Uma das dificuldades principais para solucionar questões da cadeia do leite é a identificação correta dos problemas e de suas possíveis causas. Só assim evitamos, como um consultor uma vez me falou, “errarmos de problema”.
Hoje, está fácil de errar de problema, porque há muito ruído: há muita informação equivocada, mas que parece verdadeira. Há muita informação incompleta e superficial, que leva a conclusões igualmente incompletas e superficiais que, ao invés de nos aproximar de possíveis soluções, nos afasta delas. As redes sociais e grupos de whatsapp têm seu lado positivo por dar voz a todos, mas por outro lado criam muito ruído que dificulta o entendimento real dos problemas.
Também, temos tido recorrentemente três atitudes que não ajudam. A primeira é focar tão somente nos problemas do presente, restando praticamente nada para os desafios futuros. Temos, por exemplo, a questão das importações, sem dúvida algo que afeta o mercado de lácteos. Os preços internacionais estão deprimidos como há muito tempo não se via e isto, claro, gerará um efeito de médio prazo no suprimento de leite dos países exportadores, que não conseguem produzir leite nesses preços. O mercado é, portanto, cíclico, e provavelmente em 2024 teremos uma forte reversão, as importações vão se reduzir e assim também “sumirão” (momentaneamente) as mazelas do setor. Até a próxima crise.
A outra atitude que não ajuda é a vitimização. Não vejo nenhuma manifestação no sentido de encarar o que precisamos para ter uma posição competitiva mais saudável no leite. Nosso foco é sempre os outros. Não é o caso de ser ingênuo e certamente é necessário avaliar se os outros de fato representam concorrência desleal e, caso positivo, medidas precisam ser tomadas. Também, o mercado de lácteos tem suas particularidades, há estruturas de suporte ao produtor em alguns países, há distorções em função da não existência de políticas de harmonização entre os países (inclusive do Mercosul), e por aí vai. Medidas que já foram implementadas no passado, como limites às quantidades importadas em momentos de forte desequilíbrio, poderiam ser estudadas para implementação pontual.
O problema é quando tudo o que fazemos é isso – não há praticamente nenhuma ação de longo prazo que nos permita mudar o status quo. As reações são pontuais e não atacam o problema.
Por fim, a terceira atitude é uma confusão ou indefinição a respeito do que queremos. Qual é o nosso objetivo, enquanto setor? É salvar 1 milhão de produtores de leite, que precisam ser viáveis independentemente de onde estão, ou quanto e como produzem? Ou criar as condições para que tenhamos a eficiência necessária, como outras cadeias do agro já conseguiram? Compreensivelmente, as manifestações políticas usam o argumento de salvar 1 milhão de produtores, já que isso tangibiliza o problema politicamente (muita gente é afetada, e o problema vira relevante a ponto de talvez medidas serem implementadas). Mas certamente as abordagens para esse problema são diferentes das abordagens para aumentar escala e fomentar grandes investimentos em produção, por exemplo.
O resultado de tudo isso é que não conseguimos mexer o ponteiro do setor, até porque não sabemos para onde queremos ir.
Quais são, na minha visão, as grandes questões setoriais que deveriam ser encaradas, olhando por cima da turbulência do momento?
- Qual é a nossa posição competitiva em um cenário de eficiência possível? Isso é difícil de responder, até porque variáveis como câmbio e inflação “variam”. Mas assim é a vida, e com elas os outros setores precisam também lidar. É parte do jogo. A pergunta é, se tivermos um nível de produtividade e aplicação correta dos fatores de produção, estaríamos entre os países mais eficientes na produção, ou, como admitiu um dos deputados no encontro do dia 16 em Brasília, “não temos como competir com Argentina e Uruguai, que têm condições muito melhores para se produzir leite?” Essa é a questão-chave, porque dela vai depender a nossa posição no jogo: estaremos no grupo dos que ganharão o mercado internacional, ou no grupo dos que precisarão sempre proteger as fronteiras? Seremos ganhadores, ou perdedores? Aqui, sempre haverá argumentos como: na Europa há subsídios, a fertilidade dos campos da Argentina e Uruguai é superior, e assim por diante. Claro que os problemas dos outros não são considerados nessa análise. Eu não compro 100% dessa visão fatalista. Se assim fosse, o Cerrado não teria sido transformado, dadas as condições ruins iniciais (baixa fertilidade do solo, falta de genética adequada para os grãos, logística complicada, etc). Entre os itens a se atuar, pode-se apontar a identificação dos sistemas, práticas e indicadores “vencedores”, bem como o estímulo a investimentos em escala e o conhecimento (e ação sobre) das barreiras à nossa competitividade. Ok, o mercado não é um mar de rosas, mas por outro lado não temos ainda a mesma eficiência de outras cadeias de sucesso. Eu prefiro o caminho de fazer a lição de casa.
- O que de fato esperar do mercado internacional? As previsões de longo prazo sempre apontam para um déficit global de produção. A população mundial vai crescer e, com ela, o consumo de lácteos. A maior parte dos países tradicionais na produção de lácteos tem capacidade limitada de crescimento. O resultado é que o preço dos lácteos vai subir de forma estrutural. O problema é que esse “longo prazo” nunca chega! O que temos hoje é um mercado internacional pequeno, com os mesmos players, e com uma dependência enorme da China, que vem aumentando a produção interna e crescendo menos – uma combinação que não é positiva para esse cenário. Entender esse cenário é relevante porque define a “nota de corte” e onde estamos nessa lista. Entender melhor essa dinâmica é algo que deveríamos estar fazendo – mas como não somos um player global, não há muito interesse em fazê-lo.
- Downgrade de produtos lácteos e inovação: estamos assistindo a um processo de “downgrade” (tradução: declínio, enfraquecimento) nos produtos lácteos. É triste e preocupante ver marcas tradicionais mudarem seus produtos com amido, gordura vegetal e outros “análogos”. Mas o fato é que, quanto menos lácteos na fórmula, menor o prejuízo! O poder de compra da população, achatado há quase 10 anos, obviamente explica isso. O desafio, no entanto, passa por conseguir produzir leite de forma mais competitiva e ainda assim ganhar dinheiro. E, de outro lado, inovar. O paradoxal é que o leite é uma excelente plataforma para inovação, mas para isso é necessário criar as condições para que essa inovação ocorra. Faço uma provocação: quais foram as novas empresas lácteas (de qualquer porte) criadas nos últimos 5 anos, com uma pegada clara de inovação em produto, distribuição, marketing ou originação? Pois é. Como se dá o nosso ambiente para inovação? Que pesquisas estão sendo feitas visando trazer novos produtos ao mercado? Se você é um empreendedor, que facilidades ou dificuldades encontra para empreender? Um paralelo: se você está nos Estados Unidos, vai encontrar pesquisadores que vão desenvolver novos produtos que podem ganhar o mercado; fábricas dispostas a fazer um copacking (tradução: terceirização do processo de embalagens), e o mesmo em distribuição. Você pode criar uma marca ou produto com pouquíssimo Capex. Como é esse ambiente aqui? Também, há a questão da tributação. A cadeia do leite tem uma série de benefícios tributários (está aí mais uma fragilidade nossa, aliás com sérios riscos em função da reforma tributária), porque nos posicionamos como provedores de produtos básicos, essenciais. A questão é que os produtos com potencial de crescimento são os de valor agregado, e a tributação não os ajuda. Inovar, no Brasil, sai caro, porque optamos por favorecer a desagregação de valor no setor lácteo.
- Ambiente institucional e de negócios: eu tenho insistido nesse tema, mas confesso que com certa dificuldade de me fazer entender. O ambiente de negócios passa por uma série de fatores que definem se investir na atividade vale a pena ou não, olhando o longo prazo, como forma de mobilizar os recursos. A rentabilidade da atividade é um fator, bem como o potencial de crescimento desse mercado, tanto aqui quanto lá fora. Mas não é o único. E, na verdade, quanto mais caótico for o ambiente de negócios, maior deve ser a rentabilidade da atividade para que alguém decida investir nela. Ou seja, o ambiente de negócios ruim cobra seu preço. A confiança entre os agentes do setor, o comportamento mais cooperativo e menos oportunista e a criação de uma agenda de mais longo prazo são aspectos importantes, assim como ferramentas que tragam alternativas para previsibilidade de preços e margens, ou ao menos a possibilidade de se proteger, também fazem parte disso. No último Fórum MilkPoint Mercado, em Goiânia, trouxemos a B3, que se dispôs a analisar, com o setor, os fundamentos para a criação de mercados futuros. Se isso vai andar, não sei, mas deveria ser ao menos explorado pelo setor. A questão que deveria estar sendo discutida é: Por que alguém investiria no leite hoje? Alguém que não é apaixonado pela atividade e não tem laços com ela – alguém que olha simplesmente a questão econômica, como investimento. É uma atividade com um ambiente de negócios difícil, ainda em busca de padronização de sistemas e indicadores, que considera que o governo é em grande parte responsável pelo seu sucesso, que não está entre os países mais eficientes internacionalmente, que não tem uma agenda clara de longo prazo, que não tem ferramentas de previsibilidade/proteção, e que tem tido dificuldades de viabilizar a inovação...
- Agenda futura: temos, ao mesmo tempo, uma enorme oportunidade e uma ameaça, representadas pela agenda ambiental. Se nos prepararmos, temos efetivamente a oportunidade de posicionar o setor favoravelmente e ao mesmo tempo, gerar renda extra para o produtor e para a própria indústria. Não por acaso, a Dairy Management Inc, entidade que coordena o marketing do leite nos EUA, é fundadora da empresa Newtrient, de soluções ambientais. Vejam só: a entidade que coordena o marketing está investindo em soluções ambientais. Por que será?
Todos esses itens envolvem ações pré-competitivas do setor, que possam deixar um pouco de lado a agenda do presente, e se debruçar sobre esses itens da agenda do futuro. Se isso não for feito, vamos permanecer ao sabor do mercado. “Se você não sabe aonde quer chegar, seu concorrente vai decidir por você”. É isso que precisamos mudar.
De novo, no evento em Brasília, alguém falou da criação de um “instituto” do leite, para estudar e dar rumos à cadeia. Eu achei boa a ideia, pelo menos em teoria. Hoje, há várias entidades atuantes, mas normalmente com pautas específicas, focadas nas demandas de curto prazo, como a questão das importações. Mas ninguém está olhando o longo prazo!
Ah, mas para isso é preciso recursos. Sim, para fazer um trabalho bem feito, de impacto, precisa de recursos para ter gente competente atuando. De onde poderiam vir os recursos? Vamos nos basear aqui nas taxas que o leite importado paga nos Estados Unidos, por exemplo. Cada equivalente-leite de leite importado paga cerca de 16 centavos de dólar para a Dairy Management (obs: o valor pago pelo leite interno deles é o dobro disso). Se considerarmos o mesmo valor para o leite importado pelo Brasil, teríamos tido, de janeiro a julho, o equivalente a quase 10 milhões de reais – ou 17 milhões anualizados, isso se as importações se mantiverem elevadas. Esse valor não é suficiente para marketing institucional, mas é certamente um montante bastante considerável para a estruturação de uma agenda estratégica para o setor. E estamos falando de algo que representaria 0,3% do valor importado.
Não sei se é viável fazer isso politicamente; também, é necessário ter outras fontes de arrecadação, já que as importações são voláteis e não é possível estruturar essa agenda com uma arrecadação intermitente (talvez possa ser criado um “check off ” para produtores acima de determinado volume de leite, por exemplo. Estou partindo do princípio de que o maior interessado é o produtor; no limite, a indústria poderá usar até leite de laboratório para seus produtos). Mas seria não só um começo, mas uma sinalização de que estaríamos utilizando os recursos das importações para construir o futuro.
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