O que é o doce de leite?
O doce de leite é um produto encontrado em todo território nacional e sua produção é bem diversificada, pois, varia desde fabricações artesanais até produções industriais em larga escala (JACOB et al., 2018). O estado de Minas Gerais detém aproximadamente 50% da produção brasileira de doce de leite, destacando-se como o principal produtor brasileiro. Sua origem é disputada por alguns países sul-americanos, dentre eles Argentina, Peru, Chile e Uruguai, que possuem grande consumo do produto (PERRONE et al., 2019).
A definição de doce de leite, segundo a Portaria nº 354, de 4 de setembro de 1997, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), é: “o produto, com ou sem adição de outras substâncias alimentícias, obtido por concentração e ação do calor à pressão normal ou reduzida do leite ou leite reconstituído, com ou sem adição de sólidos de origem láctea e/ou creme e adicionado de sacarose (parcialmente substituída ou não por monossacarídeos e/ou outros dissacarídeos)” (BRASIL, 1997).
O leite e/ou leite reconstituído e a sacarose são ingredientes obrigatórios na formulação de doce de leite. Mas na legislação há outros ingredientes classificados como opcionais, como sólidos de origem láctea, amidos ou amidos modificados, mono e dissacarídeos que substituam a sacarose em no máximo de 40% m/m, creme, além de coco, chocolate, amendoim, frutas secas, dentre outros produtos alimentícios isolados ou misturados em uma proporção que varia entre 5% e 30% m/m no produto final.
O doce de leite pode ser classificado como pastoso ou em barra. O doce em barra apresenta-se na forma sólida e cristalizada, já o doce pastoso é caracterizado pela ausência de cristais e consistência cremosa. A principal diferença é o teor de sólidos totais e sacarose, que variam de acordo com o ponto do doce (PERRONE et al., 2011).
Como é feito o doce de leite?
O princípio utilizado na produção de doce de leite é a evaporação da água por aplicação indireta de calor até a concentração ideal, que pode ocorrer em diversos sistemas, utilizando-se tachos por batelada, tachos de forma contínua, evaporador tubular ou tacho a vácuo.
Os tachos encamisados estão entre os evaporadores mais simples e mais antigos usados nas indústrias de alimentos, possuindo geralmente um agitador central do tipo âncora com pás raspadoras para promover convecção forcada e evitar superaquecimento (GEANKOPLIS, 1993). Caracterizam-se ainda por serem de fácil construção e fácil limpeza. Para produção de doce de leite pastoso tradicional, uma série de etapas são realizadas, como demonstrado na Figura 1.
Figura 1. Fluxograma de fabricação do doce de leite pastoso.
Fonte: PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020.
Basicamente, após a recepção, classificação e filtração do leite, ocorre a etapa de padronização do teor de gordura (entre 3,3 e 3,8%) com o objetivo de obter um produto com características sensoriais padronizadas, como aparência, aroma, sabor e textura do doce, que deve possuir o teor de gordura final entre 6 e 9% m/m (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Em seguida, o leite deve ser submetido ao tratamento térmico equivalente à pasteurização, para eliminação de microrganismos patogênicos. Logo após, geralmente, é feita a neutralização da acidez, com a adição de um redutor, como, por exemplo, o bicarbonato de sódio, que é adicionado antes do processo de concentração até que a acidez do leite esteja entre 10 e 13°D, visando evitar a desestabilização das proteínas do leite, especialmente as caseínas.
A sacarose é então adicionada em concentração máxima de 30% sobre o volume de leite (m/v) (BRASIL, 1997). Em doce de leite pastoso, geralmente adicionam-se concentrações de 16% a 20% de sacarose em relação ao volume de leite, já no doce de leite em barra esse valor pode chegar a 30%. Para aumentar a maciez e brilho do doce, pode-se substituir parcialmente a sacarose por glicose, desde que a substituição não supere 40% m/m (BRASIL, 1997).
Após a obtenção dessa mistura, chamada de calda, inicia-se a etapa de concentração no tacho ou evaporador. Durante a concentração, a calda deverá permanecer sob constante agitação em movimentos circulatórios, com o auxílio de agitadores mecânicos (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Com a evaporação da água, ocorre aumento na concentração de sólidos, e o procedimento deve continuar até se atingir o ponto desejado do doce, contemplando os requisitos básicos exigidos para esse produto. O doce de leite pastoso da espécie bovina deve conter teores de no máximo 30% de umidade, 6 a 9% de lipídios, 5% de proteína bruta e 2% de cinzas (BRASIL, 1997).
Como determinar o “ponto ideal’ do doce de leite?
O ponto ideal é uma expressão utilizada para se referir a uma condição padronizada que envolve características qualitativas e quantitativas. Algumas características qualitativas são levadas em consideração para determinação do ponto ideal. Para o doce pastoso deve-se observar a formação de bolhas de ar na parede do tacho.
Outra opção e retirar uma pequena quantidade do doce e gotejá-la imediatamente em um copo com água, o doce deverá ir para o fundo do copo sem alterar a cor da água. Já para o doce em barra, o ponto ideal é verificado quando, durante a etapa de bateção, a superfície do produto resseca e perde o brilho (PERRONE et. al 2019).
Para a avaliação quantitativa na indústria, a mensuração do teor de sólidos solúveis totais é feita por meio de um refratômetro, e deve apresentar valores de 68-70 °Brix para o doce de leite pastoso e de 84-86 °Brix para o doce de leite em barra.
Após o ponto ideal ser atingido, ocorre o envase e o fechamento da embalagem com adição do produto ainda quente, até a borda do recipiente, a fim de eliminar todo o oxigênio presente na embalagem e inibir o desenvolvimento de microrganismos (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Principais defeitos e prevenção na fabricação de doce de leite
Durante a fabricação do doce de leite, pode haver algumas alterações indesejáveis. Dentre elas, está a textura arenosa, que se deve à formação de grandes cristais de lactose (>21 µm) perceptíveis ao tato e ao paladar, proveniente da supersaturação da lactose.
Uma das maneiras de evitar este defeito é a adição da enzima lactase, que hidrolisa a lactose em dois monossacarídeos (glicose e galactose) com maior solubilidade que a lactose. Outra estratégia é o processo de semeadura, que fundamenta na adição de pequenos cristais de lactose como núcleos de cristalização, para acelerar o processo e produzir grande número de pequenos cristais, que não serão detectáveis pelo paladar (cristais menores que 14 µm). Uma outra opção tecnológica é o resfriamento lento do doce de leite até atingir uma temperatura de 93,5 °C, seguido por resfriamento rápido, com a finalidade de induzir a formação de inúmeros cristais pequenos (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Outro defeito é o doce talhado, que resulta da desestabilização das micelas de caseínas, a qual está relacionada com os seguintes fatores: acidez elevada, temperatura, tempo e estrutura proteica. Esse defeito ocorre sobretudo devido à má qualidade da matéria-prima.
Como alternativa utiliza-se o bicarbonato de sódio para neutralizar a acidez inicial e a desenvolvida durante a etapa de concentração, com o objetivo de aumentar a estabilidade das proteínas durante o aquecimento. Além disso, o citrato de sódio também é usado, visando aumentar a estabilidade térmica das proteínas (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Um outro defeito que também pode ocorrer é o gosto de queimado no doce. Esse defeito é decorrente pela baixa agitação e pela grande quantidade de energia fornecida na forma de calor. É um problema que não ocorre com grande frequência em fabricações industriais, sendo mais comum em produções de pequena escala ou caseiras. Por isso, aconselha-se uma troca regular da borracha da pá de agitação sempre que houver desgaste desse material (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Além dos citados, outros defeitos também podem ser verificados, como o sabor de ranço ou azedo devido à ação de enzimas produzidas por microrganismos contaminantes sobre os constituintes do leite, bem como o estufamento das embalagens em decorrência da produção de gás proveniente da ação de fungos e leveduras (PACHECO & LEITE JÚNIOR, 2020).
Considerações finais
O doce de leite é um produto processado e consumido tipicamente nos países sul-americanos, sendo apreciado principalmente no Brasil. Sua produção é de grande relevância para economia brasileira, uma vez que se trata de um produto concentrado, o que facilita a sua comercialização e exportação. Além disso, seu processo envolve A utilização de tachos/evaporadores que estão entre os mais simples e mais antigos usados nas indústrias de alimentos.
A determinação oficial do ponto ideal é realizada pelo teor de sólidos solúveis (em ° Brix) e depende do tipo de doce, além de contar com o auxílio de algumas técnicas subjetivas. É importante ressaltar que a qualidade da matéria-prima interfere diretamente no processamento do doce de leite e em suas características sensoriais.
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Autores
Isabela Soares Magalhães (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Ana Flávia Coelho Pacheco (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Prof. Dra. Kely de Paula Correa (Professora/pesquisadora do Instituto de Laticínios Cândido Tostes – EPAMIG-MG).
Prof. Dr. Paulo Henrique Costa Paiva (Professor/pesquisador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes – EPAMIG-MG).
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira (Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior (Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Agradecimentos: Os autores agradecem a CAPES - Código Financiamento 001; à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto APQ-00388-21; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto (429033/2018-4) e pela bolsa de produtividade à B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6).
Referências
BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Portaria Nº 354, de 4 de setembro de 1997. Regulamento técnico para fixação de identidade e qualidade de doce de leite. Brasília: Ministério da Agricultura, 1997.
GEANKOPLIS, C. J.; Transport process and unit operations, 3rd edition, Prentice-Hall Inc., 1993
JACOB, V. R. et al. Aspectos de qualidade físico-química de doce de leite de búfalas da raça murrah, a partir de leite fresco e armazenado. Revista Agroecossistemas, v. 9, n. 2, p. 288-298, 2018.
PACHECO, A. F. C; LEITE JÚNIOR, B. R. C. Produção de doce de leite - Teoria e prática. Boletim de extensão. Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2020.
PERRONE, I. T. et al. Atributos tecnológicos de controle para produção do doce de leite. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v. 67, n. 385, p. 42-51, 2012.
PERRONE, I. T.; STEPHANI, R.; NEVES, B. S. Doce de leite: aspectos tecnológicos. Juiz de Fora: [s.n.], 2011. 186 p.
PERRONE, I. T.; STEPHANI, R.; NEVES, B. S.CARVALHO, A. F.; NETTO, G. G. FRANCISQUINI, J. A. Doce de leite: química e tecnologia. São Paulo, Br. [s.n.], 2019. 151 p
*Fonte da foto do artigo: Freepik