A caseína é a principal proteína do leite bovino e de outros ruminantes, sendo reconhecida pelo seu alto valor nutricional. Possui papel fundamental na obtenção de alguns produtos lácteos e também é muito difundida entre atletas e amantes de esportes e exercícios físicos, sendo utilizada como um suplemento proteico para promover hipertrofia e emagrecimento.
Além deste consumo direto ou via ingestão de produtos lácteos, esta proteína também está presente nas nossas vidas por outras fontes, já que apresenta grande relevância em diferentes áreas como nas indústrias de alimentos, farmacêutica, dentre outros.
Para a produção de queijos, por exemplo, a coagulação da caseína, induzida pela adição do coalho, é a principal etapa para a obtenção do produto final. Na fabricação de iogurtes, a formação e estabilidade do gel ocorre pela ligação da “famosa” caseína com os resíduos de aminoácidos das proteínas do soro, expostos pela desnaturação destes biopolímeros (Walstra, Wouters, & Geurts, 2006).
Assim, falar de caseína vai muito além da sua riqueza nutricional, trata-se de uma matéria-prima com propriedades tecnológicas importantes para a fabricação de diferentes alimentos que são consumidos por pessoas de diversas faixas etárias e em várias ocasiões da dieta.
Para compreender o porquê de sua versatilidade e de sua amplitude nutricional e comercial é preciso entender o que é a caseína. A compreensão sobre esta proteína tão importante é o ponto de partida para adentrar no assunto e, inclusive, esclarecer algumas dúvidas no que diz respeito a sua utilização e função.
A caseína representa 80% da proteína do leite bovino e é encontrada na forma de nanoagregados supramoleculares chamados de micelas de caseína (MC). Além de conter quatro tipos de caseínas (αS1-, αS2-, β- e κ-caseína) e nanoclusters de fosfato de cálcio coloidal, a MC também possui água em abundância (Horne, 1998).
Estima-se que a MC possua, aproximadamente, 3,3 g de água/g de proteína. Esta água é distribuída de maneira diferente na MC: cerca de 15% é considerada água ligada, 30% está associada à camada mais externa da κ-caseína e 55% está aprisionada no interior da MC.
A presença dessa grande quantidade de água e a forma como ela se distribui nas MCs está relacionada a funções importantes destas estruturas, como hidratação e difusão livre de compostos dentro e fora das MCs (Huppertz et al., 2017).
Podemos dizer que a MC é naturalmente um nanocarreador de sais minerais e água, função que vem sendo explorada por diferentes áreas. Como pode ser observado na Figura 1, as frações αS1, αS2, β e os nanoclusters estão localizados na parte mais interna, enquanto a κ-caseína, na região externa da MC.
Figura 1. Micela de caseína.
Fonte: autoras, 2022.
No leite, as MCs são partículas coloidais formadas pela união das diferentes frações de caseínas e os nanoclusters de fosfato de cálcio são os responsáveis pela manutenção da estrutura micelar ligando as frações de caseínas entre si por meio de ligação de hidrogênio, ligação hidrofóbicas (principalmente no interior) e Forças de Van der Waals (Nicolai & Chassenieux, 2021). Por outro lado, as repulsões eletrostática e estérica fazem com que as micelas não se agreguem entre si e que haja milhares de nanoagregados suspensos no leite.
Diante de um constituinte extremante rico e versátil, neste artigo, vamos abordar algumas das inúmeras possibilidades de utilização da caseína dentro da indústria de alimentos.
Caseína na indústria de alimentos
Na indústria de alimentos, sobretudo na de lácteos, muitos processos básicos para a transformação do leite em derivados, dependem da MC e inclusive, da sua desestabilização coloidal.
Na produção de queijos, a MC é desestabilizada pela ação enzimática (coagulação enzimática) ou ácida (coagulação ácida) que alteram a superfície das micelas e ocasionam sua desestabilização e consequente agregação das proteínas que darão origem aos diferentes tipos de queijo.
Além das MCs, as suas frações também são ingredientes alimentares que melhoram a textura e a estabilidade de emulsões e géis. A β-caseína é um exemplo de molécula que devido a sua natureza anfifílica e estrutura secundária menos pronunciada, quando utilizada em emulsões, promovem o aumento da estabilidade, viscosidade e geram a sensação de cremosidade (Ranadheera, Liyanaarachchi, Chandrapala, Dissanayake, & Vasiljevic, 2016).
Na fabricação de iogurte, o leite que é um produto de baixa viscosidade transforma-se em um gel de média a alta viscosidade (dependendo do tipo de iogurte) por meio da formação de uma rede tridimensional formada por MCs e também pela formação de complexos entre a proteína do soro (β-lactoglobulina) com a κ-caseína presente na MC. Em outras palavras, sem MC e especificamente sem a fração κ-caseína, não é possível formar este tipo gel, iogurte.
Adicionalmente, a característica hidrofóbica da micela faz com que ela se ligue a outras moléculas hidrofóbicas por mecanismos incluindo interações hidrofóbicas, forças de van der Waals e ligações de hidrogênio (Krentz, García-Cano, Ortega-Anaya, & Jiménez-Flores, 2022).
Assim, centenas de pesquisadores por todo o mundo estudam a utilização da MC para carrear moléculas hidrofóbicas e também proteger compostos bioativos e ingredientes alimentares sensíveis por encapsulamento.
Quando o assunto diz respeito ao encapsulamento, as MCs são utilizadas como matrizes de parede/casca para diferentes moléculas como minerais (ferro), vitaminas (ácido fólico, vitamina D e β-caroteno), corantes (curcumina e vermelho 40), antioxidantes, flavonóides, polifenóis e muitos outros. Esta utilização também vem sendo explorada pelas indústrias farmacêutica e cosmética.
A utilização das MCs na indústria de alimentos, não para por aí! A busca incessante por embalagens de alimentos que minimize o impacto ambiental e inclusive, que melhore as características dos alimentos, tem encontrado as MC como materiais alternativos, tornando-as altamente visadas para essa aplicação.
As caseínas apresentam alto grau de flexibilidade molecular e grande número de grupos hidrofílicos que facilitam sua utilização em revestimentos de papel, adesivos e materiais de embalagem de alimentos. Filmes de caseína possuem resistência razoavelmente boa e baixa permeabilidade para oxigênio e outras moléculas não polares (Ma, Gan, Xu, Zhou, & Zhang, 2015).
É possível perceber como o conhecimento da estrutura da MC, com sua porosidade, hidratação, compostos minerais carreados naturalmente, permite uma vasta aplicação destas estruturas fantásticas em outras áreas!
Caseína como suplemento alimentar
Assim como os concentrados e isolados de proteínas do soro (popularmente conhecidos como whey protein), a caseína micelar é amplamente utilizada para a suplementação alimentar de atletas. Fornece aminoácidos essenciais, como triptofano, leucina e valina, para a construção e reparação das fibras musculares e, diferente das proteínas do soro, ela possui lenta digestão e absorção.
Nesse sentido, a caseína também é utilizada na fortificação proteica de alimentos infantis, em formulações alimentares especiais e na alimentação intravenosa (Carter et al., 2021).
É comercializada em três formas: caseína micelar, caseína hidrolisada e caseinato de cálcio, que se diferem pelo processamento. A caseína micelar em si é um macronutriente na sua forma mais pura e, portanto, hidrofóbica, de difícil solubilização e seu preparo requer a utilização de uma coqueteleira ou um mix.
A caseína hidrolisada é resultado da quebra, por meio da hidrólise promovida por enzimas, das caseínas em pequenas frações (peptídeos) que são absorvidas mais facilmente. Alguns peptídeos advindos das caseínas são chamados peptídeos bioativos, devido às suas funções estratégicas como redução da pressão arterial, ansiedade, insônia, dentre outros benefícios relacionados a doenças crônicas não contagiosas (Shivanna & Nataraj, 2020).
Por fim, o caseinato de cálcio que é obtido por meio da extração da MC do leite desnatado e posterior adição de hidróxido de cálcio. Apresenta melhor solubilidade em água e digestão mais rápida que as demais formas de caseína.
A suplementação de caseína é feita conforme a necessidade do atleta sob prescrição de um nutricionista ou nutrólogo que indicará a quantidade e o tipo de caseína mais adequados. Geralmente, pacientes que desejam ganho de massa muscular, faz a ingestão da MC 30 minutos antes de dormir. Por outro lado, para aqueles que desejam perder peso, a ingestão deste suplemento pode ser administrada ao longo do dia.
A partir do que foi exposto brevemente neste artigo sobre as funções e aplicações das caseínas, é possível perceber que o leite, além de ser um alimento extremamente nutritivo e capaz de gerar derivados saborosos e de relevância nutricional, também é uma importante fonte de nutrientes com potencial de aplicação em diferentes áreas fundamentais para a manutenção da vida moderna.
Isto significa que a nutrição/alimentação é apenas uma parte (muito importante) deste sistema complexo e fascinante que é o leite. No nosso próximo artigo, falaremos mais sobre aplicações não alimentícias dos constituintes do leite. Aguardem!
Gostou do conteúdo? Deixe seu like e seu comentário, isso nos ajuda a saber que conteúdos são mais interessantes para você. Quer escrever para nós? Clique aqui e veja como!
Leia também > As moléculas de caseína desnaturam?
Referências
Carter, B. G., Cheng, N., Kapoor, R., Meletharayil, G. H., & Drake, M. A. (2021). Invited review: Microfiltration-derived casein and whey proteins from milk. Journal of Dairy Science, 104(3), 2465–2479. https://doi.org/10.3168/JDS.2020-18811
Horne, D. S. (1998). Casein interactions: Casting light on the black boxes, the structure in dairy products. International Dairy Journal, 8(3), 171–177. https://doi.org/10.1016/S0958-6946(98)00040-5
Huppertz, T., Gazi, I., Luyten, H., Nieuwenhuijse, H., Alting, A., & Schokker, E. (2017). Hydration of casein micelles and caseinates: Implications for casein micelle structure. International Dairy Journal, 74, 1–11. https://doi.org/10.1016/J.IDAIRYJ.2017.03.006
Krentz, A., García-Cano, I., Ortega-Anaya, J., & Jiménez-Flores, R. (2022). Use of casein micelles to improve the solubility of hydrophobic pea proteins in aqueous solutions via low-temperature homogenization. Journal of Dairy Science, 105(1), 22–31. https://doi.org/10.3168/JDS.2021-20902
Ma, J., Gan, C., Xu, Q., Zhou, J., & Zhang, J. (2015). Amphiphilic copolymer stabilized core–shell structural casein-based emulsion. Colloids and Surfaces A: Physicochemical and Engineering Aspects, 471, 65–72. https://doi.org/10.1016/J.COLSURFA.2015.02.027
Nicolai, T., & Chassenieux, C. (2021). Heat-induced gelation of casein micelles. Food Hydrocolloids, 118, 106755. https://doi.org/10.1016/J.FOODHYD.2021.106755
Ranadheera, C. S., Liyanaarachchi, W. S., Chandrapala, J., Dissanayake, M., & Vasiljevic, T. (2016). Utilizing unique properties of caseins and the casein micelle for delivery of sensitive food ingredients and bioactives. Trends in Food Science & Technology, 57, 178–187. https://doi.org/10.1016/J.TIFS.2016.10.005
Shivanna, S. K., & Nataraj, B. H. (2020). Revisiting therapeutic and toxicological fingerprints of milk-derived bioactive peptides: An overview. Food Bioscience, 38, 100771. https://doi.org/10.1016/J.FBIO.2020.100771
Walstra, P., Wouters, J. T. M., & Geurts, T. J. (2006). Dairy Science and Technology. Food science and technology. https://doi.org/10.1017/9781108772297.018