As proteínas do leite desempenham um importante papel para saúde sendo fonte de aminoácidos essenciais para síntese proteica e de energia. Em paralelo, essas proteínas apresentam interessantes propriedades técnico-funcionais, como solubilidade, capacidade emulsificante, capacidade de formação de espuma, capacidade de retenção de água, formação de gel, dentre outras propriedades, que estimulam a aplicação dessas proteínas como ingredientes alimentares visando a melhoria da qualidade de diversos produtos alimentícios (NAZARI et al., 2018; SHOKRI et al., 2022).
Atualmente, diversas estratégias vêm sendo aplicadas para potencializar as propriedades técnico-funcionais das proteínas do leite, como exemplo a hidrólise enzimática (WANG et al., 2018; MAGALHÃES et al., 2022).
A hidrólise enzimática resulta na produção de hidrolisados que podem apresentar melhores propriedades técnico-funcionais em comparação com as proteínas nativas (MAGALHÃES et al., 2022). Além disso, esses hidrolisados podem conter peptídeos com potenciais propriedades biológicas, tais como: atividade antioxidante, antidiabética, anti-hipertensiva, podendo nesses casos serem classificados como peptídeos bioativos (Figura 1) (LI et al., 2013, IBRAHIM et al., 2017, KALYAN et al., 2018; MAGALHÃES et al., 2022).
Figura 1. Aplicações dos hidrolisados e peptídeos de proteínas do leite.
Fonte: os autores, 2022.
Porém, para aplicação em nível industrial, o uso da hidrólise enzimática pode ser limitado pelo alto custo das enzimas, longo tempo de reação, baixo grau de hidrólise e alto consumo de energia (SOARES et al., 2019; SOARES et al., 2020).
Neste contexto, a aplicação de processos físicos, como o ultrassom (US), tem sido explorada para potencializar a hidrólise enzimática das proteínas do leite visando a geração de hidrolisados com maior rendimento e melhor qualidade multifuncional.
De forma geral, o US tem a capacidade de modificar a estrutura conformacional das proteínas, afetando as ligações de hidrogênio e as interações hidrofóbicas, tornando-as mais acessíveis à ação das proteases, além de promover a ativação enzimática e aceleração das reações assistidas por US devido à melhoria da transferência de massa e de energia (MAGALHÃES et al., 2022).
Desta forma, esse artigo técnico apresenta o potencial do ultrassom para maximizar a hidrólise enzimática das proteínas do leite visando a melhoria das propriedades técnico-funcionais e biológicas dos hidrolisados obtidos.
Tecnologia de ultrassom
O ultrassom se baseia na propagação de ondas sonoras com frequência acima do limiar da audição humana (>20 kHz) (MUNIR et al., 2019). O US pode ser dividido em duas categorias principais: (I) alta intensidade - baixa frequência (intensidade de 10-1000 W/cm2 e frequência de 20–100 kHz) e (II) baixa intensidade - alta frequência (intensidade <1 W/cm2 e frequência > 1 MHz) (MUNIR et al., 2019). Essa tecnologia apresenta diversas vantagens como o baixo custo, condições operacionais simples, facilidade de controle e ecologicamente amigável.
A aplicação do US em nível acadêmico na área de alimentos tem evoluído de forma significativa ao longo dos últimos anos. Em condições otimizadas, o US pode ser aplicado para promover um aumento da atividade enzimática em decorrência de uma favorável alteração da conformação molecular das enzimas, bem como pela exposição de novos sítios ativos. Essas modificações ocorrem devido principalmente ao fenômeno de cavitação. A cavitação se deve a formação, crescimento e colapso de bolhas de ar.
As bolhas de cavitação crescem durante os ciclos de rarefação e diminuem durante as fases de compressão (PERERA; ALZAHRANI, 2021). Durante o colapso das bolhas, uma grande quantidade de energia é liberada que resulta em alta temperatura e pressão em pontos específicos em curtos períodos de tempo (milissegundos), promovendo uma alta força de cisalhamento, atrito, turbulência e impacto na zona de cavitação (WANG et al., 2018; WANG et al., 2021).
Esses efeitos também são os principais responsáveis por modificar as estruturas dos substratos desfazendo os agregados proteicos tornando-os mais acessíveis ao ataque enzimático, melhorando assim a catálise enzimática.
Além disso, nas reações enzimáticas assistidas por US, o processo pode reduzir a barreira de difusão entre a enzima e o substrato acelerando a taxa das reações devido ao aumento da transferência de energia e massa (SOARES et al., 2020; WANG et al., 2021).
Efeito do Ultrassom nas propriedades técnico-funcionais e biológicas de hidrolisados de proteínas do leite
Magalhães et al. (2022) avaliaram a solubilidade dos hidrolisados proteicos obtidos a partir da hidrólise enzimática assistida por US da caseína do leite de cabra (CLC). Neste estudo foram utilizadas três proteases comerciais (alcalase, brauzyn e flavourzyme) e de acordo com os resultados obtidos, para a CLC nativa, o maior percentual de proteínas solúveis foi verificado em valores de pH extremos (69,4% em pH 2,0 e até 74,0% em pH 10,0) e a menor solubilidade em valores de pH mais próximos do ponto isoelétrico do CLC (pH 4,1) (5,2% a pH 4,0 e 24% a pH 6,0).
A hidrólise enzimática convencional melhorou a solubilidade dos hidrolisados de CLC, especialmente em pH 4 (de 5,2% para 31,7). Em comparação com a hidrólise convencional, a hidrólise assistida por US melhorou a solubilidade na maioria das condições avaliadas, com um aumento de até 35,7% dos hidrolisados obtidos pela enzima alcalase.
Nesse mesmo estudo, Magalhães et al. (2022) avaliaram o efeito da hidrólise enzimática assistida por US da CLC nas propriedades antioxidantes (capacidade de eliminar radicais DPPH e ABTS) in vitro dos peptídeos obtidos. De acordo com os resultados, os hidrolisados obtidos pela hidrólise convencional apresentaram um aumento de até 2,7 vezes na atividade antioxidante em comparação com CLC nativa.
Em relação ao efeito da reação assistida por US, os hidrolisados obtidos pela ação da alcalase apresentaram maior atividade antioxidante após 30 (aumento de até 61%) e 120 min (aumento de até 12%) de hidrólise em comparação com a hidrolise convencional. Além disso, especialmente para o radical ABTS, verificou-se que a hidrólise da alcalase assistida por US acelerou a produção de peptídeos com atividade antioxidante in vitro em até 10 vezes.
Em outro estudo, Wu et al. (2018) verificaram que o pré-tratamento com US favoreceu a hidrólise da proteína do soro do leite de vaca por alcalase e, consequentemente, aumentou a atividade anti-hipertensiva avaliada in vitro. De forma similar, Koirala et al. (2021) observaram que o pré-tratamento ultrassônico das proteínas do leite de cabra potencializou a hidrólise proteica pela ação da pepsina resultando em maior atividade antioxidante in vitro dos peptídeos obtidos.
Considerações finais
A tecnologia de US é promissora na área de alimentos. Do ponto de vista tecnológico, a utilização dessa tecnologia em combinação com a hidrólise enzimática das proteínas do leite pode levar a geração de hidrolisados e peptídeos com melhores propriedades multifuncionais tanto para a indústria de alimentos no desenvolvimento de novos produtos, quanto para a indústria farmacêutica no desenvolvimento de fármacos.
No entanto, existem algumas lacunas na literatura atual referentes a eficiência no consumo de energia e o investimento de capital dessa tecnologia para aplicação a nível industrial. Além disso, os estudos têm sido realizados in vitro, sendo necessários estudos in vivo para comprovar a real utilização desses peptídeos em produtos e/ou fármacos com alegações benéficas a saúde.
Autores
Ana Flávia Coelho Pacheco (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Jeferson Silva Cunha (Bacharel em Ciência e Tecnologia de Laticínios e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Ana Carolina Barbosa Santos (Graduada em Nutrição)
Isabela Soares Magalhães (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Alécia Daila Barros Guimarães (Engenheira de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira (Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior (Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Agradecimentos: Os autores agradecem a CAPES - Código Financiamento 001; à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto APQ-00388-21; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento do projeto (429033/2018-4) e pela bolsa de produtividade à B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6).
Leia também:
- Ultrassom na produção de sorvete e iogurte
- Ultrassom para obtenção de aromas naturais a partir da gordura láctea
Referências
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