2021). A MGGL originária na célula epitelial mamária é composta principalmente por proteínas e lipídios mais hidrofílicos (LH), incluindo glicerofosfolipídios e esfingolipídios.
Os LH da MGGL são compostos por diversos fosfolipídios, especialmente os glicerofosfolipídios e esfingofosfolípideos. Esses fosfolipídios possuem natureza anfifílica, ou seja, as suas estruturas possuem uma região mais hidrofílica e outra região mais hidrofóbica (Figura 2a). Os ácidos graxos compõem a parte hidrofóbica da molécula, enquanto a parte hidrofílica apresenta um grupo fosfato ligado a diferentes grupos orgânicos, como a colina, serina e etanolamina.
Na MGGL, essas moléculas anfifílicas encontram-se com a cauda hidrofóbica voltada para dentro do glóbulo e a cabeça hidrofílica para fora em contato com a fase aquosa (Figura 2b). Essa disposição possibilita interações intermoleculares com às duas fases diminuindo as interações desfavoráveis que existia entre elas.
Portanto, os componentes da MGGL reduzem a tensão interfacial entre os triglicerídeos e a fase aquosa promovendo aumento da estabilidade dos glóbulos de gordura na emulsão óleo/água do leite. Outros componentes da MGGL, como as glicoproteínas, também exercem esse efeito de redução da tensão interfacial.
Propriedades tecno-funcionais dos componentes da MGGL
Uma das funções primárias da MGGL é estabilizar os glóbulos de gordura no leite. No entanto, a natureza anfifílica dos seus componentes permite que eles adsorvam em diferentes interfaces do tipo hidrofílica/hidrofóbica com o objetivo de diminuir a tensão interfacial e reduzir a energia livre do sistema.
Dessa forma, o material da MGGL aumenta a estabilidade cinética de sistemas como espumas (interface água/ar) e emulsões (interface água/óleo e óleo/água). Portanto, as propriedades espumante e emulsificante desses componentes são muito úteis no processamento de vários produtos, como chantilly, sorvete, maionese, mousses, molhos para salada, salsichas, linguiças, pães e bolos.
O poder estabilizante dos componentes da MGGL tem alto valor tecnológico para as indústrias de alimentos e bebidas. Nesse sentido, uma maior compreensão da relação entre a composição, a estrutura e as funções da MGGL são essenciais para o desenvolvimento de ingredientes que apresentem MGGL em sua formulação.
Esses ingredientes podem ser obtidos a partir de coprodutos da indústria de laticínios, como o leitelho liberado durante a fabricação da manteiga que possui grande quantidade de material da MGGL. Além disso, a obtenção desses ingredientes é uma forma de aproveitar e valorizar o leitelho para sua utilização nas indústrias alimentícias para melhorar a dispersão de gordura em diferentes matrizes.
Ramos e colaboradores (2021) avaliaram formulações de sorvetes à base de leite com a adição parcial ou total de leitelho como substituto de leite desnatado. A formulação em que o leite desnatado foi totalmente substituído pelo leitelho foi a que apresentou melhores resultados para as análises físico-químicas de incorporação de ar (overrun) e derretimento.
Esses resultados foram associados à maior capacidade emulsificante do leitelho em comparação com o leite desnatado devido ao maior conteúdo de fosfolipídeos (provenientes da MGGL) presente no leitelho.
Além disso, as análises sensoriais revelaram que o sorvete fabricado a partir dessa formulação foi o mais aceito e com melhor intenção de compra. Portanto, o leitelho é indicado como um excelente substituto de leite desnatado em formulações de sorvete.
Além das funcionalidades tecnológicas, a maioria dos componentes da MGGL, especialmente fosfolipídios e proteínas, são considerados interessantes devido aos seus possíveis efeitos benéficos à saúde humana.
A Tabela 1 apresenta alguns desses efeitos associados aos componentes da MGGL. A MGGL também está relacionada a diversos processos moleculares que ocorrem na interface dos glóbulos de gordura, como a adsorção de bactérias e enzimas (lipases) e a digestão dos lipídios do leite por enzimas.
Outra função primária da MGGL é favorecer a digestibilidade da gordura por um recém-nascido. Além disso, muitos estudos têm mostrado que o consumo de LH presentes na MGGL tem impactos positivos na saúde humana, como uma grande proporção de esfingomielina (> 25% de lipídios polares) em comparação com outras fontes de lipídios polares na dieta e a presença de glicoproteínas. A esfingomielina é associada à melhora do desenvolvimento neuronal em bebês e proteção de neonatos contra infecções bacterianas (ORTEGA-ANAYA et al., 2021; ORTEGA-ANAYA, 2019).
A proteína é outro componente importante encontrado na MGGL que, dependendo da fonte, pode representar 25 a 70% (m/m) do seu material. As proteínas são essenciais na participação da secreção do leite, auxilia nas funções benéficas que os glóbulos de gordura do leite promovem na saúde humana, além de desempenharem papel importante em vários processos celulares e mecanismos de defesa no recém-nascido. Por exemplo, algumas proteínas da MGGL inibem o crescimento de células de câncer de mama e regulam doenças autoimunes (ZHAO et al., 2019; DEWETTINCK et al., 2008).
Nos últimos anos, as empresas de fórmulas infantis começaram a introduzir ingredientes com MGGL em suas formulações devido aos seus efeitos positivos sobre o desenvolvimento cognitivo e maturação intestinal. Além disso, o entendimento de como a MGGL influencia na microbiana intestinal de bebês tem ganhado a atenção de pesquisadores (FONTECHA et al., 2020).
Evidências recentes demonstraram que a suplementação com MGGL aumenta a abundância de bactérias benéficas no intestino, como bifidobactérias e algumas espécies de bactérias do ácido láctico relacionadas à redução de diversas doenças, como diabete do tipo I e II, hepatite B e obesidade (ANTO et al., 2020).
Assim, diante das potencialidades tecno-funcionais da MGGL, é importante o desenvolvimento de estudos que viabilizem a aplicação dos seus componentes pela indústria, permitindo que seus benefícios cheguem aos consumidores.
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