Uma empresa de laticínios que deseja crescer e se consolidar no mercado precisa ter previsibilidade do seu processo produtivo e principalmente padronização do produto. Quando um cliente retorna para comprar um produto lácteo, ele deseja encontrar o mesmo produto ou algo bem próximo do comprado anteriormente.
A importância da padronização na indústria queijeira está ligada à fidelização do cliente que espera um padrão definido, tanto de sabor, maturação, corpo, cor e textura, como das propriedades funcionais. Industrialmente, a padronização está diretamente ligada ao atendimento à legislação, rendimento industrial e regularidade do comportamento do produto ao longo de sua vida útil. Dessa forma, a padronização do leite, do processo e consequentemente do produto representa uma estratégia de mercado.
O que mais diferencia os queijos industriais dos artesanais é realmente a possibilidade de padronização dos produtos devido principalmente às facilidades encontradas na indústria. Particularmente, nos últimos anos, temos presenciado uma evolução muito grande na indústria de queijos do Brasil e do mundo, com investimentos em automação, equipamentos, embalagens, revestimentos, prensas, concentração por membranas, entre outras. No entanto, no nosso país percebe-se ainda pouca ou nenhuma evolução na padronização do leite para a fabricação de queijos.
Apesar de ocorrer a preparação do leite para fabricação de queijos, esse leite está muito longe de ter realmente um padrão de composição, pois a padronização não se resume apenas no acerto do teor de gordura, que é realizado para cada tipo de queijo na maioria das indústrias.
Como consequência da falta de padronização do leite adequadamente, a tecnologia de fabricação de queijo precisa ser modificada para compensar as alterações frequentes na composição do queijo, principalmente em relação ao teor de umidade.
Esta falta de regularidade em relação à composição do leite pode gerar também perdas de constituintes, principalmente proteína e gordura, e consequentemente diminuição de rendimento, o que impacta na viabilidade econômica, sem falar nas alterações no produto final.
Com a padronização correta pode-se diminuir a variação natural do leite e também do queijo, principalmente no teor de umidade, e evitar problemas tanto de composição e atendimento à legislação, como de propriedades tecnológicas.
Atualmente, com a consolidação da tecnologia de membranas na indústria de laticínios, pode-se modificar a composição do leite de modo a melhorar seu comportamento tecnológico e aumentar o aproveitamento dos componentes do leite na fabricação de queijos, melhorando, assim, o rendimento técnico e a viabilidade econômica.
A alteração da composição do leite para a fabricação de queijos, além de objetivar o melhor rendimento, pode também variar em função do valor de mercado obtido com a venda dos derivados, como no caso do valor comercial do leite, creme, soro e do próprio queijo.
Por exemplo, dependendo do tipo de queijo a ser fabricado pode-se trabalhar com uma faixa de teor de gordura mais ampla, principalmente quando se pretende melhorar o rendimento ou priorizar alguma propriedade funcional como o fatiamento. Dessa forma, a decisão técnica pode que vir associada à uma decisão de valor de mercado do derivado lácteo. Por exemplo, se o preço do creme está em alta poderia trabalhar com o teor de gordura menor no queijo visando a obtenção de mais volume de creme.
No entanto, se o valor do queijo é maior e ele é de consumo direto, ou seja, não precisa de fatiamento ou outra propriedade de um queijo mais firme, pode-se trabalhar com um teor de gordura maior no leite visando um melhor rendimento, mesmo com a possibilidade de uma maior perda de gordura no soro quando se trabalha com leite mais gordo. Dessa forma, a composição do leite está ligada às variações do mercado e consequentemente influenciam na lucratividade da empresa.
Temos que lembrar sempre que a composição do leite varia ao longo do ano, com uma variação sazonal natural no teor de caseína e gordura do leite que impacta na relação caseína/gordura do queijo. Dessa forma, se mantivermos o mesmo teor de gordura no leite como é feito na maioria das fábricas no Brasil, teremos um impacto grande na composição do queijo e principalmente na consistência do produto final.
Ou seja, se o teor de caseína cai, a relação também reduz e o impacto na textura do queijo será a perda de consistência e o amolecimento. Esse tipo de variação irá influenciar também na maturação do queijo, que será mais acelerada impactando também nas propriedades funcionais do mesmo.
Por exemplo, mesmo com um leite de conjunto (mistura de vários leites de diferentes produtores), existem épocas do ano em que o teor de proteína (caseína) é maior e consequentemente a relação caseína/gordura será maior e o impacto na textura será de um queijo bem mais firme.
Por outro lado, em épocas quando o teor de caseína é menor, teremos queijos menos firmes e mais moles havendo necessidade, muitas vezes, de ajustes na umidade do queijo no processo de fabricação para contrabalancear a diminuição da proteína e com isso diminuir o amolecimento do queijo.
Uma outra forma de evitar alterações do produto nessas épocas seria a padronização da relação caseína/gordura ou a adição de proteína no leite por meio de uma fonte de proteína (caseína), como o MPC (concentrado proteico de leite) ou por meio da concentração do leite por membranas para a fabricação de queijos.
Em resumo, quando falamos de padronização do leite e do produto final deve-se trabalhar não somente pelo acerto do teor de gordura para cada tipo de queijo, mas também pelo acerto do teor proteínas, sais minerais, lactose e fermentação, entre outras variáveis.
A padronização da gordura em relação à proteína do leite (caseína), da gordura no extrato seco do queijo (GES) e da umidade desengordurada do queijo (UDQ ou UMDQ) são aspectos relativamente simples de serem entendidos e aplicados até mesmo nas pequenas e médias fábricas de queijos e serão abordados neste artigo.
Outros aspectos tecnológicos como tamanho do grão no corte, os tempos de processamento, fermentação, tamanho do tanque de fabricação, bem como a padronização do processo produtivo como um todo são pontos igualmente importantes que devem ser monitorados em cada etapa para se alcançar uma produção mais padronizada nas indústrias de queijos. No entanto, serão abordados em outro artigo.
A padronização da relação caseína /gordura na fabricação de queijos
A padronização da relação caseína/gordura é uma importante ferramenta que permite reduzir diferenças sazonais que irão refletir tanto na qualidade do queijo quanto no rendimento da fabricação. A grande maioria das indústrias de queijos tende a fixar somente o teor de gordura do leite destinado à fabricação de cada tipo de queijo. No entanto, o teor de proteína, principalmente caseína, também varia ao longo do ano dependendo da disponibilidade de alimento do gado que varia, principalmente, em relação ao período do ano.
A variação sazonal do teor de proteína do leite tem forte influência nas propriedades funcionais dos queijos e, se realizarmos somente a padronização do teor de gordura, não conseguiremos uma regularidade na composição, textura, maturação e diversas propriedades importantes, podendo ter até dificuldade de enquadramento na legislação.
A rotina de padronização da relação caseína/gordura é muito eficaz nas fabricações de queijos, no entanto é necessário a determinação do teor de caseína do leite (McSWEENEY, 2007). O método oficial para análise de caseínas é o de Kjeldahl, mas, é impraticável em análise de rotina decisória nos laboratórios das queijarias devido à sua complexidade, pois precisamos de resultados em pouco tempo.
Neste contexto, o método do formaldeído também conhecido como método do formol, descrito por Silva et al.(1991), apresenta de forma prática resultados com alta correlação com o método de Kjeldahl, em pouco tempo (entre 30 a 40 minutos) (COSTA, et al., 2021).
Na prática, a grosso modo, a padronização da relação caseína/gordura funciona da seguinte forma: em um silo com determinado volume de leite que vamos utilizar para a fabricação de queijo devemos primeiro determinar o teor de caseínas do leite pelo método do formol.
Logo após, utilizamos a relação caseína/gordura específica ou o intervalo definido para cada tipo de queijo, sendo que este valor pode ser definido em função do conhecimento prévio da composição do melhor queijo em termos de propriedades funcionais e rendimento ou extraído da literatura. Diante do valor desejado para a relação caseína/gordura, calcula-se o teor de gordura no leite que será padronizado.
Por exemplo, se fabricarmos queijo Prato, a relação C/G para esse queijo precisa estar entre 0,71 a 0,74 (COSTA JUNIOR, 1999). Se o teor de caseína do leite no silo for 2,4% (m/v) e queremos obter uma relação de 0,73 podemos proceder da seguinte forma:
C/G = 0,73
G = C / 0,73
G = 2,4%/0,73
G = 3,3%
Então, basta padronizar o leite para 3,3% de gordura que atingiremos a relação desejada e, consequentemente, a padronização do queijo, sem precisar de grandes habilidades do queijeiro para realizar certos ajustes durante o processo e que talvez não seriam suficientes para alcançar uma regularidade na produção.
Landin et al. (2022) compararam as relações C/G com as propriedades funcionais do queijo Prato, avaliando derretimento, óleo livre e fatiabilidade. Neste estudo, percebeu-se que a relação caseína /gordura de 0,68 apresentou maior de derretimento e liberação de óleo livre em comparação com a relação de 0,76. Assim a relação C/G pode ser utilizada também para alcançar as propriedades funcionais desejadas, além de padronizar a produção.
O controle da Gordura no Extrato Seco (GES) e da Umidade Desengordurada do Queijo (UDQ ou UMDQ)
A importância da padronização da GES no queijo está ligada as questões mercadológicas, de rendimento e também na orientação do consumidor para a compra de um produto mais ou menos gordo. Padronizar a GES representa também padronizar o sabor devido ao teor de gordura (ação lipolítica na maturação), corpo e textura do queijo.
A GES não se altera no decorrer da maturação, por esse motivo é feita a padronização dessa variável e não somente da gordura do queijo. Já a perda de umidade é um fenômeno natural em qualquer tipo de queijo durante esse período e tem como consequência, o aumento do percentual de todos os demais componentes sólidos do produto.
A legislação regula o também o teor de umidade no queijo, dessa forma trabalhar para alcançar maior umidade pode ser uma estratégia interessante do ponto de vista de rendimento econômico para algumas empresas, mas esta variável sozinha não tem grande importância tecnicamente em termos de padronização.
O teor de umidade de um queijo deve ser compatível com suas características funcionais e sensoriais. No entanto, na rotina de uma fábrica de queijo muitas vezes nos deparamos com vários lotes de umidades diferentes ou com o mesmo teor de umidade podendo nos fazer pensar erroneamente em relação à evolução bioquímica desse queijo.
É essencial que o laboratório "converse" com o queijeiro para saber as características de padronização de um queijo. A umidade desengordurada do queijo é uma variável usada para avaliar a maturação dos queijos de diferentes lotes e que apresentam o mesmo teor de umidade, porém com teor de gordura e proteína diferentes entre si. A padronização da UDQ é uma forma de manter constante essa variável tão importante na determinação da evolução da maturação e também no controle do rendimento.
A seguir veremos um exemplo simples e prático de aplicação e interpretação do GES e da UDQ para controle e padronização de diferentes lotes de queijos:
EST = Extrato Seco Total; ESD = Extrato Seco Desengordurado e RMF = Resíduo Mineral Fixo
GES = G(%) x 100 EST (%)
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UDQ = Um x 100 100 - G
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GES do lote 1 = 45,45% UDQ do lote 1 = 53,3 %
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GES do lote 2 = 54,54% UDQ do lote 2 = 57,14 %
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Conclusões a respeito dos lotes 1 e 2:
Quanto ao GES: o queijo do lote 1 tem menor GES, portanto é mais firme e deforma menos em relação ao queijo do lote 2, por ter maior GES, apresenta-se mais macio e cremoso.
Quanto à UDQ: o queijo do lote 1, com menor UDQ, possui maior durabilidade, menor atividade de água (Aw), em relação ao queijo do lote 2 (maior UDQ), que pode apresentar maior proteólise.
Estas informações permitem tomar decisões quanto à liberação mais rápida ou mais lenta de determinado lote e também prever alguns aspectos de textura que irão impactar também em dificuldade de empilhamento na câmara de maturação, bem como prever alguns problemas relacionados a defeitos microbiológicos que possam aparecer durante a maturação, ou prejudicar a fatiabilidade ou derretimento do queijo. Sendo que queijos com maiores teores de umidade possuem a evolução bem mais rápida das reações bioquímicas na maturação, o que pode alterar as características do produto.
Conclusão
A composição do leite varia devido a uma por diversos fatores. Esta variação natural é menos sentida no leite de conjunto, mas pode levar a variações na composição e nas propriedades do queijo. O ajuste do teor de gordura em função do teor de proteína é mais preciso, mas requer estimativa do teor de caseína do leite. No entanto, representa uma importante ferramenta para as queijarias de médio e grande porte.
A padronização garante que as empresas tenham uniformidade da composição do leite, melhorem o rendimento do queijo e reduzam as perdas de caseína no soro. Possibilita também atingir maior regularidade e previsibilidade no processo produtivo, além oferecerem um produto menos variável e com menos risco de não conformidades em relação às especificações legais ou padrões de identidade para cada variedade.
Leia também:
- Importância da relação caseína/gordura na produção de queijos
- Padronização do leite na indústria de laticínios
Referências
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https://www.epamig.br/ilct/ilctvirtual/bate-papo-tecnologico/7/?ilctvirtual=bate-papo-tecnologico. Acesso em: 30 de maio 2022.
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Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/27812. Acesso em: 30 maio 2022.
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