Liberdade, igualdade, camembert!
Com esse pastiche do mote da Revolução Francesa terminava um artigo publicado no jornal Libération contra as novas regras de atribuição de um selo de qualidade ao célebre queijo — que teria surgido justamente durante a insurreição do fim do século 18.
O texto, da jornalista Véronique Richez-Lerouge, amotinava-se contra a suposta perda de personalidade do produto, a um passo de se ver transformado em “reles massa molenga sem gosto”, o que configuraria “uma vergonha, um escândalo, uma impostura”.
Placa em estrada regional indica o vilarejo de Camembert, na Normandia, que dá nome ao famoso queijo frances (Charly Triballeau - 11.abr.2013)
Um ano depois, as barricadas da batalha do camembert ainda estão nas ruas —ou, vá lá, nos campos da Normandia. É nessa região do noroeste francês que se produz o queijo que figura no panteão do orgulho nacional ao lado da Marselhesa e da baguete.
O processo tradicional de fabricação envolve a sobreposição de cinco camadas de coalho em formas esféricas, a intervalos de 50 minutos, para dar tempo à porção líquida de escorrer entre uma e outra. Segundo esse “savoirfaire”, só pode ser usado leite cru.
É aí que se encontra o contencioso, pois hoje uma versão genérica do alimento é produzida em larga escala por titãs do laticínio a partir de leite pasteurizado, mais fácil de transportar e armazenar e menos vulnerável a bactérias.
Desde 1983, um selo conhecido como Denominação de Origem Controlada (AOC, na sigla em francês) — AOP a partir de 1992 — fixa normas para o preparo do verdadeiro camembert e parâmetros para sua apresentação.
Trata-se de uma massa cilíndrica de 3 cm de espessura por 10,5 cm ou 11,5 cm de diâmetro curada por ao menos 21 dias e que deve levar em sua composição ao menos 45% de gordura. Outra condição é que ao menos metade do rebanho que fornece o leite usado na produção do queijo seja de vacas da raça normanda.
Os pré-requisitos criam entraves aos interessados em ingressar no segmento. Quem consegue cumpri-los e obtém a AOP, entretanto, tem como recompensa a possibilidade de cobrar mais pelo produto.
Nas grandes redes de supermercado, o camembert “comme il faut” custa geralmente entre 3 e 5 euros (R$ 13 e R$ 22). Já a versão genérica oscila entre 1,50 euro e 2,50 euros (R$ 6,50 e R$ 11).
Acontece que o segundo ganha em escala. Por não estar sujeito às regras da AOP, notadamente o uso exclusivo de leite cru, é produzido à altura de 60 mil toneladas por ano, contra cerca de 5.000 toneladas do primo autêntico.
A mudança atacada no artigo de Richez-Lerouge visa a estender o selo AOP, a partir de 2021, ao queijo feito com leite pasteurizado, hoje etiquetado com a inscrição “fabricado na Normandia” — o outro estampa em sua embalagem os dizeres “camembert da Normandia”.
“O que me enraivece é o desrespeito à filosofia das denominações de origem, que passa pelo reconhecimento de um só ‘savoir-faire’, de uma só tradição a ser transmitida a gerações futuras”, diz a jornalista, autora de um livro sobre as AOPs e presidente da Associação Queijos de Terroirs.
Para ela, um camembert industrial não tem nada a ver com o tradicional, é insípido, parece um gesso. “Quando a lei mudar, nosso queijo vai ter o gosto do feito no Canadá ou no Japão, não vai ter particularidade. É como se, a partir de amanhã, o champanhe pudesse ser feito mais rapidamente e com uvas de outras regiões que não aquela que lhe dá nome".
Patrick Mercier, presidente da Associação de Defesa e Gestão da AOP Camembert da Normandia, contesta o prognóstico sombrio. “A situação atual é que representa o pior dos mundos”, afirma ele, que também é produtor (com leite cru).
“Temos uma denominação sujeita a várias diretrizes e, ao lado dela, uma usurpação de identidade, que engana o consumidor, produz dez vezes mais e tem zero qualidade".
Daqui a dois anos, se a nova denominação prosperar (ainda faltam trâmites burocráticos na França e na União Europeia), sublinha Mercier, todo produtor que quiser pleitear o selo deverá ter ao menos 30% de vacas normandas no rebanho que gera a matéria-prima, o leite — e elas deverão pastar por ao menos seis meses anuais sob o céu do noroeste francês.
“Por isso, mesmo com a permissão da pasteurização, arrisco dizer que o camembert não vai se descaracterizar”, completa o gestor.
A antropóloga Mayra Lafoz, que faz doutorado entre Brasil (Unicamp) e França (EHESS) sobre as AOPs de queijos, também relativiza o aspecto conflituoso do debate em torno da flexibilização da apelação. Existem nuances por trás do aparente embate de Davi (queijeiros artesanais e pequenas propriedades leiteiras) contra Golias (indústria do laticínio). “Há muita interdependência e ganhos recíprocos. Quem vende leite de vaca normanda agora vai ter mais comprador. O pequeno produtor que mora longe da fazenda em que é extraído o leite cru, difícil de estocar, terá acesso ao selo com a abertura ao pasteurizado e valorizará seu produto.
Ilustração de William Mur da disputa sobre a produção do queijo camembert - William Mur/Folhapress
As informações são do jornal Folha de São Paulo.