A cadeia do leite é muito resiliente a crises e, em geral, se ajusta rápido. Mas o cenário de curto prazo não é dos melhores, por uma série de fatores. Do lado macroeconômico estamos com elevada taxa de desemprego, queda na renda e uma inflação e juros subindo. Além disso, o crescimento econômico previsto é baixo, ficando bem aquém da expansão mundial.
Especificamente em relação ao setor, estamos com uma enorme pressão de custos e com dificuldade para repassar preços ao consumidor final pela própria fragilidade macroeconômica. É uma conjuntura bastante desafiadora e, pode sim, se arrastar para além de 2021, sobretudo no âmbito dos custos. Portanto, é um ano que sugere decisões mais conservadoras. Mas não podemos esquecer que a economia está em recuperação, com reflexos positivos sobre renda e consumo ao longo dos próximos meses.
Essa alta está relacionada a um conjunto de fatores, internos e externos. Externamente, podemos destacar: a desvalorização do dólar frente a outras moedas, o que elevou os preços das commodities em dólar; o forte crescimento do consumo global; as importações chinesas de milho que geralmente ficavam entre 3 e 5 milhões de toneladas/ano e agora devem superar 25 milhões de toneladas; o recuo nos estoques globais de milho e soja, com forte queda nos estoques dos Estados Unidos.
Um outro fator, não muito falado, foi a migração de fundos de hedge para os mercados de commodities. Os fundos estão com uma posição comprada historicamente alta, o que acaba colocando mais pressão nas cotações. Mas tivemos fatores internos também.
Além de problemas climáticos que afetaram plantio e colheita, houve uma desvalorização do real que tem forte impacto nos custos de produção de leite. Enfim, o fato é que temos uma demanda firme por milho e soja e com produtores bastante capitalizados, cadenciando a venda.
Além do preço das commodities, o que mais tem elevado os custos de produção de leite?
As principais altas foram no custo de concentrado como já falamos. Mas também estamos observando elevação no custo do alimento volumoso, com encarecimento de combustíveis, fertilizantes e defensivos. São insumos afetados pela taxa de câmbio, pelo preço do petróleo, pelo frete marítimo internacional, e todos estes fatores sugerem elevação.
A elevação do câmbio torna o leite brasileiro mais barato comparado aos preços internacionais. No entanto as importações estão em alta. Qual o papel do câmbio na atual crise?
No agronegócio geralmente a desvalorização cambial é positiva. Mas isso quando pensamos nas cadeias agroexportadoras como soja, café, laranja, etc. No caso do leite, apesar do câmbio segurar a importação, há um efeito direto em custos.
No segundo semestre de 2020 o câmbio não foi suficiente para segurar a importação. A alta dos preços domésticos e a competitividade dos produtos lácteos oriundos da Argentina e do Uruguai elevou muito nossas importações.
E isso ocorreu também no início de 2021, mas com volumes decrescentes. Neste início de ano, estamos vendo uma importação perdendo força e uma exportação crescendo. A alta dos lácteos no mercado internacional contribuiu para esse movimento.
Com relação à indústria, o que tem preocupado os laticínios?
A grande preocupação é a dificuldade em aumentar as margens e a agregação de valor. Por termos uma indústria muito fragmentada e sem poder de negociação junto aos varejistas, o setor acaba ficando pressionado em determinados momentos.
A existência de baixas barreiras à entrada no setor acaba gerando esse resultado de pouco poder de mercado. Quando a economia cresce de forma mais acentuada esse efeito é mitigado, pois há uma expansão da renda e do consumo. Mas quando crescimento econômico é baixo, os problemas se agravam.
O consumo de leite tem uma forte relação com a renda e o Brasil parou de crescer em 2014. Com isso, estamos praticamente estagnados no leite também. E quando você tem crises sequenciais o resultado é muito perigoso. O Brasil encolheu em 2015 e 2016, depois tivemos crescimento muito baixo no período 2017-2019.
Em 2020 veio a pandemia e mais crise econômica. Isso vai minando a capacidade de investimento das empresas nos diversos setores, afeta emprego, renda, consumo e assim por diante. No primeiro ano da pandemia tivemos uma forte contribuição fiscal, o que gerou um consumo importante de lácteos. Mas é algo que não se sustenta por si e acaba aumentando o endividamento público, que tem outras consequências econômicas negativas, como aumento de juros, por exemplo.
Houve um aumento do consumo de leite no primeiro ano da pandemia, como o consumidor está se comportando neste momento?
A situação neste início de 2021 está mais complicada. Ano passado tivemos um grande consumo das classes D/E com a liberação do Auxílio Emergencial. Mas perdemos boa parte dessa parcela da população por falta de renda. Começamos 2021 com um crescimento tímido de consumo e que está limitando aumentos mais robustos de preços e pressionando negativamente as margens de rentabilidade no setor.
O Sr. consideraria que o setor leiteiro foi o que menos sofreu com a pandemia dentro do agro?
Não vejo isso. No primeiro ano, o setor foi beneficiado com o aumento do consumo e melhoria das margens. Mas isso não se sustentou e já no final de 2020 o cenário piorou. O fato é que o mundo está crescendo rápido e as cadeias agroexportadoras estão aproveitando o momento, com maior remessa de produtos e a preços mais elevados.
Ou seja, uma combinação perfeita. Não é o caso do leite, que depende quase que exclusivamente da renda interna para crescer. Deveremos ter um ajuste de oferta para melhorar a condição atual de preços.
Quais lições que o setor lácteo, dentro e fora da fazenda, pode tirar desse período tão atípico e qual a tendência daqui para frente?
Vejo que existem várias lições, como a própria adaptação exigida pela pandemia, de como lidar com as incertezas e de como lidar com a expectativa de má notícia, está última muito presente no cotidiano da pandemia.
Nesse sentido, os maiores aprendizados estão relacionados a ação e cooperação. Ficar reclamando não ajuda em nada, mas agir sim. E vejo que o setor seguiu essa linha no primeiro ano da pandemia. Todos enfrentamos inúmeros desafios e o importante é buscar soluções para seguir adiante e com sucesso. No caso da cooperação, buscar boas parcerias no negócio é fundamental para lidar com a complexidade do mundo atual.
E a pandemia mostrou que a cooperação entre indivíduos, empresas e nações foi a arma mais poderosa para a busca de soluções, como a vacina da Covid-19. Para o futuro, essa cooperação será fundamental nos negócios para produzir com mais eficiente, para realizar melhores compras de insumos, para melhorar a comercialização e para agregar valor. Existem também tendências relacionadas à segurança dos alimentos, saudabilidade, meio ambiente, responsabilidade social, todos temas que precisam estar na agenda do setor.
Com menos pessoas frequentando bares e restaurantes, sua opinião, a pandemia foi capaz de modificar hábitos de consumo de lácteos?
Certamente que sim. Houve a substituição de alimentação fora do lar pela alimentação domiciliar, o que impulsionou a demanda por lácteos utilizados na culinária. Mas as mudanças de hábitos não ocorreram apenas pela menor presença em bares e restaurantes, e sim por uma série de mudanças que vivenciamos.
Com a pandemia, as famílias privilegiaram os gastos com alimentos. Além disso, ao passo que uma parcela da população teve ganhos de renda e passou a gastar mais com alimentos, outras tiveram crescimento de poupança devido a economias de outros gastos, como viagens e mesmo bares e restaurantes. Essas famílias acabaram privilegiando uma alimentação mais elaborada e mais prazerosa.
Enfim, tem sido um período com diferentes experiências de consumo. E vejo também que a pandemia acelerou algumas tendências como as compras online. É uma forma de comercialização que o setor lácteo precisa explorar mais. Existem outros temas relacionados a segurança do alimento e origem que tendem a ganhar força nos próximos anos.
O Sr. tem citado que é bem provável que uma nova ordem se estabeleça no agro brasileiro e mundial quando a nossa vida voltar ao normal. O que devemos esperar?
É crescente a cobrança por práticas de ESG (Ambiental, Social, Governança) no campo. A sociedade e os investidores buscam um modelo de desenvolvimento sustentável que considere essas questões, ou seja, a proteção ambiental, a responsabilidade social e maior transparência.
São questões que ganham peso na análise do investidor, no comércio global, e o Brasil tem um potencial enorme nessa direção, com agricultura de baixo carbono e produção de alimentos para abastecer grande parte da população mundial, sem subsídio.
Essa é a sinalização que estamos vendo para o futuro. As cadeias agroalimentares se movem no sentido de ganhos de produtividade para segmentação de mercado e customização do consumo e aí estamos falando de agregação de valor aos produtos. No caso do leite, a forma como ele é produzido, e por quem, ganhará cada vez mais importância.
Com isso, surgem as demandas por rastreabilidade, bem-estar animal, pegada de carbono, resíduo e reciclagem, sustentabilidade, produtos locais, produtos naturais, entre outras tendências. O consumidor busca essas informações e o setor pode utilizá-las como uma importante fonte de valor.