A dinâmica da produção leiteira mundial é sujeita a flutuações decorrentes de uma interseção complexa de fatores. Relatórios recentes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos) oferecem insights valiosos sobre os protagonistas desse cenário, em que a Índia se destaca como uma força dominante. Entretanto, União Europeia, Estados Unidos, China, Brasil e Paquistão desempenham papéis proeminentes para a produção global de leite.
Neste contexto, em 2023, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) publicou dados indicando que o país ocupa a posição de terceiro maior produtor global de leite. Essa classificação é respaldada por uma impressionante produção anual de mais de 34 bilhões de litros de leite, abrangendo 98% dos municípios brasileiros. É notável que a característica predominante desse cenário seja a presença marcante de pequenas e médias propriedades na produção leiteira brasileira.
Neste cenário, com altas temperaturas, o rebanho leiteiro enfrenta um grande desafio: alcançar produtividade sem comprometer a qualidade, uma missão que demanda uma cuidadosa gestão do conforto térmico dos animais.
As variações de temperatura, especialmente aquelas que afetam a "zona de termoneutralidade", não apenas resultam em desconforto, mas também desencadeiam um aumento na temperatura corporal e na frequência respiratória, gerando um ambiente propício para o estresse. Este quadro torna-se ainda mais visível diante às mudanças climáticas que estamos vivenciando atualmente, as quais impactam não apenas a quantidade, mas também a qualidade do leite. Portanto, este artigo técnico visa descrever sobre os impactos do calor extremo na produção de leite e seus derivados.
Impacto econômico do estresse térmico na produção leiteira
As ondas de calor apresentam desafios consideráveis para a produção de leite, surgindo sem uma adaptação fisiológica adequada ao calor intenso. As condições climáticas que ultrapassam o limite de adaptação das vacas resultam em perdas significativas, afetando diretamente o conforto, saúde e desempenho dos animais. As complexas respostas fisiológicas das vacas e o impacto direto na produção leiteira é ilustrada na Figura 1, evidenciando a correlação entre as ondas de calor e a queda na produção de leite ao longo do tempo.
Figura 1. Produção de leite antes e após o estresse térmico.
(FONTE: GIGRÔ et al., 2022).
Cerca de 80% das vacas em todo o planeta apresentam sintomas de estresse térmico (taxas de respiração aceleradas, cabeças abaixadas e respiração ofegantes) (Universo Online, 2023). Isso gera perdas econômicas expressivas, comprometendo a produção, reprodução e saúde do gado.
O estresse térmico leva a perdas multibilionárias para as indústrias lácteas em vários países (ARIAS et al., 2023). A Figura 2 ilustra que vacas sob estresse térmico podem deixar de produzir até 34% do seu potencial em uma única lactação, representando perdas significativas na produção de leite e impactando a economia dos produtores (NEIVA, 2023).
Figura 2. Produção de leite conforme o nível de estresse térmico.
(FONTE: NEIVA, 2023).
No Brasil, a Embrapa Gado de Leite (2023) indica que o aumento da temperatura interna dos animais pode resultar em perdas de até 30% na produtividade, com o limiar crítico iniciando a partir de 31 ºC. Nos Estados Unidos, as perdas anuais chegam a US$ 1,7 bilhões, afetando especialmente os pequenos produtores sem recursos de seguros ou acesso a empréstimos (Universo Online, 2023).
No Chile, as perdas econômicas relacionadas a eventos de estresse térmico variam de $29,0 a 108,4 milhões por semestre. Pesquisadores chilenos relataram perdas diárias na produção de leite entre 5 e 8 litros por vaca por dia quando as vacas não tinham acesso à sombra ou a outras estratégias de melhoria do estresse térmico (ventiladores e bebedouros ou aspersores) durante o período de verão (ARIAS et al., 2023).
Impacto na qualidade do leite e derivados
O estresse térmico não apenas reduz a produção de leite, mas também compromete a qualidade e produtividade de derivados lácteos, como iogurte, queijo e manteiga. A redução da qualidade da matéria-prima pode ser atribuída a redução dos teores de proteína e gordura, com impacto no teor de sólidos totais do leite. Isso se deve a diminuição na ingestão de matéria seca durante a hipertermia, como forma de tentar diminuir a carga de calor interna (CARTWRIGHT et al., 2023). Além disso, impactos no desempenho reprodutivo, alimentação (por exemplo, utilização de culturas suplementares de verão) e custos de saúde, devido ao tratamento de doenças, contribuem para o cálculo final das perdas econômicas (Universo Online, 2023).
Neste contexto, o estresse térmico não apenas compromete o bem-estar animal, mas também eleva a suscetibilidade a doenças, sendo a mastite um exemplo notável. O aumento da temperatura do ambiente contribui para a fragilização do sistema imunológico das vacas leiteiras, tornando-as mais propensas a infecções mamárias.
A mastite, uma inflamação da glândula mamária, não apenas reduz a qualidade do leite produzido, introduzindo possíveis contaminantes, mas também impacta negativamente na economia da cadeia leiteira, reduzindo o volume de leite e, consequentemente, na quantidade de derivados lácteos produzidos. Portanto, reduzir os efeitos das altas temperaturas não é apenas vital para a sustentabilidade da produção leiteira, mas também para garantir produtos lácteos de alta qualidade e seguros para o consumidor (COSER et al., 2019).
Em resumo, a questão do estresse térmico em animais de média e alta produtividade leiteira é marcada por uma série de desafios complexos, sendo agravada pelas elevadas temperaturas que têm sido registradas recentemente. Tudo isso ocorre em meio à constante busca por eficiência e qualidade na produção de leite. O conjunto crucial formado por estratégias de resfriamento eficientes, manejo e monitoramento constante destaca-se como a harmonia necessária para garantir que esses protagonistas da produção leiteira alcancem seu potencial máximo, mesmo em face das crescentes temperaturas.
Perspectivas Futuras
As mudanças climáticas, ao aumentarem a frequência de dias quentes e ondas de calor, representam uma ameaça significativa para a produtividade do gado leiteiro (CARTWRIGHT et al., 2023). Uma alternativa é a seleção de bovinos leiteiros termotolerantes que inclui cruzamento com raças termotolerantes, seleção baseada em características fisiológicas e, mais recentemente, seleção para melhor resposta imune. Investimentos em pastoreio com acesso a sistemas de refrigeração também favorece a mitigação do estresse térmico e melhora a produção de leite.
Mais pesquisas deverão ser realizadas em territórios nacionais e internacionais para validar as perdas econômicas estimadas. Estes estudos devem incluir não só a quantificação da diminuição da produção de leite, mas também as alterações na qualidade do leite (teor de sólidos), bem como o aumento dos custos reprodutivos e de alimentação devido ao estresse térmico.
Esta informação é muito relevante não só para satisfazer a procura da indústria leiteira por mais leite (de melhor qualidade e produzido a partir de sistemas de produção sustentáveis), mas também como uma ferramenta de decisão para os produtores implementarem estratégias de mitigação de baixo custo, bem como para a criação e implementação de novas políticas governamentais neste assunto.
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Autores
Danielly Aparecida de Souza -Graduanda em Ciencia e Tecnologia de Laticínios e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Viviane Lopes Pereira - Engenheira de Alimentos, Mestre em Ciência de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira - Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior - Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV
Agradecimentos:
Os autores agradecem a CAPES - Código Financiamento 001; à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto APQ-00388-21 e APQ-00785-23; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto (429033/2018-4) e pela bolsa de produtividade à B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6).
Referências bibliográficas
CARTWRIGHT, S. L.; SCHMIED, J.; KARROW, N.; MALLARD, B. A. Impact of heat stress on dairy cattle and selection strategies for thermotolerance: a review. Frontiers in Veterinary Science, 2023. Doi: 10.3389/fvets.2023.1198697
ARIAS, R. A.; KEIM, J. P.; PINTO, R.; BOMBAL, H. Estimation of the economic impact of heat stress on dairy production systems in Chile. Research Square, 2023. DOI: https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-2842956/v1
COSER, S. M.; LOPES, M. A.; COSTA, G. M. Mastite Bovina: Controle e Prevenção. Boletim Técnico Universidade Federal de Lavras, Departamento de Medicina Veterinária, n. 93. Disponível em: <https://professormarcosaurelio.com.br/wp-content/uploads/2019/08/bt-93-Mastite-prevencao-1.pdf>. Acesso em: 15/12/2023.
EMBRAPA. 2023. Anuário Leite 2023. Disponível em: < embrapa.br/gado-de-leite>. Acesso em 16 de dez. 2023.
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GIGRÔ - Serviços Interativos. O desafio das ondas de calor na produção de leite - Portal do Agronegócio. Portal do Agronegócio. Publicado em 2022. Acesso em 14/12/2023. https://www.portaldoagronegocio.com.br/pecuaria/bovinos-leite/artigos/o-desafio-das-ondas-de-calor-na-producao-de-leite.
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NEIVA, R. Girolando incorpora PTA para tolerância ao estresse térmico no sumário. In: EMBRAPA. Anuário Leite 2023. Disponível em: < embrapa.br/gado-de-leite>. Acesso em 16 de dez. 2023.
UOL. Universo Online. Um bilhão de vacas na Amazônia e no mundo podem ser afetadas por estresse térmico. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2023/08/24/um-bilhao-de-vacas-na-amazonia-e-no-mundo-podem-ser-afetadas-por-estresse-termico.htm. Acesso em: 15 de dez. 2023.