A qualidade do leite brasileiro é um assunto complexo para se avaliar por um único ponto de vista. Mesmo assim, que tal abordá-la pela ótica das publicações acadêmicas? Essa questão me deixou curioso e por isso topei o desafio de apresentar alguns dados. Se a qualidade do leite também lhe desperta interesse, fica aqui o meu convite para você avançar a leitura!
Já dizia o ditado que em terra de cego quem tem um olho é caolho. Por isso faço o alerta para não ficarmos restritos apenas à perspectiva acadêmica. O objetivo aqui foi analisar como um assunto tão complexo se reflete nos artigos científicos publicados.
A metodologia foi simples, pesquisamos artigos científicos no Google Acadêmico que abordavam a análise da qualidade do leite cru brasileiro desde 2002, ano de publicação da histórica Instrução Normativa 51. Ao longo desses anos, comparamos a evolução de diversos parâmetros de qualidade, como teor de sólidos, proteínas, gordura e outros. Aqui para o MilkPoint, o foco foi para as análises de CCS (Contagem de Células Somáticas) e CBT (Contagem Bacteriana Total). Artigos em inglês realizados no Brasil também foram analisados. Vale lembrar que só podemos afirmar se houve aumento ou diminuição de CCS e CBT, ou então se houve homogeneidade entre as regiões brasileiras, quando analisamos estatisticamente os dados. Quando um artigo analisa estatisticamente dados de outros artigos ele é chamado de metanálise. Foi o que fizemos.
Sessenta e três artigos entraram nos critérios de inclusão, gerando dados proveniente de aproximadamente 250 mil amostras de leite cru, os quais foram publicados entre 2002 e 2018. A publicação de dados acadêmicos sobre a qualidade de leite não foi homogênea em todo o país. Aproximadamente 80% dos dados vieram de estudos realizados em Minas Gerais, Goiás e Paraná. Confira o mapa abaixo para entender como a amostragem ficou distribuída pelo Brasil.
Figura 1. Quantidade de amostras de leite cru analisadas em artigos científicos publicados entre 2002 e 2018 nos estados brasileiros.
Infelizmente não conseguimos recuperar artigos que avaliaram a qualidade do leite nos estados de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Espírito Santo e toda a região Norte. Isso não significa dizer que essas regiões não possuem pesquisas sobre qualidade do leite. A interpretação correta é que não conseguimos artigos que atendessem nossos critérios. Para entrar em nossa pesquisa, os trabalhos precisavam ter algumas informações específicas, para que então pudéssemos analisar estatisticamente os dados. Esse critério deixava muitos artigos de fora. Concluindo, a diversidade de estudos científicos sobre a qualidade do leite não é a mesma entre os estados do Brasil.
Aumentando a rentabilidade com qualidade do leite. Assista na íntegra!
Também comparamos a CCS e a CBT entre os estados. As maiores médias de CBT foram provenientes de estudos realizados em Pernambuco, Maranhão e Sergipe. Nesses três estados, a contagem média de CBT foi 3 milhões de células por mL (6,47 log cel mL-1). Já as contagens médias de CCS foram mais uniformes entre os estados onde os estudos foram feitos, com resultados médios entre 103 mil e 830 mil (5,01 e 5,92 log cel mL-1) Confira na figura abaixo a distribuição geográfica da CBT e da CCS proveniente de artigos publicados entre 2002 e 2018.
Figura 2. Distribuição geográfica da contagem bacteriana total (CBT) e de células somáticas (CCS) de leite cru. Dados proveniente de artigos científicos publicados entre 2002 e 2018.
E durantes esses 18 anos, será que a qualidade do leite melhorou?
Compilando todos os artigos recuperados durante esse período, a contagem média das amostras de leite foi de 3,4 milhões cel/mL para CBT e 536 mil cel/mL para CCS, sem oscilações significativas ao longo dos 18 anos. Ou seja, não conseguimos detectar melhora ou piora nas contagens de CCS e de CBT. Veja a oscilação no gráfico abaixo:
Figura 3. Variação das médias de contagem bacteriana total (CBT) e de células somáticas (CCS) de leite cru. Dados proveniente de artigos científicos publicados entre 2002 e 2018.
Como ressaltado no início, analisar a qualidade do leite com informações obtidas de artigos científicos publicados possui suas particularidades. Alguns estudos, por exemplo, não informaram se as propriedades amostradas estavam ou não cadastradas em laticínios sob inspeção. Essa realidade pode afetar os resultados quando comparada aos estudos com amostragem estrita de produtores cadastrados em estabelecimentos inspecionados. Isso porque, produtores vinculados aos estabelecimentos formais devem ser monitorados periodicamente quanto à qualidade do leite, além de que usualmente são incentivados pelo pagamento por qualidade. Consequentemente, estudos com universo amostral restrito aos laticínios inspecionados tendem a ter melhores resultados microbiológicos.
Há também limitações temporais e geográficas, uma vez que o acompanhamento das publicações ao longo dos anos não é exclusivo de uma única região, sendo mais vulnerável às oscilações de resultados. Ou seja, quando falamos que os estudos analisaram amostras do Paraná, não significa que durante os 18 anos a amostragem ficou restrita a apenas uma região do estado. Matematicamente isso contribui bastante para a flutuação de resultados.
Portanto, o fato de que não houve variação nas contagens médias de CCS e CBT ao longo dos anos deve ser interpretada com parcimônia. Esse resultado não exclui a possibilidade de melhoria da qualidade microbiológica do leite brasileiro ao longo dos anos. O que se pode afirmar é que a melhoria de qualidade não é nítida, quando se analisa os dados provenientes de publicações científicas.
"O que se pode afirmar é que a melhoria de qualidade não é nítida, quando se analisa os dados provenientes de publicações científicas"
Esses resultados já foram aceitos para publicação em um periódico nacional, além de compor a dissertação de mestrado do aluno Rogério Luiz Vanot que oriento aqui na Unopar.
E você? Já esperava por esse resultado? Deixe nos comentários! Até a próxima!