Nos últimos anos cresce o interesse e a demanda dos consumidores por alimentos seguros e de qualidade, cujos atributos sensoriais e propriedades nutricionais são minimamente afetados. Para atender aos anseios destes consumidores, a aplicação de tecnologias não convencionais (emergentes) vem se tornando atrativa para a indústria de alimentos.
Dentre as tecnologias não convencionais aplicadas no processamento de alimentos, destaca-se a homogeneização à alta pressão (HAP), também chamada homogeneização à ultra alta pressão, dependendo da pressão aplicada. Esta é uma tecnologia promissora no processamento de alimentos, visto que os variados efeitos sobre os constituintes alimentares justificam uma grande diversidade de aplicações industriais (TRUJILLO et al., 2021).
A primeira aplicação da HAP foi realizada pelas indústrias farmacêuticas e químicas para dispersar líquidos não miscíveis e criar/estabilizar emulsões. Com o tempo, esta tecnologia se expandiu para a área de alimentos para melhorar a eficiência de homogeneização e emulsificação de produtos lácteos e emulsões, apresentando o mesmo princípio de funcionamento dos homogeneizadores convencionais (TRUJILLO et al., 2016).
Posteriormente, a tecnologia foi sugerida para inativação microbiana/enzimática, sendo que pressões ≥200 MPa, associadas com condições de tratamento térmico brandas, emergiram como uma alternativa à pasteurização térmica convencional para preservar produtos alimentícios sensíveis aos danos causados pelo calor (TRUJILLO et al., 2021).
Atualmente, essa tecnologia tem sido explorada pelas indústrias de alimentos para outras finalidades, como, por exemplo, para promover alterações nos constituintes dos alimentos, que estão relacionadas ao rompimento dos glóbulos de gordura, diminuição do tamanho de partículas (como polissacarídeos lineares) e modificação da estrutura quaternária e terciária das proteínas/enzimas (LEITE JÚNIOR et al., 2017; LEITE JÚNIOR et al., 2021).
Neste sentido, este artigo técnico tem como objetivo explorar os efeitos da homogeneização à alta pressão sobre os constituintes do leite, destacando as diferentes possibilidades industriais resultantes dessas modificações.
Homogeneização à alta pressão: princípio e operação
O homogeneizador à alta pressão surgiu com princípios semelhantes ao homogeneizador convencional, mas com uma pressão em torno de 10 a 15 vezes maiores (de até 400 MPa) que as usualmente aplicadas (TRUJILLO et al., 2021).
A HAP é um processo mecânico que consiste em forçar um fluido a passar por meio de um pequeno orifício (gap) em altas pressões, sendo esse estágio representado pela Figura 1. Isso resulta em alto estresse mecânico e vários fenômenos físicos associados à energia cinética, pressão e energia térmica (LEITE JÚNIOR et al., 2017; LEITE JÚNIOR et al., 2021).
Figura 1. Primeiro estágio do processo de homogeneização do leite em altas pressões.
Fonte: os autores.
Após o fluido não homogeneizado passar pelo pequeno orifício, partículas menores e uniformes são obtidas. De acordo com a Lei de Conservação de Massa, à medida que a área de escoamento é reduzida, a velocidade aumenta (LEITE JÚNIOR et al., 2021).
Em paralelo, durante esse processo, diversos fenômenos físicos ocorrem de forma sucessiva e/ou simultaneamente como alto cisalhamento, turbulência, atrito e cavitação, ocasionados pelo choque das partículas, bem como pela despressurização abruta durante o processamento (LEITE JÚNIOR et al., 2017; LEITE JÚNIOR et al., 2021).
Esses efeitos são os principais responsáveis pelas modificações dos constituintes do leite, como ruptura dos glóbulos de gordura, desdobramento de proteínas e alterações estruturais enzimáticas, além de impactar no balanço de sais minerais e presença de vitaminas, dependendo da temperatura do processo.
Para algumas aplicações, esses efeitos são positivos, devido a maior estabilidade física do leite e derivados e à produção de biomoléculas (como as proteínas) para serem utilizadas como ingredientes alimentares (LEITE JÚNIOR et al., 2017; LEITE JÚNIOR et al., 2021). Além dos efeitos citados anteriormente, durante o processamento há um aumento da temperatura (aumento de 12-20°C a cada 100 MPa) (LEITE JÚNIOR et al., 2017).
Desta forma, a temperatura de entrada do produto deve ser cuidadosamente avaliada para evitar possíveis danos térmicos indesejados aos constituintes do leite (por exemplo: perdas de vitaminas termolábeis) ou, ao contrário, explorar a temperatura como fator adicional, além da pressão, para gerar as mudanças desejadas sobre os constituintes do leite. Caso a alteração térmica não seja desejada, o acoplamento de um sistema de refrigeração logo após a válvula de homogeneização é suficiente para reduzir o efeito térmico a um tempo curto (~1 segundo).
A seguir, serão descritos os principais efeitos nos constituintes do leite causados pela homogeneização à alta pressão.
Efeitos da homogeneização à alta pressão nos glóbulos de gordura do leite
No leite de vaca, os glóbulos de gordura apresentam tamanhos que variam de 2 a 6 µm, embora possam existir em pequenas quantidades glóbulos atingindo 10 µm. Devido à diferença de densidade entre os glóbulos de gordura e a fase contínua, um fenômeno denominado cremeação (Figura 2) é observado quando o leite permanece em repouso, que ocorre devido à separação natural de grande parte dos glóbulos de gordura (principalmente os de diâmetros maiores) do restante dos componentes do leite. Desta forma, pode-se dizer que o leite é instável cinética e termodinamicamente (PACHECO et al., 2022).
Figura 2. Representação do processo de cremeação da gordura no leite.
Fonte: PACHECO et al. (2022).
Uma das formas mais utilizadas para aumentar a estabilidade cinética do leite é por meio da homogeneização do leite. O leite comercial é homogeneizado com o objetivo de diminuir o tamanho dos glóbulos de gordura e melhorar sua estabilidade física, prolongando sua vida útil, conforme detalhadamente discutido em Pacheco et al. (2022) (Figura 3).
Figura 3. Homogeneização do leite com redução do diâmetro médio dos glóbulos de gordura de 2 - 6 µm para < 2 µm.
Fonte: PACHECO et al. (2022).
A homogeneização promove a ruptura da membrana original dos glóbulos de gordura, resultando em uma redução no tamanho desses glóbulos devido aos efeitos apresentados anteriormente. Na homogeneização convencional (~15 MPa), os glóbulos de gordura são reduzidos de aproximadamente 3 µm para cerca de 1,5-0,5 µm, dependendo das condições de homogeneização aplicadas (pressão, temperatura, estágios de homogeneização e ciclos), criando uma camada de interface que contém caseínas e proteínas de soro de leite (Figura 3) (CHEVALIER-LUCIA et al., 2019; TRUJILLO et al., 2021; PACHECO et al., 2022).
Figura 4. Impacto da homogeneização à alta pressão no tamanho médio dos glóbulos de gordura do leite.
Fonte: Adaptado de CHEVALIER-LUCIA et al. (2019).
Um aumento adicional na pressão de homogeneização (até 200 MPa) pode diminuir ainda mais o tamanho dos glóbulos de gordura do leite, resultando em emulsões altamente estáveis (Figura 4). Adicionalmente, o incremento da temperatura (temperatura ótima na faixa de 40-55°C) favorece ainda mais a dispersão e a redução do tamanho dos glóbulos de gordura, pois o processo é mais eficaz quando toda a gordura está na fase líquida (LEITE JÚNIOR et al., 2018).
Em uma pressão de homogeneização maior (>250MPa), o tamanho do glóbulo de gordura do leite é ainda menor (Figura 4). Entretanto, esse tamanho pode aumentar ao longo do tempo, devido ao aumento da área superficial total dos glóbulos de gordura que dificulta a adsorção das proteínas do leite por não haver quantidade proteica suficiente. Desta forma, a coalescência de parte dos glóbulos de gordura pode ocorrer durante a estocagem deste produto (TRUJILLO et al., 2021).
Efeitos da homogeneização à alta pressão nas proteínas do leite
O leite de vaca contém aproximadamente um teor de proteína médio de 3,3%. Deste total, 80% correspondem às caseínas, presentes na forma de micelas com destaque para as frações αs1-caseína, αs2-caseína, β-caseína e κ-caseína na proporção de 3:1:3:1, respectivamente. O restante, 20%, se referem às proteínas do soro com destaque para β-lactoglobulina, α-lactalbumina, soro albumina, imunoglobulinas e lactoferrina (LEITE JÚNIOR et al., 2018).
Do ponto de vista nutricional, as proteínas do leite apresentam um alto valor biológico por possuir todos os aminoácidos essenciais em elevadas concentrações e por apresentar boa digestibilidade. Sob o viés tecnológico, as proteínas do leite apresentam diversas propriedades técnico-funcionais como solubilidade, capacidade emulsificante e capacidade de formar gel, que as tornam excelentes ingredientes alimentares. Durante o processamento do leite, a HAP pode induzir modificações estruturais das proteínas, principalmente das soroproteínas, alterando suas propriedades técnico-funcionais (LEITE JÚNIOR et al., 2018).
Em relação as caseínas, os efeitos da HAP são consideravelmente menores quando comparados com os efeitos nos glóbulos de gordura do leite. A HAP pode levar a fragmentação das micelas de caseína. No entanto, diminuições no tamanho das partículas após a HAP (por exemplo, 200 MPa), mesmo com a aplicação de até seis passagens pelo homogeneizador, são apenas da ordem de 10-15%.
Por outro lado, em processos conduzidos em pressões extremas (300-400 MPa), observa-se uma redução no tamanho médio de até 50%, independentemente da temperatura de processo (TRUJILLO et al., 2021). Este fenômeno ocorre devido à quebra das interações hidrofóbicas e solubilização parcial do fosfato de cálcio coloidal, levando à solubilização das frações de caseína (TRUJILLO et al., 2021) (Figura 5).
Entretanto, a combinação de alta temperatura e elevada concentração de cálcio durante o processo de HAP (200-250 MPa) pode induzir a agregação proteica, resultado no aumento do tamanho das micelas de caseína (TRUJILLO et al., 2021).
Figura 5. Efeito da homogeneização à alta pressão nas proteínas do leite.
Fonte: os autores.
As proteínas do soro, por sua vez, são susceptíveis à desnaturação durante a homogeneização (Figura 5). No leite desnatado, a desnaturação da proteína do soro aumenta com o aumento da pressão de homogeneização e a aplicação de uma segunda etapa de homogeneização (TRUJILLO et al., 2021).
Por outro lado, no leite integral, o grau de desnaturação das proteínas do soro após a HAP é mais difícil de determinar, pois as proteínas do soro podem se associar à membrana glóbulo de gordura do leite durante a homogeneização, seja em seu estado nativo ou desdobrado (TRUJILLO et al., 2021).
Esses efeitos estruturais causados pela HAP nas proteínas de leite podem potencializar algumas propriedades técnico-funcionais, como aumento de solubilidade das caseínas pela fragmentação ou melhoria nas propriedades emulsificantes, espumantes e de capacidade de retenção de água e óleo das proteínas do soro por desnaturação (LEITE JÚNIOR et al., 2018).
Além disso, mudanças estruturais nas proteínas também podem facilitar sua hidrólise por ação enzimática, tecnologicamente utilizada para a produção de peptídeos com desejáveis características técnico-funcionais e/ ou biológicas como: (i) ação antioxidante, (ii) anti-hipertensiva, (iii) antidiabética, (iv) imunomoduladora.
Efeitos homogeneização à alta pressão nas enzimas do leite
A HAP pode afetar a atividade e a estabilidade de enzimas. Esses efeitos estão diretamente correlacionados com as condições de processo (pressão, temperatura, número de ciclos), bem como com as características estruturais de cada enzima e fatores do meio com pH, composição e concentração enzimática (LEITE JÚNIOR et al., 2018).
A maioria dos estudos que avaliaram o efeito da HAP foram realizados com o objetivo de inativar enzimas indesejáveis, como proteases e lipases produzidas por psicrotróficos. Por outro lado, a ativação e aumento na estabilidade são requeridos para algumas enzimas com função antimicrobiana por exemplo, como lisozima (TRIBST et al., 2008), lactoperoxidase (IUCCI et al., 2007; VANNINI et al., 2004) e lactoferrina (IUCCI et al., 2007).
Efeitos da homogeneização à alta pressão nos minerais e vitaminas
A HAP pode aumentar a solubilidade de alguns minerais, como o cálcio e fósforo, devido à fragmentação das micelas de caseína (SERRA et al., 2008), embora a solubilização desses sais não seja tão intensa.
SERRA et al. (2008) encontraram solubilização do fosfato de cálcio coloidal de 8% e 30%, nas pressões de 150 e 300 MPa, respectivamente. Já as vitaminas hidrossolúveis e lipossolúveis podem ser afetadas negativamente com a homogeneização à alta pressão, quando o processo é realizado à altas temperaturas. (TRUJILLO et al., 2021).
Considerações finais
Dentre as principais tecnologias inovadoras aplicadas à indústria de laticínios, a homogeneização à alta pressão tem se mostrado bastante interessante, oferecendo resultados melhores quando comparados à homogeneização convencional. A sua aplicação no leite fluido resulta em alterações dos seus constituintes e, consequentemente, de suas propriedades funcionais.
Assim, a inclusão da HAP no processamento do leite antes da produção de derivados lácteos resulta em produtos mais estáveis, com maior rendimento e sabor e aromas intensificados, o que pode estimular as indústrias a investirem nessa tecnologia.
Leia também > Efeitos da homogeneização no leite e derivados
Autores
Ana Flávia Coelho Pacheco (Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Jeferson Silva Cunha (Bacharel em Ciência e Tecnologia de Laticínios e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Gabriela Zinato Pereira (Graduanda em Engenharia de Alimentos e membro do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Prof. Dr. Paulo Henrique Costa Paiva (Professor/pesquisador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes – EPAMIG-MG).
Profa. Dra. Érica Nascif Rufino Vieira (Professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenadora do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Dra. Alline Artigiani Lima Tribst (Pesquisadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação - NEPA/ UNICAMP)
Prof. Dr. Bruno Ricardo de Castro Leite Júnior (Professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos- LIPA/DTA/UFV)
Agradecimentos: ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq pelo financiamento do projeto (n° 429033/2018-4); e pela bolsa de produtividade a B.R.C. Leite Júnior (n°306514/2020-6) e a A.A.L. Tribst (n°305050/2020-6) e a FAPEMIG (APQ 00388-21).
Referências
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