Perdemos hoje o Professor Vidal Pedroso de Faria. Perdemos, no coletivo mesmo, porque perdeu a pecuária leiteira do Brasil.
Muitos se tornam professores, descobrem coisas inovadoras, escrevem artigos, dão palestras, ganham prêmios. Mas poucos, verdadeiramente poucos, deixam um legado. E o legado do Prof. Vidal, quando se fala na zootecnia e na produção de leite, é o maior possível.
A razão dessa afirmação óbvia para todos que conviveram com ele não está somente na sua capacidade técnica, mas sim na maneira como ele formou um número enorme de técnicos que, hoje, fazem a revolução por que passa a pecuária leiteira.
E ele tinha plena consciência disso. Em 2004, escreveu aqui no MilkPoint que sua maior realização era “ter contribuído como professor para formação de bons técnicos e verificar que vários são hoje considerados expoentes em seus campos. A realização do professor é encontrar técnicos que suplantam o mestre”.
Vidal foi, sem sombra o de dúvida, o que os gestores chamam de líder servidor, cuja missão é fazer com que seus liderados atinjam todo o seu potencial e, quem sabe, superem o mestre. Há aquele ditado que diz que, “sob uma árvore frondosa demais, nada cresce embaixo”. Vidal foi essa árvore frondosa, mas ao mesmo tempo conseguiu a proeza de criar uma floresta exuberante a partir de seus ensinamentos.
Minha relação com ele começou na graduação na ESALQ, já no final do curso, quando fui cursar a esperada disciplina Bovinocultura Leiteira. Nunca fiz estágio com ele e não tínhamos naquela época uma proximidade. Eu era meio autodidata, ainda na república eu assinava a Hoard’s Dairyman, que chegava a cada 15 dias de Wisconsin para Piracicaba (não havia internet). E fazia estágio em nutrição, com o Prof. Celso Boin, que depois se tornou meu sócio na AgriPoint. Na disciplina do Prof. Vidal, muitas vezes na petulância dos 20 anos, eu desafiava alguns dos conceitos do mestre, que sempre era paciente e gostava de uma boa discussão técnica. Aprendi muito com ele e ali começamos a criar uma afinidade, acredito.
Depois de formado, o Prof. Vidal teve uma contribuição decisiva na minha trajetória. Fomos juntos dar palestras em um dia de campo em Resende/RJ, creio que no final de 1993, organizado pelo seu pupilo Harold van Caspel (o “Fenemê”), grande amigo. Na época, eu estava abrindo o mercado de polpa cítrica no Brasil e a palestra era sobre o uso da polpa na alimentação das vacas. Na ocasião, em função do frete, do ICMS e dos custos relativos, não compensava usar a polpa como substituta energética nas dietas no Rio de Janeiro. E, para surpresa geral, eu disse isso na palestra que teoricamente era para vender o meu produto.
Na volta, eu dirigindo, o Prof. Vidal me disse que nunca havia visto um vendedor não recomendar o produto...mas que isso tinha gerado credibilidade e aí perguntou se eu não teria interesse em apresentar a polpa cítrica (que, na época, ninguém usava aqui) para o Comitê de Compras do Sistema Paulista, que reunia mais de 2 dezenas de cooperativas em SP e MG. Vidal tinha grande influência lá e abriria as portas, como de fato fez. O resto, é história: a polpa se disseminou no Brasil, eu havia criado minha primeira empresa e as bases para anos mais tarde começar a AgriPoint.
Teria dado certo mesmo sem esse empurrão? Talvez sim, mas naquele momento, que lembro como se fosse hoje, eu tive a exata noção da ajuda que estava recebendo e da importância que ela poderia ter.
Anos mais tarde, já aposentado, o Prof. Vidal se tornou colunista do site, e nesse período conversávamos com frequência a respeito da cadeia do leite, sempre uma experiência enriquecedora para ambos – afinal, eu já estava adquirindo minha própria visão e conteúdo também, e ouso dizer que ele ouvia com atenção as minhas contribuições.
Ao conceber o Prêmio Impacto que, em parceria com a Itambé, homenagearíamos um técnico de destaque na abertura do Interleite Brasil, pensei imediatamente que o Prof. Vidal deveria ser o primeiro agraciado. Mas não dependia de mim. A votação era em 2 turnos pela internet, mas o resultado foi o esperado: o Prof. Vidal ganhou com facilidade, impulsionado com certeza pela campanha de todos aqueles técnicos que ele formou. Um deles, aliás, que estava no segundo turno da “eleição", me ligou pedindo para tirar o seu nome do pleito, porque não poderia de forma alguma competir com o mestre. O mestre estava em outra dimensão. Tal era o respeito que o Prof. Vidal inspirava.
Jacques Gontijo, da Itambé, o Prof. Vidal Pedroso de Faria, e eu, na entrega do Troféu Impacto, em 2010
Um aspecto que me chamou a atenção na convivência com ele é que, ao contrário de muitos que, ao envelhecer, ficam mais rígidos em suas opiniões e mais cheios de certeza, o Prof. Vidal parecia cada vez mais aberto a ouvir, típico de quem de fato atinge um grau superior de sabedoria (“só sei que nada sei”). E ele gostava de acompanhar os textos e debates no MilkPoint, que contribuíam de alguma forma para manter sua cabeça funcionando e o interesse na cadeia leiteira que, finalmente, se transformava.
Em uma das últimas conversas, vi que ele tinha a percepção dessa transformação em curso, e espero que ele tenha computado para si parte desse mérito. Para mim, era claro que sua obra estava enfim surtindo os frutos de décadas de pregação para um setor que não estava preparado para evoluir. Todo aquele conhecimento acumulado e aqueles técnicos “melhores que o mestre” encontraram um ambiente de mercado em que a cadeia do leite poderia deslanchar em direção ao seu potencial, ainda que com velocidade lenta e com heterogeneidade.
Há alguns anos, tive um insight de fazer mais uma homenagem em vida. Transformaria o Troféu Impacto em Troféu Vidal Pedroso de Faria. Liguei para ele pedindo autorização, sem realmente saber se ele iria gostar da ideia. Foi uma de nossas últimas interações, mas o Troféu ganhou enfim o nome de seu primeiro vencedor: a minha singela maneira de sempre lembrar dele e de ajudar a eternizar sua lembrança, embora certamente para essa finalidade não seria necessária a homenagem.
Também, uma vez ou outra me pegava pensando que um dia o Prof. Vidal partiria e eu escreveria um texto em sua homenagem. Sei que há outras pessoas muito mais próximas a ele, que certamente têm mais direito de fazê-lo, mas queria prestar essa derradeira homenagem. Como seria esse dia? O que eu escreveria? Enfim, o dia chegou, uma sexta-feira chuvosa, em meio a uma época muito estranha que todos nós vivemos.
Prof. Vidal, você foi um líder. Como disse um amigo próximo, foi-se um cidadão que realmente fez a diferença no mundo. Eu não poderia terminar de outra forma esse texto.
Meu muito obrigado, Prof. Vidal Pedroso de Faria.
OS: se você conviveu com o Prof. Vidal, se ele também o(a) impactou, gostaria muito de ouvir a sua história! Use os comentários aqui, mas se quiser nos enviar um texto também (ou vídeo), vamos ter enorme prazer em publicar.
Assista esta entrevista com Prof. Vidal feita pelo Projeto Memória ESALQ: