Reações de escurecimento em alimentos
Diferentes tipos de reações de escurecimento ocorrem frequentemente em alimentos, na presença de calor ou não, no preparo e processamento de alimentos doméstico ou industrial (FRANCISQUINI et al., 2017). Essas reações de escurecimento podem ser de dois tipos: enzimático e não enzimático.
Em alguns alimentos é desejado e esperado que aconteça o escurecimento, outras vezes não, e o conhecimento dos fatores que afetam essas reações levam à eficiência do controle, melhorando a qualidade dos produtos (BOBBIO; BOBBIO, 1992).
Escurecimento enzimático
O escurecimento enzimático está associado a reações catalisadas por uma enzima, a polifenol oxidase (PPO). Essa reação ocorre em frutas e vegetais, em alguns casos sendo desejável (como no chá preto) e em outros não (como na maçã e na batata, por exemplo, quando escurecem após o corte) (BELITZ et al., 2009).
Escurecimento não-enzimático
O escurecimento não enzimático é dividido em três grupos de reações diferentes entre si em vários aspectos (como, por exemplo, o tipo de substâncias que dão origem a essas reações), mas que têm em comum o fato de gerar escurecimento no produto final. São elas: a reação de Maillard, a caramelização e a oxidação da vitamina C. As duas primeiras estão relacionadas à presença de carboidratos e a reação de Maillard é a mais estudada, pois ocorre em uma gama diversa de alimentos, com efeitos que vão além da alteração de cor (ARAÚJO, 2019).
Como ocorre a reação de Maillard?
A reação de Maillard foi descrita pela primeira vez por Louis Camille Maillard em 1912, de quem recebeu o nome. Dessa forma, há mais de 100 anos a reação de Maillard é pesquisada e continua provocando a ciência e a tecnologia de alimentos no desenvolvimento de soluções para controle dos seus fatores positivos e negativos (FRANCISQUINI et al., 2017).
Ela é uma reação induzida termicamente, que ocorre entre um grupo amino e uma carbonila nos alimentos. O grupo amino pode ser fornecido por aminoácidos livres, peptídeos e proteínas, que contêm resíduos de aminoácidos reativos à química de Maillard, por exemplo, lisina, arginina, histidina e glutamina. Já para a carbonila, sua fonte principal são os açúcares (que tenham a característica de serem redutores, como a lactose e seus produtos de hidrólise, glicose e galactose), mas também produtos da decomposição de gordura (NEWTON et al., 2012).
Os produtos finais da reação de Maillard são polímeros de cor marrom, chamados melanoidinas, que têm efeito benéfico para a saúde, apresentando atividade antioxidante, anti-hipertensiva, prebiótica e ação anti-inflamatória. Os produtos intermediários da reação são tão importantes quanto os finais, sendo também responsáveis pela cor e flavour em alimentos processados que passam pela reação de Maillard.
O 5-hidroximetilfurfural (HMF) é muito citado na literatura quando se trata deste assunto, sendo que é um produto intermediário utilizado como indicador em lácteos para mensurar a extensão da reação de Maillard, e também por estar relacionado a alguns efeitos adversos à saúde, como atividades citotóxicas e carcinogênicas. (FRANCISQUINI et al., 2017; FRANCISQUINI et al., 2018).
Os produtos nos sistemas biológicos resultantes da reação de Maillard são referidos como produtos finais de glicação avançada (AGEs, do inglês, advanced glycation end-products). O excesso de acúmulo de AGE no tecido corporal pode contribuir para o desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes, ganho de peso, doenças cardiovasculares e neurodegenerativas. Além disso, o potencial alergênico de algumas proteínas pode ser aumentado pela reação de Maillard (NUNES et al., 2019).
Dessa forma, a complexidade desta reação leva a geração de efeitos concomitantemente benéficos e maléficos para a saúde humana, interferindo positivamente ou negativamente nas propriedades tecnológicas dos alimentos em que ocorre, dependendo do que se espera nas características de cada produto.
O controle da reação de Maillard pelo conhecimento e manipulação dos fatores que a influenciam é fundamental para minimizar os seus efeitos negativos e aprimorar os positivos.
Quais fatores influenciam a Reação de Maillard?
Diversos fatores influenciam a ocorrência, velocidade e intensidade da reação de Maillard, entre eles (BOBBIO; BOBBIO, 1992; ARAÚJO, 2019):
- Efeito da temperatura;
- Efeito do pH;
- Tipos de amina;
- Tipos de carboidrato;
- Atividade de água;
- Presença de catalisadores;
- Presença de inibidores.
Efeito da temperatura na reação de Maillard
O calor aumenta a velocidade da reação de Maillard, podendo duplicar quando a temperatura aumenta em 10°C (entre 40°C e 70°C). Porém, a reação ocorre mesmo em temperaturas baixas, mas em velocidade menor; daí o seu efeito durante o armazenamento de alimentos.
Efeito do pH na reação de Maillard
É consenso que valores de pH ácidos são inibidores por tornar o grupo amino carregado positivamente e, assim, indisponível à reação. Valores de pH próximos à neutralidade ou maiores provocam o aumento da velocidade da reação de Maillard.
Tipos de amina
A reatividade é diferente para cada aminoácido, sendo a lisina o mais susceptível, embora outros aminoácidos também possam reagir, desde que o grupo amino esteja livre. A velocidade da reação é influenciada pelo pH, pois afeta os aminoácidos devido a diferentes valores de ponto isoelétrico.
Tipos de carboidrato
Apenas carboidratos redutores participam da reação de Maillard. Os monossacarídeos são os mais reativos; neste grupo estão presentes a glicose e a galactose (produtos da hidrólise da lactose). Os dissacarídeos não são todos reativos, a lactose é, já a sacarose não (embora a sacarose não participe da reação da Maillard, participa da reação de caramelização, outro tipo de reação de escurecimento não enzimático). A maioria dos polissacarídeos, como o amido, não são redutores.
Atividade de água na reação de Maillard
Quando a atividade de água é muito alta (maior que 0,9) ou muito baixa (menor que 0,25), há diminuição da velocidade da reação de Maillard. O escurecimento é maior quando a atividade de água está entre valores intermediários (entre 0,5 e 0,8).
Presença de catalisadores
A reação de Maillard é acelerada com a presença de fosfatos e citratos, e também por íons cobre.
Presença de inibidores
O dióxido de enxofre é o principal inibidor da reação de Maillard, pois bloqueia os carboidratos impedindo que participem da reação.
Produtos lácteos e a reação de Maillard
Embora a reação de Maillard tenha consequências desejáveis em muitos alimentos, por exemplo, café, torradas e chocolate, de uma forma geral, em lácteos são vistas como negativas, pois podem gerar propriedades que descaracterizam os produtos.
Há o desenvolvimento de cor marrom e sabores estranhos, ligeira perda de valor nutritivo (a lisina é um aminoácido essencial que fica indisponível quando entra na reação) e perda de solubilidade em leite em pó. Por outro lado, a reação de Maillard parece prevenir ou retardar a gelificação durante o armazenamento em produtos de leite UHT (FOX et al., 2015). Quanto mais intenso o tratamento térmico, maior é a perda de lisina, podendo chegar a 13% em leite autoclavado (ROCHA, 2004).
Além da alteração da cor pelo escurecimento, na reação de Maillard também há a formação de compostos relacionados ao sabor cozido, afetando principalmente os produtos lácteos processados, como leite em pó, leite UHT, leite pasteurizado e fórmulas infantis (NUNES et al., 2019).
Produtos lácteos sem lactose estão mais sujeitos ao escurecimento não enzimático, pois os produtos da hidrólise da lactose — glicose e galactose — são mais reativos que a própria lactose. Por isso, a ação do calor tem maior impacto nesses produtos, gerando problemas de escurecimento excessivo, sabor cozido e redução do valor nutricional (PAIVA et al., 2018).
Reação de Maillard: leite condesando e doce de leite
Em leite condensado adoçado é inevitável que ocorra reação de Maillard e a coloração é mais forte à medida que a temperatura de armazenamento é mais elevada, o leite é evaporado a uma concentração maior e é aplicado um aquecimento mais intenso. Se houver a adição de açúcar invertido (que consiste na sacarose hidrolisada em glicose e frutose) a reação é mais intensa. (WALSTRA et al., 2006).
O doce de leite é um produto concentrado, sendo submetido ao processo de evaporação, sendo assim, tem-se uma reação de escurecimento mais acelerada, pois há um aumento de temperatura durante o processo, abaixamento da atividade de água e pH favorável mais elevado, tais fatores contribuem para que ocorra a reação e dê as características particulares do produto. (FRANCISQUINI et al., 2016). No doce de leite é importante o controle da reação de Maillard para adequação da intensidade de sua coloração com as demandas de diferentes mercados (PERRONE et al., 2011).
Reação de Maillard em queijos
A galactose está correlacionada com o escurecimento de queijos durante o aquecimento. O principal fator responsável pela galactose residual é o metabolismo das culturas iniciadoras utilizadas na fabricação do queijo.
A intensidade da cor está relacionada aos níveis residuais de lactose e galactose no queijo e à extensão da proteólise que libera aminoácidos para a reação de escurecimento. As manchas escuras que aparecem durante o aquecimento de muçarela para pizzas ocorrem devido à reação de Maillard (COSTA; FURTADO, 2002, JOHNSON; OLSON, 1985; IGOSHI et al., 2017).
Em queijos tipo Parmesão ocorre um evento curioso. Um escurecimento indesejado, associado à formação de sabores estranhos, pode ocorrer durante o último período de maturação, apesar da relativa ausência de açúcares redutores e altas temperaturas tipicamente associadas à reação de Maillard.
Isso ocorre devido à formação de metilglioxal (MG) proveniente do metabolismo microbiano de açúcares e aminoácidos por bactérias de ácido lático. O MG reage com os peptídeos presentes no queijo gerando produtos de estágio avançado de reação de Maillard, como as melanoidinas (DIVINE et al., 2012; GANDHI et al., 2019).
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Leia também:
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Referências
ARAÚJO, J. M. A. Química de Alimentos: Teoria e Prática. 7 ed. Viçosa: Editora UFV, 2019.
BELITZ, H.-D.; GROSCH, W.; SCHIEBERLE, P. Food Chemistry. 4. ed. Berlim: Springer, 2009.
BOBBIO; BOBBIO, Química do processamento de alimentos. 3 ed. São Paulo: Varela Editora, 1992.
COSTA, R. G. B.; FURTADO, M. M. Propriedades funcionais da mussarela para pizza: Escurecimento (browning) e formação de bolhas. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v. 57, n. 326, p. 9-16, 2002.
DIVINE, R. D. et al. Short communication: Evidence for methylglyoxal-mediated browning of Parmesan cheese during low temperature storage. Journal of Dairy Science, v. 95, p. 2347-2354. 2012. DOI: 10.3168/jds.2011-4828
FOX, P. F. et al. Dairy Chemistry and Biochemistry. 2. ed. [s.l.]: Springer, 2015.
FRANCISQUINI, J. A. et al. Avaliação da intensidade da reação de Maillard, de atributos físico-químicos e análise de textura em doce de leite. Revista Ceres, v. 63, n.5, p. 589-596. 2016. DOI: 10.1590/0034-737X201663050001
FRANCISQUINI, J. A. et al. Reação de Maillard: Uma revisão. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v. 72, n. 1, p. 48-57. 2017. DOI: 10.14295/2238-6416.v72i1.541
FRANCISQUINI, J. A. et al. Physico-chemical and compositional analyses and 5-hydroxymethylfurfural concentration as indicators of thermal treatment intensity in experimental dulce de leche. Journal of Dairy Research, v. 85, n. 4, p. 476-481. 2018. DOI: 10.1017/S0022029918000353
GANDHI, N. N. et al. Lactobacillus casei expressing methylglyoxal synthase causes browning and heterocyclic amine formation in Parmesan cheese extract. Journal of Dairy Science, v. 102, n. 1, p.100-112. 2019. DOI: 10.3168/jds.2018-15042
IGOSHI, A. et al. Galactose is the limiting factor for the browning or discoloration of cheese during storage. Journal of Nutritional Science and Vitaminology, v. 63, p. 412-418. 2017.
JOHNSON, M. E.; OLSON, N. F. Nonenzymatic browning of mozzarella cheese. Journal of Dairy Science, v. 68, n. 68, p. 3143-3147. 1985.
NEWTON, A. E. et al. The role of the Maillard reaction in the formation of flavour compounds in dairy products – not only a deleterious reaction but also a rich source of flavour compounds. Food & Function, v. 3, p. 1231-1241, 2012. DOI: 10.1039/c2fo30089c
NUNES, L. et al. The Maillard reaction in powdered infant formula. Journal of Food and Nutrition Research, v. 7, n. 1, p. 33-40. 2019. DOI: 10.12691/jfnr-7-1-5
PAIVA, V. N. et al. Desafios tecnológicos na produção de produtos com baixo teor de lactose. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v. 73, n. 2, p. 91-101. 2018. DOI: 10.14295/2238-6416.v73i2.665
PERRONE, I. T; STEPHANI, R.; NEVES, B. S. Doce de leite: Aspectos Tecnológicos. Juiz de Fora: Do Autor, 2011. 186 p.
ROCHA, G. L. Influência do tratamento térmico no valor nutricional do leite fluido. 53 f. 2004. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia de Alimentos) – Departamento de Matemática e Física, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004.
WALSTRA, P.; WOUTERS, J. T. M.; GEURTS, T. Dairy Science and Technology. 2. ed. [s.l.]: Taylor & Francis, 2006.
*Fonte da foto do artigo: Freepik