A origem da produção de queijos no Brasil e no estado de Minas Gerais permanece discutível até os dias de hoje. Ainda assim, existem alguns pontos que são considerados consenso entre diversos autores. Não há relatos de que os indígenas brasileiros tenham fabricado queijos ou alimentos semelhantes, até porque esses povos nativos sequer praticavam algum tipo de pecuária, mesmo rudimentar. Também não existiam vacas, ovelhas ou cabras nativas no território recém descoberto (HUE, 2021).
O gado leiteiro e de outros tipos foi trazido pelos colonizadores portugueses logo após sua chegada ao Brasil possivelmente proveniente de suas colônias da costa africana, como Cabo Verde, Açores e Madeira.
É possível imaginar também que, além de gado, tenham sido trazidos ao Brasil trabalhadores com experiência no manejo de animais. E como os portugueses eram consumidores habituais de queijo, possivelmente havia entre os colonizadores pessoas com experiência também na fabricação de queijos.
Assim, é provável que a fabricação dos primeiros queijos brasileiros tenha ocorrido imediatamente após a chegada do gado leiteiro, inicialmente para consumo das famílias e, posteriormente, para aproveitamento de uma produção de leite excedente, conservação e comercialização.
São Paulo ou Bahia? Por onde chegou, afinal, o gado leiteiro das Minas Gerais?
Simonsen (1978) afirma que o gado bovino foi introduzido no Brasil em 1534 na capitania de São Vicente, litoral sudeste do Brasil, atual estado de São Paulo. Esse gado, então, seria o precursor dos rebanhos que povoaram o Sul do país, podendo ter alcançado o território que posteriormente formaria Minas Gerais.
É certo também que diversos outros desembarques de gado bovino aconteceram na costa brasileira. Em 1550, Tomé de Souza, governador-geral da colônia e fundador da cidade de Salvador, localizada no atual estado da Bahia, ordenou uma expedição às ilhas de Cabo Verde com a exclusiva missão de buscar gado, provavelmente trocado por madeira de pau-brasil (NETTO, 2011).
É um fato histórico que a interiorização das pessoas e a consequente colonização dos territórios mais profundos da nova colônia foram acontecendo paulatinamente e de maneira relativamente desordenada a partir de São Paulo e da Bahia, até aproximadamente o final do século XVII.
Essas incursões no sertão mais profundo da colônia se intensificaram com as chamadas “entradas” e “bandeiras”, expedições financiadas pela coroa ou por interesses privados, com objetivo primário de tomar posse de fato do território, além de buscar riquezas para explorar (Figura 1).
Figura 1. Itinerários das principais expedições oficiais partindo do litoral do Nordeste e da região de São Paulo, responsáveis pela interiorização de Minas Gerais.
Nota: expedições a partir do litoral conhecidas como “entradas”, normalmente financiadas pelo governo. Expedições a partir de São Paulo conhecidas como “bandeiras”, sendo boa parte realizadas por iniciativas privadas. Fonte: DE HOLLANDA (2003).
Ainda que não seja possível demonstrar, é possível que grande quantidade de gado domesticado tenha se expandido gradativamente a partir do litoral nordeste do Brasil para o interior e para o sul, ao longo das margens do Rio São Francisco, até chegar ao território da atual Minas Gerais (PINEDA et al., 2021). Essa ideia se baseia em relatos do século XVII da existência de inúmeros currais e de intensa exploração da pecuária ao longo do curso desse rio.
A exploração pecuária se aproveitava da abundância de água e alimento para o gado em suas margens férteis e acabou por batizar o Rio São Francisco como o “Rio dos Currais” (ARRAES, 2013). Ao longo desse caminho, foram se fixando os rebanhos bovinos, a produção de leite e, com ela, a tradição em produzir queijos.
A Figura 2 apresenta os caminhos que levavam da Bahia à Minas Gerais e a localização em seus arredores de três regiões atualmente reconhecidas como produtoras de Queijo Minas Artesanal (QMA). Dentre essas regiões está a região do Serro, considerada por muitos o berço do QMA. Existem documentos que relatam a passagem de queijos provenientes do Arraial do Tijuco (antigo nome da cidade do Serro), comarca do Serro Frio, por postos de fiscalização do Reino no ano de 1772 (IPHAN, 2014).
Figura 2. Caminhos da Bahia a Minas Gerais.
A: Diamantina (Arraial do Tijuco), B: Serro (Vila do Príncipe), C: Região de Entre Serras da Piedade ao Caraça. Fonte: Adaptado de SANTOS (2001)
Da mineração à pecuária: por caminhos tortuosos e esburacados Minas encontra sua vocação
Apenas a partir da descoberta do ouro em larga escala é que se intensifica o processo de territorialização de Minas Gerais. Rapidamente surgiram diversos núcleos mineradores e, a partir deles, as cidades.
Com isso, houve uma intensa dinamização da economia local e incentivo à criação de animais e de áreas produtoras de alimentos e outros produtos que garantiriam o abastecimento desses núcleos mineradores. Estabelecimentos comerciais, tropas e caminhos foram sendo criados e consolidados, e com eles a distribuição de produtos alimentícios. Dentre esses alimentos, o queijo mineiro ainda tinha a produção incipiente (PAULA, 2000).
Com o início da exaustão das minas e o declínio do ciclo do ouro e diamantes, na segunda metade do século XVIII, parte da população da Capitania de Minas passou a adentrar ainda mais para o interior em busca de novas jazidas, o que se demonstrou pouco frutífero.
Assim, a população mineira começou a se ajustar à nova realidade e a buscar alternativas econômicas para o seu sustento, destacando-se uma notável expansão do setor agrícola. A atividade pastoril aumentou consideravelmente a ocupação territorial para a fixação de gado, se afastando gradativamente dos antigos centros mineradores.
O aumento da produção de leite ocasionada pelo natural aumento dos rebanhos e pela ocupação de novas áreas com condições de clima, relevo e vegetação nativa mais adequadas fez aumentar a importância da pecuária leiteira nessa nova economia baseada nas atividades rurais (RESENDE, 1982). Com a inexistência de métodos eficazes de conservação, o leite era um alimento facilmente perecível nas condições da época.
O escoamento da produção também era bastante difícil, especialmente em função da precariedade do transporte e dos caminhos naquele tempo. Soma-se a esses fatores a dificuldade inerente ao relevo das regiões serranas onde a atividade se fixou, de maneira geral. Assim, a necessidade de conservar os nutrientes do leite e possibilitar a comercialização em distâncias maiores favoreceu a produção de queijos, que passou a ganhar destaque em diversas localidades espalhadas pelo estado de Minas Gerais (IPHAN, 2014; LEANDRO, 2008).
Com o passar do tempo, diversas dessas regiões se consolidaram como produtoras de queijos, cada qual com suas características e singularidades, relacionadas à localização da propriedade, clima, pastagens e modo de fazer.
Algumas dessas regiões atualmente são reconhecidas por lei como produtoras de queijos artesanais, possuindo caracterização histórica da sua produção tradicional. É o caso, por exemplo, das dez regiões produtoras de QMA reconhecidas atualmente: Araxá, Campo das Vertentes, Cerrado, Diamantina, Entre Serras da Piedade ao Caraça, Serra da Canastra, Serra do Salitre, Serras da Ibitipoca, Serro e Triângulo Mineiro (COSTA et al., 2022).
A Figura 3 mostra a localização dessas regiões produtoras de QMA e os trajetos aproximados do Caminho Velho, Caminho Novo, Caminho dos Diamantes. Esses caminhos formavam a chamada Estrada Real e cortavam a Capitania de Minas Gerais no século XVIII. Assim como o Caminho do Comércio, criado por volta de 1804, essas rotas ligavam os principais centros mineradores e de produção de alimentos ao litoral do atual estado do Rio de Janeiro.
Podemos perceber que as mais antigas regiões produtoras de QMA se consolidaram nos arredores desses caminhos, certamente impulsionadas pelo crescente trânsito de pessoas e mercadorias. Já a região mais a oeste, onde se localiza o Triângulo Mineiro, por exemplo, foi colonizada e anexada ao atual estado de Minas Gerais lentamente e bem mais tarde, possivelmente consolidando a produção de queijos posteriormente (LOURENÇO, 2005).
Figura 3. Regiões produtoras de QMA e os caminhos Velho, Novo, dos Diamantes e do Comércio.
Fonte: Elaborado pelos autores (2022)
Serra da Estrela ou Açores? De um passado controverso a um presente delicioso
O modo de fazer do queijo de Minas, como era denominado de maneira geral na época, tem sua origem desconhecida. Possivelmente era produzido de maneira rudimentar por meio da coagulação espontânea do leite ou com a utilização de coagulantes extraídos de mamíferos selvagens ou de bezerros. Provavelmente tratava-se de um queijo de massa pouco consistente e de alta umidade, semelhante ao atual queijo Minas Frescal.
Com a demanda de um mercado consumidor crescente e a necessidade de transportar esse queijo por distâncias maiores e por mais tempo, as técnicas de produção foram evoluindo e se adaptando, apropriando-se ainda de algumas técnicas de produção de queijos portugueses, trazidas pelos colonizadores.
Com o tempo, passou-se a produzir um queijo mais consistente e com menor umidade, através da prensagem manual da massa e também com a utilização de uma porção do soro da produção do dia anterior, chamado de “pingo”.
A inspiração para o modo de fazer desse novo queijo, que daria origem ao atualmente denominado QMA, permanece controversa. A explicação mais aceita a respeito dessa origem diz que sua receita foi inspirada nas técnicas típicas da Serra da Estrela, em Portugal (MENESES, 2006).
Essa ideia se baseia, dentre outros fatores, pela existência de fartos registros da presença de portugueses da região central de Portugal no Brasil colônia, principalmente do Minho, onde se fabrica o queijo típico da Serra da Estrela. Também são coincidentes a prensagem manual e a coleta do pingo.
Porém, Netto (2011) afirma que não há evidências na literatura que demonstrem que o modo de fazer do queijo de Minas tenha origem na Serra da Estrela. Esse autor argumenta ainda que esse queijo da região central de Portugal é fabricado apenas sazonalmente, com leite de ovelhas e com tempo de maturação muito superior ao queijo de Minas. Para o queijo fabricado em Minas Gerais, há cerca de 300 anos, utiliza-se o leite de vaca, podendo ser consumido fresco ou com maturação pequena.
Mais distinta ainda é a coagulação do leite, que no Brasil era feita com a utilização de fragmentos de estômago de alguns mamíferos, atualmente substituídos por um coalho industrial ou coagulante químico, enquanto que o queijo da Serra da Estrela utiliza até os dias atuais a flor do cardo para esse fim. Assim, ainda de acordo com Netto, o processo produtivo do QMA e de alguns outros queijos artesanais mineiros seria inspirada no modo de fazer dos açorianos.
Essas pessoas provenientes possivelmente da região da Ilha do Pico, nos Açores, migraram para o Brasil no século XVIII, especialmente para a chamada “Minas de ouro”. Eram tipicamente agricultores e pecuaristas e possuíam técnica aprimorada de produção artesanal de queijo a partir de leite cru de vaca, semelhante à do queijo de Minas.
De qualquer forma, com o passar das gerações, o modo de fazer do queijo de Minas Gerais foi sendo difundido, adaptado e aperfeiçoado nas diversas regiões do estado. Cada produtor, em cada região, foi acrescentando e adaptando sua receita. Associado a isso, as condições de clima, relevo, microbiota autóctone, entre outros, foram se somando e ampliando a variabilidade de sabores e características sensoriais dos queijos mineiros.
Com o passar dos anos e das gerações e com a gradativa chegada ao Brasil de imigrantes de diversos outros países como italianos e dinamarqueses, foram sendo originados os tradicionais e típicos queijos artesanais mineiros (QAM), produzidos a partir de leite de vaca cru e com uma grande variedade de tipos, processos de produção e características distintas.
Hoje, os QAM são considerados patrimônio imaterial do Estado e do Brasil, aclamados mundialmente pelos seus atributos sensoriais e de qualidade e protegidos de maneira merecida por leis e regulamentos oficiais. Mas será que sempre foi assim? Bom, essa já é uma outra prosa...
Aceita mais um café e um pedacinho de queijo?