Apesar de proibida por lei, a venda de leite cru diretamente ao consumidor final ainda é uma realidade comum no Brasil. Em feiras, comércios locais, zonas rurais e até em veículos ambulantes, é fácil encontrar esse tipo de produto sendo oferecido, muitas vezes com o apelo de alternativa “mais natural”, “mais saudável” e mais barata do que o leite beneficiado em estabelecimentos industriais. No entanto, até que ponto essa prática, tão enraizada em algumas comunidades, é realmente inofensiva?
Mesmo em face da formalização do setor lácteo, que atingiu recordes de produção na série histórica do IBGE, uma parcela significativa da produção de leite do país ainda é comercializada de forma irregular. Em 2022, por exemplo, dos 34,6 bilhões de litros produzidos, apenas 23,9 bilhões passaram por inspeção sanitária, representando menos de 70% do total (EMBRAPA, 2024).
Além da destinação à venda direta de modo informal, frequentemente o leite cru é direcionado à produção de queijos comercializados em feiras livres e mercados não regulamentados, onde a ausência de fiscalização e de boas práticas de fabricação contribui para o aumento do risco de Doenças de Veiculação Hídrica e Alimentar (DVHA) (RIBEIRO JÚNIOR et al., 2020).
Por que o consumo de leite cru oferece riscos?
O leite possui uma composição complexa que o faz altamente nutritivo, mas que também favorece a proliferação de microrganismos. Além dos microrganismos, o leite comercializado clandestinamente também está sujeito a riscos relacionados à presença de resíduos químicos e substâncias fraudulentas adicionadas com o objetivo de mascarar alterações ou aumentar o volume do produto.
De acordo com Zaffalon et al. (2025), em pesquisa com amostras de leite cru comercializado informalmente via redes sociais no estado do Mato Grosso, foram identificadas graves não conformidades microbiológicas e físico-químicas. As amostras apresentaram elevadas contagens bacterianas, instabilidade no teste do álcool-alizarol, alterações de pH e inadequação de parâmetros como gordura, proteína, lactose e sólidos. Além disso, verificaram-se fraudes frequentes, incluindo adição de água e sacarose, bem como a presença de peróxido de hidrogênio e resíduos de antimicrobianos.
Paralelamente, entre 2013 e 2018, nos Estados Unidos da América (EUA), 78% dos surtos DVHA ocorreram em estados que legalizaram a venda de leite cru. Nesses episódios, os produtos lácteos estiveram implicados na maioria dos agravos à saúde, que incluíram casos de salmonelose, listeriose, brucelose, tuberculose, além de quadros como a Síndrome hemolítico-urêmica e a síndrome de Guillain-Barré (KOSKI et al., 2022). Entre 2022 e 2023, o Dairy Center Research registrou 18 notificações relevantes de doenças associadas ao consumo de leite cru nos EUA, com Escherichia coli, Salmonella spp., Campylobacter spp. e Listeria monocytogenes como os principais agentes etiológicos envolvidos nos surtos (CENTER FOR DAIRY RESEARCH, 2023). Ademais, o Departamento de Saúde da Flórida relatou que, desde 24 de janeiro de 2025, 21 pessoas adoeceram, incluindo sete hospitalizações, após consumirem leite cru proveniente de uma fazenda localizada em New Smyrna Beach, região central/nordeste do estado, onde a investigação revelou que E. coli e Campylobacter spp. foram os patógenos envolvidos. Apesar da proibição do consumo humano de leite cru na Flórida, o produto ainda é vendido como “uso para animais de estimação”, o que eleva o risco de exposição quando ingerido por humanos. (FLORIDA DEPARTMENT OF HEALTH, 2025).
Diante desse cenário de irregularidades e riscos, torna-se fundamental compreender o papel da legislação e dos processos tecnológicos, especialmente o tratamento térmico, na garantia da segurança do leite consumido pela população.
No Brasil, a legislação estabelece normas claras para proteger a saúde da população. A venda de leite cru para consumo direto é proibida em todo o território nacional desde o Decreto-Lei nº 923, de 10 de outubro de 1969 (BRASIL, 1969). Normas mais recentes, como as Instruções Normativas nº 76 e nº 77 (BRASIL, 2018), definem regras de boas práticas agropecuárias, assegurando a qualidade da matéria-prima para o beneficiamento de leite e derivados. Dentro desse contexto, uma etapa essencial desse processo é o tratamento térmico, que tem como objetivo eliminar microrganismos patogênicos presentes no leite cru. Embora a pasteurização seja o processo mais conhecido, existem outras formas de tratamento térmico aplicadas ao leite.
A pasteurização aquece o produto entre 72 °C e 75 °C por 15 a 20 segundos, eliminando microrganismos patogênicos sem comprometer suas características nutricionais e sensoriais. Já o leite UHT (Ultra High Temperature), também chamado de longa vida, passa por temperaturas muito mais elevadas, entre 130 °C e 150 °C, por apenas 2 a 4 segundos. O processo de tratamento UHT garante a eliminação da maior parte dos microrganismos viáveis, permitindo que o leite mantenha parâmetros físico-químicos adequados durante vários meses em temperatura ambiente, até o momento da abertura (STRÖHER et al., 2021.) Cada método tem como finalidade principal garantir a segurança do consumidor, variando quanto à durabilidade e às características do produto.
A fiscalização oficial exercida pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) estabelece requisitos rigorosos para assegurar a qualidade e a segurança do leite em todas as etapas da cadeia produtiva, incluindo a verificação sanitária do rebanho, ordenha, transporte, beneficiamento, estocagem e expedição. Também são monitorados laboratórios, equipamentos e análises de rotina, garantindo rastreabilidade, identidade e qualidade. Ao estabelecer parâmetros técnicos claros e mecanismos de fiscalização contínua, a legislação protege a saúde pública, prevenindo riscos associados ao consumo de leite e derivados contaminados ou adulterados (BRASIL, 2020).
Leite cru nos EUA: legal, mas não seguro
Ao contrário do Brasil, em alguns estados norte-americanos a comercialização de leite cru diretamente ao consumidor é permitida, porém sob algumas restrições (FDA, 2024). A venda deve ocorrer apenas dentro do próprio estado (Figura 1), sendo obrigatório alertar os consumidores, no rótulo do produto, sobre os riscos microbiológicos associados ao leite não pasteurizado. No estado de Washington, por exemplo, o rótulo o produto entregue ao consumidor deve conter a seguinte advertência:
“AVISO: Este produto não foi pasteurizado e pode conter bactérias nocivas. Mulheres grávidas, crianças, idosos e pessoas com resistência reduzida a doenças têm maior risco de danos pelo uso deste produto.” (WSDA, 2019).
Figura 1. Mapa dos Estados Unidos da América, com indicação por cores da situação legal referente à venda e distribuição de leite cru nos diferentes estados.
Fonte: adaptação de Real Milk (2025).
Além disso, produtores e indústrias que comercializam leite cru devem possuir licenciamento específico, seguindo diferentes modalidades:
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Licença de Produtor de Leite: autoriza a venda para processamento industrial posterior, sem cobrança de taxa;
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Licença de Usina de Processamento de Leite: permite a venda direta ao consumidor, exigindo testes microbiológicos do leite, monitoramento do estado sanitário do rebanho e inclusão de advertências no rótulo, mediante pagamento de taxa anual;
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Licença para Alimentação Animal: permite a venda para fins de alimentação animal, com obrigatoriedade de rótulo indicando que o leite não é destinado ao consumo humano e adição de corante alimentício, com taxa anual inferior à licença de usina.
Além das vendas formais, o acesso ao leite cru pode ocorrer via cow shares, nas quais o consumidor adquire uma fração da produção de uma vaca específica, enquanto o produtor mantém a posse e manejo do animal. A legislação sobre cow shares varia entre os estados: alguns, como Colorado, Michigan e Connecticut, permitem expressamente a prática; outros, como Flórida e Maryland, a proíbem; e há ainda estados, como Indiana e Havaí, que não possuem regulamentação específica sobre o tema (REAL MILK, 2025).
Em síntese, a principal diferença entre Brasil e Estados Unidos está no papel atribuído à fiscalização e à responsabilidade sanitária. Enquanto os norte-americanos permitem a venda de leite cru sob determinadas condições, transferindo ao consumidor a decisão final e, em grande parte, o risco associado ao seu consumo, o Brasil adota uma postura preventiva, proibindo a comercialização direta de leite cru para consumo humano. Nesse modelo, o tratamento térmico e a inspeção oficial deixam de ser uma escolha individual para se tornarem uma obrigação regulatória, garantindo que a proteção da saúde pública seja responsabilidade compartilhada entre produtores e órgãos fiscalizadores, e não um encargo do consumidor.
Para compreender melhor os riscos e as controvérsias envolvendo o consumo de leite cru nos EUA, o episódio Milk Money, da série Rotten da Netflix, oferece uma análise crítica sobre os aspectos sanitários, econômicos e regulatórios da indústria do leite, reforçando a importância da fiscalização e da pasteurização — práticas que protegem a saúde pública, como observamos no Brasil.
Mas afinal, se o consumo de leite cru apresenta tantos riscos, por que ainda há tanta adesão a essa prática?
Os dados da pesquisa realizada por Florindo et al. (2021) ajudam a contextualizar o comportamento do consumidor em relação ao leite cru.
O estudo, que entrevistou 120 participantes brasileiros, avaliou o consumo de leite e derivados inspecionados e não inspecionados, bem como o conhecimento dos entrevistados sobre DVHA. Os resultados mostraram que 21% dos entrevistados preferem produtos de origem informal, enquanto apenas 9% conhecem os selos de inspeção oficial e apenas 7% procuram produtos que possuam esses selos ao adquirir leite ou derivados. Entre os consumidores que optam pelo leite informal, 40% justificaram a escolha pelo menor preço, 36% acreditavam que o produto seria mais saudável e 24% apontaram o sabor como principal motivação. Esses números indicam que a adesão ao leite cru está fortemente associada à desinformação e a percepções equivocadas sobre benefícios à saúde, evidenciando a necessidade de educação sanitária e divulgação científica para proteger a saúde pública (FLORINDO et al., 2021).
Vale destacar que o leite processado – seja pasteurizado ou UHT – não recebe conservantes. Eventualmente, podem ser adicionados estabilizantes com finalidade tecnológica ou sensorial, que não comprometem a segurança ou o valor nutricional do produto. A crença de que o leite cru seria mais adequado para pessoas com intolerância à lactose é outro mito que não possui respaldo científico, uma vez que este carboidrato faz parte da composição natural do leite. Da mesma forma, não há evidências de que o leite cru ofereça benefícios na prevenção da osteoporose, uma vez que a biodisponibilidade do cálcio é semelhante tanto no leite cru quanto no pasteurizado ou UHT (FDA, 2024).
O leite continua sendo uma excelente fonte de nutrientes, incluindo proteínas de alto valor biológico. Alegações de que o processamento térmico reduziria seu valor nutricional são equivocadas: o tratamento térmico não diminui de forma significativa os nutrientes do leite e, ao mesmo tempo, contribui para a preservação de suas características sensoriais e propriedades físico-químicas, garantindo um alimento seguro e de qualidade para o consumidor.
Proteger a saúde pública exige mais do que legislação: é necessária educação, informação e responsabilidade compartilhada. Consumir leite seguro, inspecionado e termicamente tratado é um direito do cidadão e, ao mesmo tempo, uma forma de exercer cuidado com a própria saúde e com a comunidade. A transformação cultural em torno do consumo de alimentos seguros depende do engajamento de todos – profissionais da saúde, órgãos de fiscalização, produtores e consumidores – para que tradição e cultura não se sobreponham à ciência e à proteção da vida. Somente assim será possível garantir que cada copo de leite ingerido seja, de fato, nutritivo, confiável e seguro.
Referências bibliográficas
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