Nos últimos anos, há uma expansão das oportunidades e incentivos para a produção de leites não bovinos e derivados (Clay, Garnett & Lorimer 2020). Acredita-se que os leites não bovinos tenham certos benefícios nutricionais em comparação ao leite bovino, como maior digestibilidade e maior semelhança ao leite humano.
Além disso, os derivados de leites não bovinos, como queijos, iogurtes, sorvetes, bebidas lácteas probióticas e fórmulas infantis, possuem grande valor regional/cultural e econômico. Portanto, conhecer aspectos nutricionais e físico-químicos de leites não bovinos é de grande relevância para o desenvolvimento dessa crescente área de produção.
Composições dos leites de diferentes espécies
Apesar de água, proteínas, gordura, lactose e sais serem os principais constituintes de todos os leites, há uma variação na composição quando se compara leites de diferentes animais dentro de uma mesma espécie e, especialmente, entre espécies diferentes. A Tabela 1 apresenta a composição média do leite de diferentes espécies de mamíferos.
Tabela 1. Composição (g/100 mL) do leite de diferentes espécies de mamíferos.
Além das diferenças quantitativas, há diferenças qualitativas consideráveis entre alguns constituintes nos diferentes leites. Por exemplo, as gorduras do leite de ovelha e de cabra são ricas em triglicerídeos de cadeia curta, responsáveis pelo sabor específico desses leites, e também de cadeia média.
A gordura do leite de búfala contém maiores proporções de triglicerídeos de cadeia média do que o leite bovino, enquanto o leite de camela contém uma proporção maior de ácidos graxos de cadeia longa e uma menor proporção de ácidos graxos de cadeia curta do que o leite bovino.
Além disso, o tamanho dos glóbulos de gordura varia entre leites de diferentes espécies, sendo que os leites de cabra, ovelha e camela apresentam glóbulos de gordura menores em comparação com o leite bovino. Essas diferenças nas características da gordura, bem como nas micelas de caseína entre os diferentes leites desempenham papéis importantes em sua digestão (GANTNER et al., 2015).
Aspectos da digestão de leites não bovinos
Até o momento, existem apenas alguns estudos de comparação de digestão in vitro entre leites bovinos e não bovinos, com ênfase na digestão de proteínas e gorduras. Um estudo recente conduzido por Mulet-Cabero et al. (2020) mostrou que, na avaliação do comportamento de digestão gastrointestinal in vitro de sistemas-modelo com diferentes proporções caseína/proteínas do soro, os que obtinham mais caseína levaram a um esvaziamento gástrico mais lento e à digestão e à absorção mais lenta de nutrientes.
Sob essa perspectiva, os leites de cabra, de ovelha e de camela são mais rapidamente digeridos em comparação com o leite bovino. Em relação à gordura, supõe-se que, quanto menor o tamanho do glóbulo de gordura, maior será a digestibilidade deste componente, pois glóbulos menores possuem maior área superficial total para ação de lipases gastrointestinais.
Meena et al. (2014) mostraram a seguinte ordem em relação aos tamanhos dos glóbulos de gordura de diferentes leites: búfala (3,9–7,7 μm) > vaca (1,6–4,9 μm) > cabra (1,1–3,9 μm) ~ camela (1,1–2,1 μm). Além do tamanho do glóbulo de gordura, a estrutura de sua superfície também parece exercer um papel fundamental na sua digestão.
Apesar desses avanços, mais estudos in vitro precisam ser conduzidos para o entendimento em maior profundidade sobre a digestão de leites de diferentes espécies, bem como esses resultados precisam ser corroborados com base em observações in vivo.
Leites não bovinos e alergenicidade
As diferentes caseínas (αs2-, αs1-, κ- e β-caseínas) e a β-lactoglobulina são as proteínas alergênicas do leite bovino consideradas mais comuns. Nesse cenário, há um grande interesse em relação aos leites não bovinos como opções hipoalergênicas ao leite bovino. A substituição do leite de vaca na dieta deve estar baseada na seleção de uma fonte nutricional adequada que apresente pouca ou nenhuma reatividade cruzada com as proteínas do leite de vaca.
Em relação ao leite de cabra, um estudo de Pina et al. (2003) mostrou que apenas 25% dos pacientes estudados, que tinham alergia ao leite bovino, tiveram teste imunológico negativo para reações adversas às proteínas do leite de cabra.
Dessa forma, o leite de cabra não pode ser considerado uma alternativa unanimemente adequada em casos de alergia ao leite bovino. Da mesma forma, também há fortes evidências de alergenicidade ou reações cruzadas positivas de leite de cabra, ovelha, e búfala com leite bovino. Portanto, os dados científicos indicam ser necessário cuidado ao promover leites de demais espécies como alternativa ao leite bovino para pessoas alérgicas a esse leite.
Produtos lácteos de diferentes espécies
No cenário mundial, nos anos de 2016 e 2017 a produção de leite proveniente de diferentes ruminantes (cabra, camela, búfala e ovelha) foi responsável por uma contribuição significativa, correspondendo a 18,5% da produção total de leite (EMBRAPA, 2019). O consumo de leite oriundos de equinos possui maior limitação no consumo no âmbito mundial, representando valores inferiores a 0,1% da produção total de leite (Teichert et al., 2021).
No Brasil, o consumo de leite e derivados de diferentes espécies vem crescendo nas últimas décadas, em especial de origem bubalina, caprino e ovino.
Leite, muçarela e iogurte de leite de búfala
O leite de búfala destinado ao consumo humano direto deve ser pasteurizado, com o objetivo de assegurar a qualidade microbiológica do produto. No entanto, devido ao seu alto teor de sólidos (incluindo gordura), há um maior interesse na produção de derivados.
Há um grande rendimento de produção, por exemplo, apenas 5 litros de leite são necessários para produzir 1 Kg de muçarela. Por outro lado, para produção de muçarela bovina são necessários 10 litros para produzir 1 Kg de muçarela (Cavali & de Araújo Pereira, 2020).
O principal derivado do leite de búfala é um queijo fresco de massa filada com aroma e sabor característicos, denominado como muçarela, originalmente produzido na Itália. Outro produto elaborado a partir do leite de búfala que também possui destaque é o iogurte, devido ao seu rendimento 40% maior do que para a produção de iogurte obtido de leite bovino. Além disso, a produção de iogurtes de origem bubalina não requer adição de espessantes para se obter a característica ideal para este produto (Carvalho & Lourenço Júnior, 2001).
Leite, queijo e iogurte de leite de cabra
O leite caprino possui coloração branco-porcelana, devido à ausência de beta-caroteno. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o leite caprino pode ser considerado um alimento funcional devido à sua composição nutricional, propriedades metabólicas e terapêuticas. Os derivados do leite de cabra possuem aceitação limitada pelo consumidor brasileiro decorrente da presença de alta concentração de ácidos graxos de cadeia curta e média (cáprico, caprílico e caproico), tornando o produto com sabor acentuado (Delgado Júnior et al., 2020).
Leite e queijo de ovelha
O leite de ovelha possui sabor suave e adocicado, além disso, seu rendimento na produção de derivados se assemelha ao leite de búfala. Os iogurtes têm recebido boa aceitação por parte dos consumidores, principalmente por apresentarem consistência firme e sabor suave. No entanto para os queijos, em especial os curados, os sabores são acentuados, o que pode ser uma limitação para consumo. Os queijos mais produzidos no Brasil são tipo Feta, Boursin, Serra da Estrela, Roquefort e Pecorino (Morais, 2013).
Leite equino fresco e fermentado
O leite de égua possui em sua composição maior concentração de α-lactalbumina que o leite de vaca. Esta proteína é a maior fonte de triptofano das proteínas alimentares. Deste modo, pesquisas sobre o consumo de leite de égua relacionando com prevenção de doenças têm sido promissoras. No entanto, o consumo do leite égua é focado principalmente em seu produto fermentado, conhecido como qymyz ou koumiss. Além disso, este fermentado aumenta a proporção de triptofano livre em 25% (Teichert et al., 2021).
Leite de camela fresco e fermentado
De acordo com a sua composição, o leite de camela não possui boas propriedades tecnológicas, apresentando baixa capacidade de formação de espuma e coagulação. Quando adicionado de coagulante, a coalhada formada é fraca e a gordura é eliminada no soro, limitando sua aplicação na elaboração de queijos.
Apesar disso, o consumo de leite fluido pelos países do Oriente Médio, norte e leste da África, sudoeste da Ásia e Austrália é muito comum, principalmente em razão das alegações benefícios à saúde, como efeito imunológico e propriedade antidiabética (Faccia et al., 2020).
Algumas limitações ainda são encontradas para sua inserção no mercado brasileiro, seja por valores expressivos, sabores acentuados, disponibilidade e aspectos culturais. No entanto, existe uma grande diversidade, ainda a ser explorada, de produtos lácteos além daqueles produzidos com leite bovino!
Referências
Carvalho, L. O. D. de M., & Lourenço Júnior, J. de B. (2001). Produção leiteira de bubalinos como opção para a Amazônia. Embrapa Amazônia Oriental-Artigo Em Anais de Congresso (ALICE).
Cavali, J., & de Araújo Pereira, R. G. (2020). Produção leiteira de búfalos. Embrapa Rondônia-Capítulo Em Livro Técnico (INFOTECA-E).
Clay, N., Garnett, T., & Lorimer, J. (2020). Dairy intensification: Drivers, impacts and alternatives. Ambio, 49(1), 35-48.
Crowley, S. V., Kelly, A. L., Lucey, J. A., & O'Mahony, J. A. (2017). Potential Applications of Non-Bovine Mammalian Milk in Infant Nutrition. Handbook of Milk of Non-Bovine Mammals, 625-654.
Delgado Júnior, I. J., Siqueira, K. B., & Stock, L. A. (2020). Produção, composição e processamento de leite de cabra no Brasil. Embrapa Gado de Leite-Circular Técnica (INFOTECA-E).
Embrapa Gado Leiteiro. ANUÁRIO leite 2019: novos produtos e novas cadeias de leite para ganhar e conquistar os clientes finais. 2019. Disponível em: https://www.embrapa.br/en/gado-de-leite/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1109959/anuario-leite-2019-novos-produtos-e-novas-estrategias-da-cadeia-do-leite-para-ganhar-competitividade-e-conquistar-os-clientes-finais. Acesso: 27 mar 2022.
Faccia, M., D’Alessandro, A. G., Summer, A., & Hailu, Y. (2020). Milk products from minor dairy species: A review. Animals, 10(8), 1260.
Gantner, V., Mijic, P., Baban, M., Škrtic, Z., & Turalija, A. (2015). The overall and fat composition of milk of various species. Mljekarstvo: casopis za unaprjedenje proizvodnje i prerade mlijeka, 65(4), 223-231.
Ingham, B., Smialowska, A., Kirby, N. M., Wang, C., & Carr, A. J. (2018). A structural comparison of casein micelles in cow, goat and sheep milk using X-ray scattering. Soft Matter, 14(17), 3336-3343.
Meena, S., Rajput, Y. S., & Sharma, R. (2014). Comparative fat digestibility of goat, camel, cow and buffalo milk. International Dairy Journal, 35(2), 153-156.
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Mulet-Cabero, A. I., Mackie, A. R., Brodkorb, A., & Wilde, P. J. (2020). Dairy structures and physiological responses: a matter of gastric digestion. Critical Reviews in Food Science and Nutrition, 60(22), 3737-3752.
Pina, D. I., Carnice, R. T., & Zandueta, M. C. (2003, August). Use of goat's milk in patients with cow's milk allergy. In Anales de pediatria (Barcelona, Spain: 2003) (Vol. 59, No. 2, pp. 138-142).
Teichert, J., Cais-Sokolinska, D., Bielska, P., Danków, R., Chudy, S., Kaczynski, L. K., & Biegalski, J. (2021). Milk fermentation affects amino acid and fatty acid profile of mare milk from Polish Coldblood mares. International Dairy Journal, 121, 105137. https://doi.org/10.1016/J.IDAIRYJ.2021.105137
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