Flávio Portela Santos: considerações sobre o teor de sólidos do leite

Publicado por: MilkPoint

Publicado em: - 9 minutos de leitura

Ícone para ver comentários 1
Ícone para curtir artigo 0


Flávio Augusto Portela Santos é Professor Doutor do Departamento de Produção Animal da ESALQ/USP. Sua formação acadêmica envolve graduação em Engenharia Agronômica pela ESALQ/USP, mestrado em Ciência Animal e Pastagens pela mesma Universidade e Ph.D. pela University of Arizona, Estados Unidos. Flávio é responsável técnico pelos sistemas de produção de leite e gado de corte da ESALQ e atua em pesquisas relacionadas a nutrição de vacas leiteiras e sistemas de produção de leite. Ele deu esta entrevista exclusiva ao MilkPoint, nos oferecendo sua visão a respeito do teor de sólidos do leite e aspectos que devem ser considerados no caso do pagamento por qualidade.

MilkPoint: O que afeta o teor de componentes do leite?

FAPS: De início, é importante deixarmos claro que, ao falar do teor de componentes do leite, normalmente falamos apenas em gordura e proteína, até como um reflexo da influência estrangeira, especialmente dos Estados Unidos. Porém, se voltarmos 30 a 40 anos na literatura dos Estados Unidos, vamos ver que problemas de baixo teor de lactose eram sérios. Hoje, temos observado, no Brasil, grande variação no teor de lactose, com baixos teores ocorrendo em função de manejo, deficiências nutricionais e problemas ambientais. Respondendo então à sua pergunta, os fatores que mais afetam a composição do leite são a nutrição, que é um ponto básico do sistema, além da questão ambiental, relacionado ao conforto animal, cujo impacto é tão grande quanto o da nutrição. O stress térmico tem um impacto muito grande no teor de gordura e de sólidos do leite. Se olharmos a curva de composição do leite ao longo do ano, mesmo nos Estados Unidos, com todos os cuidados relativos ao manejo intensivo em confinamento, é marcante a queda nos teores de gordura e proteína ao longo do ano. Isso, aqui para nós, ocorre também, embora talvez em menor intensidade porque parte do gado tem deficiência nutricional no inverno e começa a receber alimentos justamente no verão.

MKP: E a genética?

FAPS: É outro aspecto que afeta bastante a composição do leite, e que temos trabalhado muito pouco no Brasil, até porque quem trabalhou esse conceito, perdeu, visto que até agora não houve remuneração consistente para esses parâmetros. Em outras palavras, quem produziu leite com mais teor de sólidos não recebeu mais por isso. Agora, estamos tendo mudanças na remuneração e a genética com certeza é algo a ser trabalhado, mudando o conceito na escolha do sêmen.

MKP: Caso o pagamento por sólidos venha a se difundir no país, o que pode mudar para o produtor de leite?

FAPS: É importante sabermos de que forma o pagamento por sólidos vai se difundir. A bonificação pode ser entendida da seguinte forma: quem está produzindo leite acima de um determinado teor de proteína e de gordura, ganhará mais pelo leite à medida que produz leite mais rico nestes componentes. Porém, ao se calcular o custo nutricional para se obter leite com maior teor de proteína e gordura, o retorno precisa compensar. Nosso grupo inclusive fez um trabalho para uma empresa que havia implantado um sistema de pagamento levando em conta gordura e proteína e, em nossa avaliação, as mudanças nutricionais necessárias não compensaram o bônus, que se mostrou insuficiente. Era uma vantagem, certamente, para quem já produzia leite acima do valor mínimo e não recebia a mais por isso, mas não incentivava outros produtores a elevar o teor de sólidos. Enfim, é preciso que haja um trabalho técnico por trás, que efetivamente estimule a obtenção de leite com maior teor de sólidos pelos produtores.

MKP: Uma eventual disseminação do pagamento por sólidos pode implicar em alterações no sistema de produção de leite?

FAPS: Em relação a possíveis alterações, sem dúvida nenhuma vai haver maior exigência para formulação adequada de dietas, visto que não apenas a produção será considerada. Também, em relação à proteína do leite, teremos novos conceitos relativos ao balanceamento de aminoácidos, principalmente em rebanhos confinados. Vale dizer que, nos EUA, onde o uso desses conceitos ainda não é generalizado, há dados mostrando que há retorno econômico pelo emprego de aminoácidos protegidos, considerando os bônus que os produtores norte-americanos recebem pela proteína do leite. De modo geral, vai aumentar a importância do técnico em nutrição, que se fará mais necessária ainda.

No caso de sêmen, teremos maior demanda por índices compostos, não apenas olhando PTA leite, por exemplo, mas como os norte-americanos fazem, por exemplo, englobando em um único índice produção de leite, kg de proteína, kg de gordura, sanidade de úbere e longevidade, adaptando os pesos para a nossa realidade. Isso fará com que a seleção de touros tenha critérios econômicos ligados à realidade do pagamento por qualidade.

MKP: Há problema de baixa composição do leite em rebanhos a pasto?

FAPS: Nas condições de pasto tropical mal conduzido, utilizando vacas européias sem cuidado com o controle de stress térmico (falta de água e de sombra), certamente teremos problemas na composição do leite no verão. Há que se considerar também que, dependendo do nível de suplementação de concentrado, mesmo o animal a pasto pode ter deficiência de fibra efetiva na dieta, reduzindo o teor de gordura do leite. Vários programas de formulação de dietas colocam baixos valores para a efetividade da fibra de pasto tropical (48%). É muito comum vermos rebanhos a pasto com baixo teor de gordura do leite, mais baixo até do que rebanhos norte-americanos, confinados, com 12.000 kg de leite/vaca/ano, ou seja, que recebem dietas com alto teor de concentrado e estariam pré-dispostos a problemas com acidose ruminal e baixa gordura. O pasto tem condições de resultar em maior teor de sólidos desde que manejado corretamente.

Outro conceito equivocado, baseado no fato de grande parte da literatura disponível ser de origem norte-americana e européia, cujo nível de manejo é em média superior, é que o teor de lactose é constante. Mesmo nesses países, entre os anos de 1920 e 1950, havia grande discussão sobre essa questão. Sabe-se que, com stress térmico e sérios problemas nutricionais, a lactose cai e dá problema na crioscopia, o que gera um problema comercial, visto que a baixa crioscopia está normalmente associada à adição de água. Nesses casos, o problema é de ordem ambiental e nutricional, não se constituindo em fraude, mas o produtor pode ser penalizado. Há casos de lactose na faixa de 4,2 a 4,3%, contra os 5% normalmente considerados como valor usual.

MKP: O pagamento por sólidos aqui teria então de englobar lactose?

FAPS: Não tenho uma opinião formada sobre isso. Acho o teor de lactose é um problema que será resolvido à medida que solucionarmos problemas mais básicos de manejo. Talvez mostrando ao indivíduo que a penalização recebida se deu por falhas na nutrição e no manejo ambiental, por exemplo, consegue-se sensibilizá-lo para a questão. Agora, a indústria precisa conhecer bem esse aspecto também, procurando conhecer o manejo e a nutrição do rebanho e detectar se baixa crioscopia se dá por baixo teor de lactose ou por fraude. Não necessariamente a lactose precisa ser bonificada ou penalizada, mesmo porque ela deverá ser considerada dentro dos sólidos totais do leite.

MKP: Se fala muito em porcentagem, mas os países normalmente utilizam kg de gordura e proteína para remunerar o produtor. Poderia comentar esse fato?

FAPS: O sistema deve funcionar como na escolha de sêmen. O teor de proteína e de gordura está negativamente relacionado à produção de leite. O que interesse mesmo é a quantidade de kg de gordura e de proteína produzidos. Agora, se houver, como na Nova Zelândia, uma penalização para volume de leite, isso deve ser considerado no sistema, definitivamente desestimulando a produção de leite com baixo teor de sólidos (no caso deles, gordura e proteína).

MKP: Como implantar o pagamento por sólidos em país com grande diversidade de destinos para o leite, muitos dos quais o teor de sólidos tem pouca importância, como é o caso do Brasil?

FAPS: Tem de haver uma padronização. Se cada um fizer o seu, vai ficar complicado. Claro que as indústrias que produzem queijo deverão pagar muito mais pela proteína do que pela gordura. Os produtores que venderem sua produção para essas indústrias terão de selecionar touros e fazer seus ajustes de manejo e nutrição com base nisso. Para uma indústria de leite fluido, por exemplo, talvez não haja interesse no sistema de pagamento por sólidos. Entre as indústrias que trabalham com leite em pó, com queijo, iogurtes, é preciso haver uma padronização.

MKP: Qual o custo aproximado para se aumentar um ponto em proteína e gordura do leite?

FAPS: Não temos como definir esses números sem que se considere cada caso. É possível, no entanto, simular uma dieta de acordo com o NRC 2001 (sistema de exigências nutricionais), que produza leite com 3,5% de gordura e 3,2% de proteína. Podemos, a partir daí, simular um aumento da gordura para 3,7% e, com os mesmos ingredientes, ver qual seria o impacto nos custos. Pode-se usar uma dieta-padrão com base na realidade de cada Estado. Em São Paulo, essa dieta teria polpa cítrica, milho, farelo de algodão e outros ingredientes. Um exemplo prático é, em uma dieta típica, com alto teor de grãos, substituir parte do grão, como milho, por subprodutos fibrosos, como a polpa cítrica. Temos dados indicando que, quando a situação estava crítica, com teor de gordura do leite abaixo de 3,5%, é possível adicionar até 0,5 unidades percentuais de gordura com essa prática, saindo, por exemplo, de 3,1% para 3,6%, um aumento significativo. Se o teor de gordura já estiver em níveis altos na dieta padrão, daí o aumento será mais difícil, mas há dados da Flórida mostrando aumentos de 3,5% para 4,0% com a polpa no lugar do milho. Darei exemplos sobre esses impactos no evento do dia 11, promovido pela Leite Brasil.

MKP: E no caso da proteína?

FAPS: O potencial de aumento do teor de proteína é muito menor, embora, pelo valor mais alto normalmente pago pela proteína, o potencial de ganho pode se assemelhar. Temos no Brasil poucas opções para trabalhar com fontes de menor degradabilidade ruminal de proteína, técnica que contribui para aumentar o teor de proteína do leite. Estamos restritos ao farelo de soja e ao farelo de algodão, que têm alta degradabilidade ruminal. As fontes de proteína animal estão proibidas e o farelo proteinoso de milho é normalmente caro e apresenta má qualidade relativa ao perfil de aminoácidos, com baixo teor de lisina, podendo resultar em queda na produção ao substituir o farelo de soja. A farinha de peixe importada é muito cara e a nacional não tem bom padrão. É preciso trabalhar com farinha de peixe de boa qualidade, caso contrário o impacto pode ser negativo no desempenho e no teor de gordura do leite.

MKP: O Sr. acha que as alterações qualitativas terão também importância por aqui, como inclusão de ômega-3?

FAPS: Acho que essas opções estão a nível experimental ainda. A informação já existe, mas a disseminação dependerá de termos um consumidor disposto a pagar por isso, por um leite que traga maiores benefícios à saúde pela inclusão de determinados componentes. No Brasil, minha opinião é que estamos ainda bem longe dessa possibilidade, embora seja uma tendência, principalmente lá fora. Devemos primeiro efetivar um sistema de pagamento por sólidos, depois incluir no sistema o pagamento por proteína verdadeira, ao invés de proteína bruta, como normalmente se começa a remunerar. Depois, à medida que o consumidor exigir, pode-se pensar e manipular nutricionalmente o leite, com componentes visando à melhoria da saúde.
Ícone para ver comentários 1
Ícone para curtir artigo 0

Publicado por:

Foto MilkPoint

MilkPoint

O MilkPoint é maior portal sobre mercado lácteo do Brasil. Especialista em informações do agronegócio, cadeia leiteira, indústria de laticínios e outros.

Deixe sua opinião!

Foto do usuário

Todos os comentários são moderados pela equipe MilkPoint, e as opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos leitores. Contamos com sua colaboração.

Fernando Cerêsa Neto
FERNANDO CERÊSA NETO

BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 04/05/2004

Tenho me orientado com os seguintes teores de composição do leite:
gordura: 2.9 a 3.5; proteína: 2.9 a 3.3; lactose: 4.3 a 4.6; sólidos: 11.9 a 12.3. No artigo do ilustre Professor, tais teores pareceram-me inferiores aos ali constante, em especial no que se ocupa da lactose, cujo índice abaixo de 5% pode se constituir inclusive em julgamento potencial de fraude.
Como produtor, com realização de análises quinzenais do leite produzido em minha propriedade, nunca consegui atingir teor de lactose superior a 4.6%. A média das amostras analisadas no período de 30.03 a 07.09.03 foi de 4.42%. A média dos teores de gordura e proteína, no mesmo período, foram de 3.52% e 3.12% respectivamente.
Ficarei muito grato se puder obter orientação de como melhorar a qualidade do meu produto.
Muito obrigado.
Fernando Cerêsa Neto
Brasília (DF)
ceresa@montrealtour.com.br
(61) 325-1230 (comercial)
Qual a sua dúvida hoje?