Quando observamos quedas drásticas no teor de gordura do tanque, geralmente valores que vão abaixo de 3,3%, ou inversão na relação entre a concentração de gordura e proteína, isto é, a razão do teor de gordura e proteína é menos que um (gordura/proteína<1) podemos estar identificando um grande desafio na produção de leite conhecido como DGL ou depressão na gordura do leite.
A DGL é causada por mudanças específicas no padrão de fermentação ruminal. Nesse caso, alterações de biohidrogenação ruminal de ácidos graxos insaturados, provenientes da dieta, resultam na passagem para o intestino, de novos subprodutos intermediários, que subsequentemente, causam redução na síntese de gordura pela glândula mamária. Entre todos os fatores nutricionais que possam comprometer a produção de ácidos graxos pela glândula mamária, resultando em DGL, dois são fundamentais: oferta de ácidos graxos poli-insaturados da dieta e alteração no padrão de fermentação ruminal.
Nos mais variados sistemas de produção de leite no Brasil, a baixa oferta e qualidade do volumoso tendem a ser substituídas por maiores níveis de concentrado na dieta, e estes grãos, além da grande quantidade de amido e carboidratos não fibrosos (CNF) altamente fermentescíveis, podem apresentar maiores concentrações de óleos e gorduras, provenientes principalmente de subprodutos de oleaginosas, tais como soja, algodão, amendoim, girassol e canola.
Dessa forma, os baixos valores de sólidos encontrados no nosso leite estão intimamente ligados aos inúmeros desafios de manejo na rotina diárias das nossas fazendas. A manutenção de níveis ótimos de produção de gordura no leite representa valores que vão além da remuneração feita pelo laticínio, uma vez que a capacidade de síntese de ácidos graxos pela glândula mamária representa, inclusive, um importante marcador de saúde, e consequentemente, produtividade do rebanho.
Síntese de gordura no leite
A gordura do leite é composta por dois grupos principais de ácidos graxos. Geralmente, 50% dos ácidos graxos do leite são formados por ácidos graxos de cadeia longa, isto é, maiores ou iguais a 16 carbonos. Os outros 50% são formados por ácidos graxos de cadeia curta e média, ou seja, menores ou iguais a 14 carbonos. Os ácidos graxos de cadeia longa (>16 C) são provenientes tanto da quantidade de óleo e gordura da dieta, como também da gordura originada na queima da reserva corporal. Ambos são captados pela glândula mamária e incorporados à gordura do leite.
Os ácidos graxos de cadeia curta (<14 C) são sintetizados pela glândula mamária, por precursores como acetato e butirato, através de um mecanismo conhecido por “de novo síntese”. Quando ocorre DGL, os ácidos graxos que apresentam concentração reduzida são aqueles com 14 C ou menos. Esse resultado é um indicativo que a DGL ocorre quando a própria glândula mamária diminui sua própria produção de gordura (Figura 1)
Biohidrogenação ruminal
Mesmo que, geralmente, dietas de ruminantes contenham baixa concentração de óleos e gorduras quando comparadas com as dietas de outras categorias animais, o fornecimento de alguns tipos de forragem, grãos, suplementos a base de óleos e outros subprodutos para vacas de leite podem resultar em significante ingestão de ácidos graxos poli-insaturados. Os ácidos graxos provenientes da dieta na sua maioria são esterificados na forma de triglicerídeos. Uma vez no rúmen, os ácidos graxos são hidrolisados e os ácidos graxos insaturados resultantes passam a ser isomerizados, quando ocorre mudança da posição da dupla ligação, e biohidrogenados, quando ocorre remoção da dupla ligação ou insaturação (Figura 2).
Figura 1. Síntese de ácidos graxos pela glândula mamária.
Figura 2. Exemplo de triglicerídeos e de ácido graxo insaturado.
É importante lembrar que a extensão da biohidrogenação e a formação de ácidos graxos intermediários são determinadas pelas propriedades de cada fonte de gordura, tempo de retenção no rúmen e características da população microbiana. Fatores inerentes à dieta que modificam o padrão de fermentação ruminal, principalmente a alta concentração de amido, alta concentração de óleos e inclusão de monensina sódica alteram o metabolismo ruminal de ácidos graxos, resultando numa população microbiana que utiliza caminhos alternativos para biohidrogenação. Quando esses caminhos alternativos não se completam, o risco de DGL aumenta.
Os ácidos graxos do tipo trans- são metabólicos intermediários normalmente encontrados no líquido ruminal (Figura 3). Eles são sintetizados durante o processo de biohidrogenação de ácidos graxos poli-insaturados pelos micro-organismos do rúmen. Uma vez que a hidrogenação de ácidos graxos insaturados é incompleta, a passagem de ácidos graxos trans- para o duodeno aumenta.
Figura 3. Biohidrogenação durante fermentação ruminal normal e alterada.
Depressão da gordura do leite
Pesquisadores das universidades de Cornell e Maryland observarem que a DGL está relacionada com a quantidade de ácidos graxos intermediários ou do tipo trans- sintetizados no rúmen, absorvidos pelo intestino delgado e incorporados pela glândula mamária na gordura do leite. Quando as concentrações de ácidos graxos trans- do leite aumentam, a concentração total de gordura do leite diminui (Figura 4). Observe que após a infusão de ácidos graxos do tipo trans-, o teor de gordura caiu de 3,3 para 2,6% e de 4,1 para 3,2% nos experimentos de Cornell e Maryland, respectivamente.
Figura 4. Concentração de gordura no leite após infusão de ácidos graxos do tipo trans-:
Concentração de gordura na dieta
Aumentar a concentração de ácidos graxos insaturados na dieta pode causar inúmeras mudanças na distribuição da população microbiana e alterações características fermentativas do rúmen. Uma vez que algumas populações de micro-organismos ruminais são mais sensíveis que outros, essas mudanças redirecionam a forma que a biohidrogenação acontece, causando acúmulo de ácidos graxos trans-, resultando em DGL. Na figura 5 podemos observar algumas das principais fontes de ácidos graxos insaturados na dieta de bovinos de leite no Brasil.
Considerando dietas típicas brasileiras em que a fonte de concentrado é basicamente milho, soja e algodão; e a fonte de volumoso é silagem de milho e gramíneas, a concentração de ácidos graxos insaturados, principalmente aqueles com duas ligações ou mais é bastante abundante. Dessa forma devemos realmente ser cautelosos em qualquer inclusão ou mudança de níveis de gordura da dieta, uma vez que pequenas mudanças podem causar grandes alterações na fermentação e microbiota ruminal, resultando em DGL.
Estudos realizados por pesquisadores na Universidade de Michigan ilustram muito bem a intensidade da DGL quando fontes de ácidos graxos insaturados é parte da alimentação de vacas em lactação. Ainda, quanto mais insaturações conter as fontes de gordura adicionadas à dieta, mais acentuada a queda nas concentrações de gordura do leite (Figura 6).
Figura 5. Composição de ácidos graxos de ingredientes típicos em dietas de vacas de leite no Brasil.
Figura 6. Efeito da adição de diferentes fontes de gorduras, de acordo com o grau de insaturação, em dietas de vacas de leite em lactação.
Alternativas para driblar a DGL
Recentemente, pesquisadores da Esalq, Universidade de São Paulo, em Piracicaba, demonstraram os efeitos da suplementação de duas fontes distintas de gordura inerte na alimentação de vacas de leite cruzadas em sistema de pastejo rotacionado ao longo da lactação e seus efeitos na produção de leite e sólidos em geral (Figura 7).
Figura 7. Produção e composição de leite de vacas suplementadas com gordura inerte durante a lactação.
Em relação ao controle, ambas as fontes de gordura aumentaram a produção de leite diária, e ainda quando comparada às duas fontes, a suplementação de óleo de palma foi superior à soja. Uma vez que o óleo de soja é rico em gordura poli-insaturada (ver descrição da figura 5), principalmente ácido linoleico, esperava-se as vacas suplementadas com essa fonte apresentassem DGL, porém, é interessante frisar que os efeitos da DGL são corrigidos quando outra fonte de gordura - no caso óleo de palma - é utilizada.
O óleo de palma apresenta mais de 50% de gordura saturada, que por não apresentar duplas ligações, afeta de maneira mínima a biohidrogenação e consequentemente proporciona aos animais uma produção de leite pela glândula mamária adequada. Mais uma vez observa-se como o aumento de óleos e gordura ricos em ácidos graxos poli-insaturados pode comprometer o teor de gordura no leite, principalmente em dietas típicas brasileiras.
Considerações finais
No artigo de hoje apresentamos o que é e como acontece a chamada DGL, e como a concentração de ácidos graxos poli-insaturados pode afetar a síntese de gordura pela glândula mamária. Suplementação de gordura é comumente utilizada para aumentar a densidade energética da dieta e otimizar a produção de leite. Nem todas as fontes de óleos e gordura disponíveis para alimentação de bovinos são iguais. Conhecer que tipo de ácidos graxos e o processo como são produzidos e extraídos de cada fonte é importante na hora da tomada de decisão da inclusão ou não desses produtos nas dietas de nossas vacas.
De maneira geral, fontes de gordura oriundas de óleo de palma que apresentam uma concentração de ácidos graxos saturados e monoinsaturados maior que de outras fontes vegetais como soja, girassol e milho favorecem a concentração de gordura no leite em dietas de baixa quantidade e qualidade de forragem com alta concentração de grãos. Realidade muito comum em dietas de vacas em lactação no Brasil. Lembre-se de considerar que os potenciais efeitos da suplementação de cada tipo gordura nas dietas de vacas de leite é ferramenta essencial para maximizar consumo, produção de leite e ainda evitar a prevalência de DGL, mantendo assim teores adequados de gordura no tanque.