Tenho participado de diversos debates relacionados à implantação de pagamento por qualidade e de implantação de programa de melhoria da qualidade do leite em indústrias de laticínios. O primeiro ponto da nossa conversa é entender que “pagamento por qualidade” não é sinônimo de “programa de melhoria da qualidade do leite”. Uma política de remuneração diferenciada pela qualidade do leite é apenas uma ferramenta importante de um bom programa de melhoria da qualidade do leite.
Fundamentado nessa premissa apresentada acima, trarei aqui uma síntese de minhas experiências vividas trabalhando qualidade de leite em massa, ou seja, com diferentes perfis de empresas e diferentes perfis de produtores. Como não sou pesquisador e nem acadêmico, vou me dar o direito de escrever com uma linguagem mais simples. Como a história é longa, nesse artigo vou apresentar a vocês quais são os principais entraves na implantação de um programa de melhoria da qualidade do leite e também faremos uma breve exposição de uma série de tópicos relacionados à implantação de um programa de melhoria da qualidade do leite compatível com a realidade de cada indústria e que serão abordados em alguns outros textos.
Entraves na implantação de um programa de melhoria da qualidade do leite
Em todos os debates que participei até hoje sobre o tema melhoria da qualidade do leite, pude perceber um consenso entre os gestores das indústrias e os produtores que trabalham a melhoria da qualidade do leite. Os poucos profissionais que vi discordarem que a qualidade do leite é importante, já saíram do mercado. Agora a pergunta que atormenta o mercado é quais são os desafios de colocar em prática um programa de melhoria da qualidade do leite uma vez que é consenso que isso é necessário e lucrativo? O que limita a indústria?
Farei uma afirmativa polêmica aqui. A melhoria da qualidade do leite no país está travada na política leiteira, ou seja, melhorar a qualidade do leite no Brasil não passa por simplesmente treinar os produtores, mas sim por criar condições de políticas leiteiras específicas para que os produtores QUEIRAM MELHORAR.
A técnica necessária para melhorar os indicadores de contagem padrão em placa (CPP), antiga CBT e contagem de células somáticas (CCS), pode ser compactada em um checklist de menos de uma página ou muito bem detalhada a nível operacional em uma microcartilha de menos de 20 páginas. Quando vou começar uma palestra de qualidade do leite, faço algumas perguntas sobre refrigeração, manutenção, limpeza e manejo de ordenha. Uma altíssima taxa dos produtores já sabe tudo que eu tinha para falar. E ai? É falta de conhecimento técnico da cadeia produtiva do leite? Não posso concordar com isso. Técnicas mais elaboradas como uso da cultura microbiológica para identificação de patógenos podem ser aportadas pela indústria ou mesmo contratadas pelo produtor. A questão é que a indústria não está oferecendo as condições necessárias de política leiteira direcionada à qualidade do leite para que o produtor queira melhorar.
Quando eu faço essa afirmativa de que a indústria não está oferecendo as condições necessárias de política leiteira direcionada para a qualidade do leite para que o produtor queira melhorar, ao mesmo tempo, apresento a vocês o primeiro entrave: o gestor da indústria acredita que essas condições são sinônimas de aumento no preço médio do leite.
Isso é um equívoco grave e está entre as principais causas de muitas empresas ainda não terem implantado um programa de melhoria da qualidade do leite.
Em empresas responsáveis, o preço médio do leite, chamado pelos gerentes de captação de mix, é definido antes de se rodar o pagamento de leite e não depois. As empresas que rodam o pagamento de leite e depois descobrem quanto de dinheiro elas precisarão para pagar os produtores, são as que atrasaram ou atrasarão o pagamento, ou pior, já saíram do mercado dando prejuízo aos produtores.
Logo, se o preço médio do leite a ser pago aos produtores é definido antes de montar o pagamento de leite, não podemos afirmar que seja verdade que o preço médio vai aumentar, pois se trata de uma decisão prévia que não leva em consideração os resultados de qualidade dos produtores.
Já trabalhei em política leiteira e conclui que ao longo do ano sempre terá uma empresa de laticínios ou cooperativa pagando mais que a que você está, seja você o comprador de leite ou o fornecedor. E, para consolar, sempre haverá alguém pagando menos. O que não dá para uma indústria fazer é querer ter o maior preço comparado com todas as outras empresas o tempo todo.
Vou trazer uma metáfora que pode facilitar seu entendimento sobre o tema. Imagine que você convida cinco amigos para tomar cachaça e afirma que, para cada cachaça que um deles tomar, você toma uma também. Quando cada um deles tiver tomado apenas uma cachaça, você já terá tomado cinco. Você não passará da segunda rodada. Espero que tenha ficado mais claro para você o que acontece com a indústria que acha que, para manter o produtor com ela, é necessário SEMPRE, ter o maior preço que todos os outros concorrentes. Logo, é necessário refletir que seu fornecedor não está com você apenas pelo preço do leite que você paga. Em alguns casos ele é fiel à indústria apenas pela segurança e não, pelo que ela paga.
Reforçando: o nosso primeiro entrave é o gestor achar que pagar por qualidade sobe o custo da empresa. Isso acontecerá apenas quando a indústria colher os resultados da melhoria da qualidade do leite e tiver melhores condições de remunerar o produtor (dividir o lucro), pois o dinheiro em caixa afetará a decisão do gestor, possibilitando, agora sim, uma melhor remuneração no mix.
O primeiro entrave tem alta conexão com segundo, que é o gestor acreditar que ele vai perder todo seu leite se ele implantar uma política de pagamento por qualidade, associada à cobrança dos produtores no campo, chamada vulgarmente de “amolação”. Isso pode ser uma verdade se a tabela de pagamento por qualidade não for compatível com a realidade da empresa e seus fornecedores. Isso pode ser verdade se quem faz a política leiteira da empresa não tem contato com os produtores.
Olha como é controverso: tenho visto as empresas que NÃO têm uma política que valoriza a qualidade do leite, perdendo SEUS MELHORES FORNECEDORES (bom volume, boa qualidade e boa logística) para os concorrentes mais exigentes e que estão avançados na política de valorização da qualidade. Enquanto que, se ela tivesse implantado um sistema de valorização da qualidade do leite, ela poderia - se fosse estratégico - perder apenas os fornecedores de qualidade ruim, pois seriam os afetados pelo preço baixo.
O terceiro entrave é a indústria achar que a culpa dela não trabalhar a qualidade nos fornecedores é da concorrência. Em cenários de competição desleal por conta de crimes como captação de leite com antibióticos, sonegação de impostos, entre outros, a sua única opção é a denúncia, mas vamos falar aqui dos concorrentes que operam nessa mesma condição de mercado.
Sempre vai existir mudanças de estratégias da concorrência frente às condições vivenciadas por ela. Exemplo: a empresa passa por uma ampliação e precisa de leite. Para captar, teve que aumentar o preço e diminuir o rigor na cobrança da situação ATUAL do leite do produtor-alvo. Observe que não necessariamente, ela abre mão da qualidade. É uma condição de momento, ou seja, esse produtor pode ser trabalhado no futuro. A situação de crescimento de uma empresa compradora de leite é gerida por ela e o nível de flexibilização da captação do leite em relação à qualidade será influenciado pela relação oferta/demanda. A isso chamamos de mercado.
Se a empresa quer implantar um sistema de pagamento por qualidade do leite e o concorrente prospecta os fornecedores dela com propostas que não consideram a qualidade, como conviver com isso? Novamente volto na questão de que é necessário a empresa que pleiteia implantar um programa de melhoria da qualidade do leite propor uma política leiteira direcionada que faça o produtor querer melhorar a qualidade do seu leite. Um produtor querer mudar a qualidade do leite não é sinônimo de querer mudar de comprador, desde que exista junto do comprador a tal política que estamos insistindo.
O quarto entrave é a indústria achar que o produtor é ignorante, está falido, não vai mudar e/ou não vai aceitar mudanças. Rodando fazendas pelo Brasil todo, se tem uma coisa que eu aprendi, foi a não duvidar da inteligência e criatividade dos produtores de leite. Agora, de fato, o que falta a eles é liderança para que possam ser mais unidos ao redor de uma causa, que no caso da qualidade do leite, acho que essa liderança deve ser assumida pela indústria, pois quando ela é assumida por outros, acaba trazendo prejuízos mais graves à cadeia produtiva do leite.
O quinto entrave é a indústria achar que a culpa é da fiscalização. Acreditar que tem que fazer uma lei que impeça os produtores de mudar de laticínio se eles estiverem com a qualidade do leite ruim. Nós não temos uma força de trabalho de fiscalização e nem recursos para fiscalizar isso. Essa lei serviria apenas para aumentar o número de fraudes sobre as amostras de leite.
O sexto entrave se refere às indústrias que já têm pagamento por qualidade e têm equipe de assistência a campo. Algumas empresas não têm estratégias de gestão da equipe de campo na área de qualidade do leite. E aí esses técnicos acabam sendo absorvidos pelo departamento de política leiteira, assim, eles passam a fazer o mesmo trabalho que os gerentes de captação de leite.
Para ser mais claro, os técnicos da qualidade do leite passam a acreditar em todos os entraves citados acima, o que culmina em não acreditarem mais que podem conseguir os resultados para os quais foram contratados. Só fazendo uma observação: ter pagamento por qualidade e ter um funcionário a campo não quer dizer que a empresa tem um programa de melhoria da qualidade do leite. Veja que isso pode existir e a qualidade do leite nada evoluir, já tem muitas empresas nesse cenário.
O sétimo e último entrave que trarei para discussão (certamente temos outros) é a condição balança comercial negativa. Isso significa que somos importadores de leite. Como isso impacta na qualidade? Vamos fazer uma breve comparação com a Nova Zelândia que exporta a maior parte do leite que ela produz. Imagina se eles errarem na qualidade e o mercado internacional parar de comprar leite deles? Seria uma tragédia comercial. Isso fez com que, desde que se começou a ter um excedente de produção, fossem feitos ajustes e seleção dos produtores que ficaram no mercado, até que se atingisse um alto nível de qualidade do leite, passível de ser absorvido no mercado internacional.
No Brasil, o leite que é produzido não supre o mercado interno. Logo, falar que o Brasil não exporta leite porque não tem qualidade é de certa forma uma mentira, pois se tivesse leite para exportar, a adaptação do mercado seria imposta, assim como foi na Nova Zelândia. Resumindo a falta de um excedente de leite não permite a seleção dos melhores fornecedores.
Diante dos entraves apresentados acima, sendo eles variáveis de mercado, controláveis ou incontroláveis, certos ou errados, equivocados ou não, a indústria de laticínios brasileira precisa trabalhar a melhoria da qualidade do leite. Como vencer essas dificuldades e montar um programa de melhoria da qualidade do leite compatível com cada indústria? Qual a melhor tabela de pagamento? Como não perder fornecedores na implantação do programa? É mais viável para a empresa manter o produtor dela preso em sua baixa qualidade do leite? Quais são as condições de cenário de mercado, citadas no corpo do texto várias vezes, que a indústria deve viabilizar para que o produtor queira melhorar o leite fornecido?
Isso é que vamos discutir em nossos próximos textos.
Prezados leitores, como afirmei no começo, trago aqui minhas observações e experiências. Não sou pesquisador e fiz questão de não referenciar nada. Aproveito o momento para chamar a atenção dos pesquisadores e entidades para tentar ir mais à fundo no entendimento dos motivos que retardam nossos avanços na melhoria da qualidade do leite. Não sou o dono da verdade, mas espero que as reflexões possam aquecer as nossas próximas discussões sobre o tema.