Hoje discutiremos um terceiro erro frequente na formulação de dietas de vacas leiteiras. Nos dois primeiros artigos desta série, destacamos que na formulação de dietas temos que descrever, com a maior exatidão possível, a vaca que representa a média dos animais do lote para o qual estamos formulando a dieta.
- Erros na formulação de dietas para vacas: não especificar o peso vivo corretamente
- Erros na formulação de dieta para vacas: não informar o ECC atual e a meta para o momento da secagem
No artigo de hoje, vamos mostrar que também é necessário informar ao programa se as vacas estão ou não expostas ao estresse calórico, bem como, se elas têm ou não acesso ao pastejo.
No RLM Leite, ambas as informações são colhidas na janela “Ambiente/Manejo”, conforme a imagem abaixo.
Nossa preocupação ao construir este programa de formulação foi mantê-lo o mais simples possível. Reconhecemos que na maioria das fazendas não é comum o registro destas informações. Por isso, para permitir que o programa calcule o Índice Temperatura-Umidade (ITU), também conhecido pela abreviatura THI em inglês, basta ao usuário do RLM Leite cadastrar duas informações: temperatura ambiente (oC) e umidade relativa do ar (%).
Com estas duas informações o ITU é calculado e para facilitar a interpretação dos valores, anexamos uma escala colorida para o usuário localizar o ITU que os seus animais estão expostos. Por exemplo, ao informar que as vacas estão alojadas num barracão com temperatura de 25oC e 60% de umidade relativa, o ITU estimado é de 72,7, o que caracteriza um estresse calórico moderado (faixa laranja da escala).
Mas o que o RLM Leite faz com esta informação? Basicamente calcula uma nova estimativa de consumo de MS, pois como todos sabem, vacas leiteiras em estresse calórico têm o seu consumo de MS diminuído.
Aliás, por muitas décadas, acreditávamos que 100% da queda na produção de leite observada em animais em estresse calórico era explicada pela redução no consumo alimentar.
Isto mudou há aproximadamente 10 anos atrás quando um grupo de pesquisadores norte-americanos publicou um artigo simples, mas muito inovador (Rhoads e co-autores, 2009), liderado pelo Prof. Lance Baumgard (na época na Universidade de Arizona, hoje na Universidade de Iowa, ambas nos EUA).
Com tão somente 12 vacas, 6 para cada tratamento, mas com câmaras climáticas em que a temperatura e umidade eram padronizadas pelos pesquisadores.
Num primeiro período, todas as vacas foram expostas a condições de termoneutralidade (20oC, 20% umidade e 64 de THI) e elas comiam à vontade (ad libitum). É importante lembrar a todos que para vacas em lactação o valor limite de THI ou ITU é 68, e acima deste valor há algum grau de estresse calórico.
Já no segundo período, vacas do 1º grupo foram mantidas nas mesmas adequadas condições de termoneutralidade, enquanto que as vacas do 2º grupo foram expostas ao estresse calórico. Eles impuseram um estresse calórico cíclico, para mimetizar a variação diária tipicamente observada nas fazendas.
As temperaturas variaram de 29,4 a 38,9oC, com umidade constante de 20%, fazendo com que o THI variasse entre 73 e 82 (moderado a intenso), ou seja, um estresse calórico quase que permanente ao longo do dia.
Mas qual foi a grande “sacada” deste experimento? Eles estimaram a redução do consumo alimentar do lote de vacas em estresse calórico em relação ao primeiro período e impuseram esta mesma redução percentual do consumo alimentar às vacas do primeiro lote, que estavam nas câmaras climáticas, mas em condições de termoneutralidade.
Assim, durante 9 dias, os 2 grupos de vacas estavam ingerindo a mesma quantidade de MS, mas o primeiro lote estava em termoneutralidade e o segundo lote em estresse calórico.
Se o consumo explicasse 100% do impacto do estresse calórico na produção de leite, os dois lotes deveriam apresentar produções similares, correto? Mas o que aconteceu? Apesar do similar consumo (ao redor de 16 kg/d de MS), o lote de vacas em restrição alimentar, mas em termoneutralidade, produziu muito mais leite do que o lote de vacas em estresse calórico (29,0 vs. 21,5 kg/d).
Os autores concluíram que a redução no consumo de MS ocasionada pelo estresse calórico somente explicou 35% da diminuição da produção de leite! Interessante, vocês não acham? Inclusive na minha modesta opinião, esta publicação é uma demonstração que os artigos científicos mais brilhantes são os mais simples!
Mas se somente 35% da perda em leite é explicada pela depressão do consumo de MS em vacas sob estresse calórico, o que explica os restantes 65%? Na verdade, não sabemos exatamente e há hoje vários grupos de pesquisadores tentando encontrar estas respostas.
Um aspecto único da vaca sob estresse calórico é que apesar do consumo de MS estar deprimido, ela não mobiliza suas reservas corporais de tecido adiposo. Provavelmente o estresse calórico provoca adaptações metabólicas que priorizam a conservação de glicose (e a sua limitada excreção como lactose no leite) com o propósito de manter a vaca viva, e colocando a lactação em segundo plano.
Uma outra característica da vaca sob estresse calórico é a sua provável maior exigência de manutenção. Uma vaca em lactação tinha 30-50 anos atrás uma exigência de mantença de 80 kcal por kg de peso metabólico. Este é o dado que o NRC (2001) usa.
Hoje a nossa moderna vaca leiteira tem uma exigência de mantença ao redor de 100 kcal por kg de peso metabólico. Esse é o dado que o RLM Leite adota. Provavelmente uma vaca leiteira sob estresse calórico tem uma exigência de mantença ainda maior, ao redor de 120 kcal de peso metabólico, mas reconheço que este último número é especulativo.
Voltando ao assunto de formulação de dietas, o que o RLM Leite faz quando o usuário descreve um grupo de vacas sob estresse calórico? Por enquanto, somente estima a depressão no consumo de MS e recalcula a produção de leite presumida por este novo consumo.
Como tentei demonstrar nos parágrafos anteriores, ainda não sabemos exatamente como “modelar”, ou como retratar estas outras alterações no metabolismo, na forma de equações de exigências nutricionais. Mas que fique claro, até onde vai o nosso conhecimento, nenhum outro programa de formulação faz isto.
O segundo ponto deste artigo e outro erro frequente na formulação de dietas, é não descrever corretamente o acesso dos animais aos piquetes para pastejo. Esta atividade implica num gasto energético que tem que ser contabilizado. Esta demanda energética extra será somada ao gasto energético de mantença e assim a produção de leite presumida ou estimada pela energia, sofrerá um pequeno desconto.
Para calcular a energia necessária para atividade física dos animais (pastejo), três informações ou inputs são perguntados ao usuário do RLM Leite: a topografia do terreno (plano ou inclinado), a distância entre o local da ordenha e a entrada do piquete e o número de vezes que as vacas fazem este trajeto por dia. Tudo muito simples... Não devemos nos preocupar ou tentar estimar o número de metros que a vaca anda dentro do piquete.
Uma dúvida frequente em cursos de formulação de dietas é se devemos nos preocupar e tentar estimar os metros que a vaca caminha quando em sistema de confinamento (free-stall ou compost-barn). A resposta é não; não precisamos nos preocupar. Esta atividade física mínima que a vaca pratica dentro do confinamento para ir ao cocho, ao bebedouro, para interagir com os outros animais e para ir ao local de ordenha entra na mantença e não precisa ser contabilizada.
Para exemplificar a energia gasta por uma vaca leiteira a pasto, vamos assumir uma vaca Jersolando de 550 kg de PV, que em terreno plano, vai 2 vezes ao dia a um piquete de pastejo que está distante 500 m do local onde estes animais são ordenhados.
Usando as equações do NRC (2001) e do RLM Leite, esta vaca por conta da atividade física tem sua exigência de mantença aumentada de 9,1 para 10,2 Mcal, um acréscimo de 1,1 Mcal. Quanto isto representa em leite? Assumindo uma composição média de 4,0% de gordura e 3,5% de proteína, e um valor energético por kg de leite de 0,75 Mcal/kg, esta atividade física de pastejo representa 1,5 kg de leite (1,1 / 0,75) que está sendo desviado da produção de leite.
Não querendo polemizar, mas é por isto que, pelo menos do ponto de vista energético, vacas leiteiras confinadas são mais eficientes do que vacas leiteiras mantidas à pasto. Obviamente o acesso ao pasto pode trazer inúmeras vantagens e benefícios à vaca, ao produtor e a economicidade do sistema produtivo; mas este tema é um assunto para outra conversa.
E aí, gostaram da leitura? Na próxima semana discutiremos um quarto erro frequente nas formulações.
Mais uma vez, quero fazer um convite aos leitores do MilkPoint para que eles usem este espaço para compartilhar as suas maiores dificuldades e os erros que eles consideram mais frequentes na formulação de dietas de bovinos leiteiros.
Ao final destes 10 artigos, um para cada erro, teremos um 11º, que será um retrato das contribuições dos leitores, com os erros que eles consideram mais frequentes. Portanto, participem! Será um prazer receber suas contribuições.