Hoje apresentaremos o 10º e último artigo abordando erros frequentes na formulação de dietas de vacas leiteiras.
Recapitulando, no 1º artigo desta série, destacamos a importância de informar corretamente o peso vivo (PV) médio e o PV adulto dos animais do lote para o qual estamos formulando a dieta.
No 2º artigo discutimos quão importante é informar o escore de condição corporal (ECC) atual e correto das vacas, bem como a meta de ECC à secagem.
No 3º artigo chamamos a atenção que devemos caracterizar corretamente o índice temperatura-umidade (ITU) que as vacas estão expostas e não podemos ignorar a atividade física das vacas em sistemas de produção de leite à pasto ou semiconfinado.
No 4º artigo ressaltamos a relevância de cadastrar corretamente a produção de leite média das vacas, enquanto que no 5º artigo destacamos a importância de informar com a maior exatidão possível os reais teores de gordura e proteína do leite das vacas para as quais estamos formulando as dietas.
No 6º artigo mudamos um pouco o foco e discutimos quão confiáveis são as estimativas de consumo de MS dos programas de formulação e quais são os dados de entrada usados nestas estimativas.
No 7º artigo salientamos que ao não analisar com frequência o real teor de MS dos alimentos volumosos e subprodutos, podemos subestimar ou sobrestimar o consumo de MS dos animais.
No 8º artigo discutimos o erro frequente de fazer uma única análise bromatológica por ano ou por silo e continuar usando esta mesma análise por meses seguidos.
E finalmente no 9º artigo desta série discutimos os riscos associados quando o nutricionista não informa corretamente o teor de amido da silagem, muitas vezes por confiar cegamente numa análise de NIRS (espectroscopia de reflectância no infravermelho proximal).
Hoje tentaremos mostrar que mesmo se todos os possíveis erros anteriores tenham sido evitados, mesmo que as vacas sejam caracterizadas com perfeição e as análises bromatológicas sejam frequentes, ainda assim há muitas coisas que podem dar errado.
Isto ocorre porque programas de formulação são baseados em modelos nutricionais e equações de estimativas de requerimentos nutricionais. Estes modelos e estas equações são aproximações da realidade e não necessariamente refletem resultados exatos.
É o melhor que temos, mas não necessariamente funcionam em todas as situações e em todos os cenários. Há uma frase muito conhecida nesta área, de autoria do estatístico inglês George Box (1919-2013) que diz: “Todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis...”
Os modelos são definidos como uma “simplificação do mundo real”. É uma tarefa muito difícil definir qual o nível de simplificação que devemos trabalhar. Modelos extremamente complexos exigem informações impossíveis de serem obtidas no campo e pelos laboratórios existentes no país.
Estes modelos demasiadamente complexos podem piorar a qualidade da gestão. Ou seja, muitas vezes “menos é mais”. Para nós, que colaboramos na equipe de desenvolvimento de uma versão do NRC e diversas versões do CNCPS e do RLM, uma pergunta importantíssima é definir qual o nível de complexidade que funciona para a realidade dos produtores, dos consultores e das empresas de rações.
Uma dúvida que certamente muitos nutricionistas já se perguntaram ao formular uma dieta para um grupo de vacas foi: “como vou saber se esta dieta vai funcionar?” Um dos objetivos das soluções ou outputs de modelos nutricionais, que são a base para diversos programas comerciais de formulação de dietas, é justamente dar ao formulador um direcionamento, ou uma sugestão da resposta esperada ao fornecer tal dieta aos animais, obviamente assumindo que todos os detalhes já discutidos nos 9 artigos desta série foram atendidos.
Mesmo assim, diversos detalhes ou cenários podem fazer com que o “predito” pelo programa e esperado pelo nutricionista, na prática não aconteça. Nós achamos que estas simulações que são feitas dentro de um bom programa, testando rapidamente diversas dietas e vendo os “outputs” são uma das melhores formas de utilizar programas de formulação, como o RLM.
Um bom exemplo são respostas de vacas recém-paridas às dietas propostas. Quando um modelo nutricional sugere ao nutricionista quantas gramas de proteína metabolizável, ou quantas megacalorias de energia líquida este grupo de animais necessita, de modo muito resumido o modelo estima quanto destes nutrientes são exigidos para manter atividades vitais básicas dos animais e suas outras demandas.
Por exemplo, para produção de leite com uma determinada composição, para alguma taxa de crescimento ou ganho de reservas corporais, ou ainda para manter uma gestação se for o caso, tudo isso considerando que para cada um destes “drenos” de nutrientes, existe uma eficiência de uso dos mesmos vindo dos alimentos.
Em vacas recém-paridas especificamente, a pesquisa tem nos mostrado que, além de vários destes requerimentos citamos acima, existem alguns que o modelo não tem ainda a capacidade de estimar. Entre eles temos por exemplo requerimento para crescimento de vísceras (fígado e intestinos) (McCabe & Boerman, 2019) ou para dar suporte a uma atividade mais intensa do sistema imune (Bradford et al., 2015).
Talvez isso explique parte das grandes respostas observadas em experimentos recentes ao aumentar o suprimento e a qualidade da proteína em dieta de vacas recém-paridas e até mesmo antes do parto (Larsen et al., 2014; Husnain & Santos, 2019; Tebbe & Weiss, 2021).
Outro exemplo são interações entre o metabolismo energético e proteico, possíveis de modular a resposta produtiva dos animais. Tipicamente, modelos nutricionais funcionam estimando as respostas preditas pelo suprimento de proteína e energia oriundas de eficiências fixas e independentes. Trabalhos recentes (Daniel et al., 2016) mostram que, diferente do modo que pensamos, a otimização de um dos metabolismos pode aumentar a eficiência de resposta do outro, assim como o contrário também é verdadeiro.
Em outras palavras, um melhor ou pior balanceamento entre o suprimento de energia e de proteína (não só quantidade, mas também perfil) pode aumentar ou diminuir a eficiência de uso de ambos, e assim trazer respostas maiores ou menores que as preditas pelo programa de formulação.
Além do quesito eficiência de uso dos nutrientes para a produção de leite, as estimativas de digestibilidade sugeridas pelo programa também podem não condizer com o que de fato está ocorrendo no trato digestório dos animais (Daniel et al., 2020), mesmo que a análise de todos os ingredientes em questão esteja correta.
Dois exemplos: ao alimentar uma dieta com excesso de amido de rápida degradação ruminal, podemos reduzir a digestibilidade do FDN, mesmo que este possua uma digestibilidade potencial muito alta! O programa não vai entender este fenômeno fisiológico e continuará estimando a digestibilidade e consequentemente a concentração energética destes alimentos como foi informado, provavelmente superestimando alguma resposta produtiva das vacas.
Outro exemplo é usarmos uma fonte de proteína que sofre aquecimento excessivo em seu processo de conservação, e isto causa uma queda na digestibilidade da proteína. Isso não vai apenas reduzir sua digestibilidade ruminal (e assim disponibilizar menos N ou peptídeos ao rúmen e talvez reduzir crescimento microbiano), mas provavelmente afetará a extensão da digestão a nível intestinal, reduzindo a quantidade de aminoácidos que será disponibilizado por aquele ingrediente.
Estas chamadas “respostas associativas” de nutrientes ou alimentos, são também de difícil previsibilidade. Mais uma vez, apenas aquilo que puder ser validado por bons pesquisadores deverá ser incorporado aos modelos sob pena de gerar erros nas predições.
Além de todas estas possíveis interações entre nutrientes, metabolismo e requerimentos, outro detalhe que vem sendo cada vez mais estudado é o potencial genético! Se eu alimentar a mesma dieta para dois rebanhos selecionados por décadas com dois objetivos distintos, certamente teremos respostas também diferentes. Ou seja, o desempenho, seja ele de produção de leite ou de sólidos, frente a uma formulação, sofre influência do potencial genético do rebanho.
Isso é tão verdade que a comunidade científica tem buscado cada vez mais utilizar dados de perfil genético dos animais na hora de blocar ou montar grupos experimentais em estudos de nutrição por exemplo, com o objetivo de avaliar a resposta de determinada estratégia em populações muito parecidas no que se refere a frequência de genes.
Assim nossa principal mensagem deste 10º e último artigo é que os nutricionistas não deveriam confiar cegamente nas soluções dadas pelos programas de formulação. Bons nutricionistas deveriam ter (ou desenvolver) uma habilidade de questionar sempre as soluções sugeridas.
A experiência real virá com o tempo, mas curiosidade e um apetite constante por conhecimento são essenciais. Bons nutricionistas deveriam dedicar algumas horas por semana para lerem novos artigos científicos na área, participarem de eventos presenciais ou remotos e nunca deixarem de se atualizar.
E ao atender seus rebanhos e seus clientes, na nossa modesta percepção, nutricionistas devem dedicar mais tempo observando as vacas, os silos, os piquetes, e menos tempo na frente do computador formulando as dietas!
Desta forma, finalizamos este artigo e também a série de 10 artigos sobre dicas práticas em como acertar na formulação de dietas de bovinos leiteiros. Esperamos que vocês tenham gostado e que estes artigos tenham sido úteis. Foi um prazer e até uma próxima oportunidade.
Autores
Prof. Dr. Rodrigo de Almeida
Universidade Federal do Paraná
Curitiba – PR
Doutorando Jorge Henrique Carneiro
Universidade Federal do Paraná
Curitiba – PR
Prof. Ph.D. Dante Pazzanese Lanna
ESALQ/USP
Piracicaba - SP
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