É comum encontrar na literatura definições tradicionais de qualidade do leite se referindo exclusivamente à composição (percentual de gordura, proteína, lactose e densidade), propriedades microbiológicas (incidência de patógenos), indicadores de higiene e parâmetros indicadores de qualidade.
No entanto, com o crescente interesse pela saúde e bem-estar animal, sustentabilidade ambiental e testes sensoriais (odor agradável, ausência de partículas externas visíveis no leite, temperatura durante a coleta e recebimento do leite), o conceito de qualidade do leite continua em expansão.
- Protocolo de Bem-estar Animal para o Setor Leiteiro
- Resfriar vacas melhora bem-estar animal e sustentabilidade na produção
- Sustentabilidade: cada vez mais uma condição necessária para a cadeia láctea
Diferentes pesquisas são realizadas, relatando as alterações nos parâmetros de qualidade das definições mencionadas acima, abordando um conjunto de critérios ou características, incluindo, por exemplo, a contagem de células somáticas (CCS) e contagem bacteriana total (CBT).
O leite de qualidade é tido como seguro para quem o consome, quando não veicula doenças ou bactérias patogênicas, com reduzida CCS, baixa CBT, livre de resíduos químicos (principalmente antimicrobianos e endectocidas), com composição adequada e com as características de cor, gosto e cheiro preservadas.
Além da importância econômica, o leite é considerado um alimento completo, pois apresenta uma composição rica em proteínas, vitaminas, gordura, carboidratos e minerais, principalmente, cálcio, o qual é indicado para todas as idades.
A água é o composto predominante na composição, cerca de 87%. A composição do leite pode ser alterada por diversos fatores, dentre estes:
O percentual de gordura do leite pode variar entre 3% e 5%; sendo constituída principalmente por ácidos graxos saturados e monoinsaturados, e em menor quantidade por ácidos graxos poli-insaturados, que juntos, servem como veículo de transporte das vitaminas lipossolúveis A, D, E e K.
Considerado uma emulsão natural, a gordura do leite se encontra dispersa em forma de glóbulos, sendo esses constituídos por um núcleo central que contém a gordura, envolvidos por uma película de natureza lipoproteica conhecida como membrana.
Resíduos químicos
A presença de resíduos químicos como antibióticos, metais tóxicos carrapaticidas e pesticidas, muitas vezes torna o leite impróprio para consumo ou fabricação de derivados, sendo um problema sério que impacta na saúde pública.
Contaminantes Químicos
Os contaminantes químicos no leite podem causar reações de hipersensibilidade e toxicidade. A aflatoxina B1, presente na ração de rebanhos leiteiros, é um dos principais contaminantes no leite, quando metabolizada forma o produto hidroxilado aflatoxina M1, conhecida como “toxina do leite” que é excretada no leite. Sua pode ser feita pela redução da contaminação por aflatoxinas B1 em grãos utilizados na elaboração das rações.
Metais tóxicos
No caso dos metais tóxicos, a contaminação pode ocorrer devido à poluição ambiental e do solo que contaminam as pastagens e as fontes de água, uso de medicamentos veterinários e pelo contato do leite com superfícies metálicas não estanhadas (corrosão). Os principias metais tóxicos encontrados no leite são o cádmio, cobre, mercúrio, cromo, arsênio e chumbo.
Resíduos Antimicrobianos
Os antimicrobianos são aplicados na prevenção ou tratamento de doenças, principalmente das infecções da glândula mamária (mastite) e das doenças do trato reprodutivo.
A presença de resíduos de antimicrobianos no leite é uma preocupação de saúde pública, pois podem desencadear reações de hipersensibilidade (penicilinas, cefalosporinas, macrolídeos e estreptomicinas), danos nos nervos cranianos (gentamicina e neomicina), danos na formação óssea (tetraciclinas), danos irreversíveis ao DNA e a indução de tumores (cloranfenicol, sulfametazina e nitrofuranos).
Resíduos de materiais de limpeza
Eles são retidos em tubulações, equipamentos e utensílios também podem contaminar o leite de forma direta ou indireta. Outro contaminante químico comumente encontrado no leite é oriundo da utilização indiscriminada de praguicidas no tratamento de ectoparasitas.
A presença desses contaminantes potencializa a necessidade do monitoramento de metais, medicamentos veterinários, praguicidas, entre outros, pois, a partir desses dados é possível estimar uma ingestão diária e assim verificar os riscos à saúde do consumidor.
A melhor maneira de evitar a presença desses resíduos é adotar práticas preventivas, pois os tratamentos térmicos (pasteurização e esterilização – tratamento UHT) que o leite recebe nas indústrias, apresentam pouca ou nenhuma influência sobre a concentração desses resíduos químicos contaminantes.
É muito importante o estabelecimento de um controle efetivo da mastite nos rebanhos, aplicação das boas práticas de ordenha para a obtenção do leite de forma higiênica, realização da manutenção preventiva e limpeza correta dos equipamentos, garantia de um transporte que atenda às exigências da legislação e o resfriamento adequado do leite.
O que é o leite cru refrigerado?
De acordo com a Portaria n.º 76, de 26 de novembro de 2018 do MAPA o leite cru refrigerado deve seguir os limites máximos de temperatura de 4,0°C na propriedade rural, 7°C no recebimento no estabelecimento e 4°C na usina de beneficiamento ou fábrica de laticínios. Devendo ser de coloração branca opalescente e homogêneo, com odor característico.
Possuir no mínimo 3% de gordura, 2,9% de proteína, 4,3% de lactose, 8,4% de sólidos não gordurosos e 11,4% de sólidos totais. A acidez titulável deve variar entre 0,14 e 0,18 gramas de ácido lático por 100 mL, densidade relativa a 15°C entre 1,028 e 1,034 e índice crioscópico entre -0,536°C e -0,512°C.
Ao ser sintetizado e secretado nos alvéolos da glândula mamária o leite é “estéril”, mas pode ser contaminado ao ser ordenhado, manuseado e armazenado com microrganismos patogênicos e deteriorantes.
A contaminação do leite pode acontecer a partir da superfície das tetas e do úbere da vaca, dos utensílios, dos equipamentos de ordenha e de armazenamento, ou a partir de outras fontes comuns do ambiente da propriedade leiteira e pode atingir números da ordem de milhões de bactérias por mL.
Contagem Bacteriana Total (CBT)
A CBT indica as condições de higiene da ordenha e dos equipamentos utilizados. O aumento da CBT pode ocasionar vários prejuízos, como alterações no sabor e odor de leite e derivados e modificações na validade do leite in natura e dos produtos lácteos.
- CCS e CBT: influência no rendimento de leite e derivados
- Influência da qualidade do leite cru em produtos lácteos processados
Contagem de Células Somáticas (CSS)
Células somáticas são células de defesa do sangue do animal que migram para o úbere. A alta CCS no leite de uma vaca indica uma provável infecção em pelo menos um quarto mamário do úbere, causando um processo inflamatório chamada mastite. A CCS é utilizada como parâmetro da qualidade do leite e como ferramenta de controle e prevenção de mastite.
- Mastite causada por S. dysgalactiae: transmissão contagiosa ou ambiental?
- Mastite clínica recorrente: persistência ou novas infecções?
De acordo com a Portaria n.º 76, de 26 de novembro de 2018 do MAPA, o leite refrigerado deve apresentar médias geométricas trimestrais de Contagem Padrão em Placas de no máximo 300.000 UFC por mL e de Contagem de Células Somáticas de no máximo 500.000 CS por mL.
Diante o exposto, inúmeros são os parâmetros que podem influenciar nas variações da qualidade do leite, sendo necessário o correto rastreamento desde a coleta na propriedade leiteira até a chegada no estabelecimento processador, bem como durante a comercialização, para dessa forma oferecer um produto seguro para os consumidores.
Referências
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