À medida que as fazendas brasileiras selecionam vacas com maior produção de leite, o desafio metabólico enfrentado por cada vaca do rebanho aumenta.
Tal fato, aliado à preocupação em aumentar a precisão da formulação de dietas, cria demanda por um monitoramento cada vez mais intenso dos animais.
A análise de leite individual oferece oportunidades interessantes neste sentido, por ser uma forma de coletar dados não invasiva, de relativo baixo custo e fácil acesso. Apesar destas vantagens, a utilização sistemática da composição do leite como ferramenta de manejo nutricional é ainda pouco explorada no Brasil: dos produtores que enviam mensalmente amostras de leite individual ao Instituto Clínica do Leite para análise de contagem de células somáticas (CCS), apenas 30 a 40% também solicitam análises de sólidos e nitrogênio ureico do leite (NUL).
Parte desta baixa utilização pode ser explicada pela falta de clareza dos resultados esperados para a composição do leite, tendo em vista o histórico de baixa valorização do teor de sólidos no país. Além disso, como diversos fatores não nutricionais (produção de leite e dias em lactação, principalmente) também afetam a composição do leite, utilizar a informação obtida pela análise individual no manejo nutricional da fazenda pode ser complexo.
Dessa forma, utilizando o rebanho da Universidade Federal de Lavras, realizamos um trabalho exploratório com o objetivo de correlacionar os resultados de análise de leite individual à formulação de dietas e manejo nutricional dos animais, em uma condição de sistema produtivo, sujeito a maior complexidade do que em situações experimentais com alto controle de variáveis.
Os animais monitorados estavam alojados em um free stall com camas de areia e eram divididos em dois lotes, sendo um lote de primíparas e outro lote de multíparas. A coleta de dados foi realizada de 01/08/2020 a 10/03/2021. Neste período, amostras de leite individual dos animais nos dois lotes foram coletadas 12 vezes (intervalo médio de coletas = 18 dias) e enviadas para o Instituto Clínica do Leite para análise. Sessenta e sete vacas em lactação passaram pelos dois lotes.
O lote de primíparas teve, em média ± desvio padrão, 25 ± 1,5 animais e o lote de multíparas teve 18 ± 1,4 animais, que geraram um total de 513 observações individuais. Juntamente com a composição do leite por vaca, a cada período foram coletadas as variáveis individuais: produção de leite, dias em lactação e peso corporal, bem como as variáveis de lote: consumo de matéria seca (CMS), amostras de dieta total misturada (TMR) e sobras para análise, distribuição de partículas e índice de seleção utilizando o conjunto de peneiras Penn State (19, 8 mm e fundo) e o escore de ruminação (porcentagem de vacas ruminando no lote duas horas após a alimentação).
Ambos os lotes recebiam a mesma dieta, que era fornecida uma vez por dia, às 06:00 horas, e continha os ingredientes: silagem de milho, feno de tifton, milho reidratado, polpa cítrica, farelo de soja, caroço de algodão, ureia, calcário calcítico, sal branco e premix mineral e vitamínico.
Durante o período de monitoramento, a composição média da dieta consumida, em % MS, foi de 16,5% PB, 31,1% FDN, 24,4% amido, 5,3% EE e 6,8% cinzas. A distribuição de partículas média da dieta ofertada, em % MN, avaliada com a Penn State, foi de 9,3% > 19 mm, 43,5% de 8 a 19 mm e 47,2% no fundo.
Após o término da coleta de dados, as variáveis individuais (gordura do leite, produção de leite e DEL) foram transformadas em variáveis do lote, pelo cálculo da média ponderada. Sequencialmente, as observações por lote (n = 24) foram agrupadas pelo teor médio de gordura, gerando os grupos G1 (n = 8 observações de lote), G2 (n = 8) e G3 (n = 8). Estes grupos foram então comparados estatisticamente, utilizando um modelo misto no software SAS Studio. Os principais resultados desta comparação estão apresentados na tabela
Tabela 1. Principais resultados separando as observações por teor de gordura do leite do lote. Letras diferentes na mesma linha indicam diferença pelo teste Tukey (P ≤ 0,05).
¹FDN > 8 mm. Calculado utilizando uma regressão que estima o real teor de FDNfe em silagem de milho, em que FDNfe silagem de milho = 4,5798 + (0,9465 x % FDN na MS X % de partículas > 8 mm em MN) e assumindo todo FDN do feno de tifton e caroço de algodão como FDNfe (PEREIRA, 2021, comunicação pessoal). ²Distribuição de tamanho de partículas utilizando as peneiras Penn State. ³Valores para Seleção menores que 100% indicam seleção contra e valores maiores que 100% indicam seleção a favor. 4Porcentagem de vacas no lote ruminando duas horas após a alimentação.
As relações entre gordura do leite e nutrição são bem descritas na literatura, mas de modo geral resultam de experimentos em que as outras variáveis são controladas, permitindo enxergar com mais clareza essa conexão.
As inferências que seriam possíveis a partir dessas associações ficam mais fracas em uma condição de fazenda, em que as variáveis não nutricionais ganham importância. Dessa forma, buscamos estratégias para analisar e interpretar as análises de leite individual nesse contexto complexo para tomada de decisões nutricionais.
O agrupamento dos dados de lote por teor de gordura nos permitiu avaliar o impacto das variáveis intrínsecas ao animal e à dieta neste componente do leite. Foi interessante notar que as características relacionadas às vacas, como DEL, CMS e produção de leite não foram diferentes entre os grupos.
As concentrações dos principais carboidratos da dieta (FDN e amido) consumida também não foram diferentes entre os grupos, mesmo com as grandes variações no teor de gordura do leite entre eles.
O balanço entre carboidratos fibrosos e não fibrosos interfere no ambiente e na fermentação ruminal e, consequentemente, na produção dos precursores da gordura do leite, bem como de ácidos graxos bioativos que regulam a síntese deste componente na glândula mamária. No entanto, essa relação não depende somente da participação desses nutrientes na dieta.
A forma física dos carboidratos fibrosos tem grande importância por afetar diversos parâmetros ruminais relacionados a saúde da vaca leiteira, como formação do MAT, motilidade, velocidade de absorção dos ácidos graxos de cadeia curta, ruminação, produção de saliva e pH. Iniciativas de criar referências para indicadores de efetividade física da fibra da dieta têm sido discutidas na comunidade científica.
De fato, a efetividade física da fibra da dieta (FDNfe) foi maior nos grupos de maior gordura do leite, o que evidencia a importância de se considerar o tamanho de partículas e utilizar uma medida de FDNfe na formulação de dietas, principalmente quando a principal forragem utilizada for silagem de milho finamente picada, condição comumente encontrada no Brasil.
Menores teores dietéticos de FDNfe estão associados a menor pH ruminal e ocorrência de acidose subaguda (SARA), enquanto maiores teores de EE aumentam a quantidade de ácidos graxos insaturados que precisam ser biohidrogenados pelas bactérias ruminais. De fato, o teor de EE da dieta também foi diferente entre os grupos, de forma inversa ao teor de gordura no leite.
Ambas as condições, principalmente quando ocorrem simultaneamente, favorecem a rota alternativa de biohidrogenação de ácidos graxos insaturados e aumentam a produção de C18:2 trans-10, cis-12 (dentre outros ácidos graxos intermediários), que atua como potente inibidor da síntese de gordura na glândula mamária.
A maior proporção de partículas entre 8 e 19 mm e menor seleção contra partículas > 19 mm também são evidências que corroboram com a teoria da biohidrogenação alternativa. Vacas leiteiras normalmente selecionam contra partículas longas e a favor de partículas curtas, o que leva a um consumo desbalanceado entre carboidratos fermentáveis e FDNfe, reduz o tempo de ruminação, altera o ambiente ruminal e aumenta o risco de SARA.
O trabalho de Miller-Cushon e Devries (2015) reportou que para cada redução de 10 unidades percentuais no índice seleção contra partículas longas, espera-se queda de 0,10 unidades percentuais no teor de gordura do leite. No presente trabalho, uma redução de 13,9 unidades percentuais no índice de seleção contra partículas > 19 mm foi associada a queda de 0,34 unidades percentuais no teor de gordura do leite, mostrando um efeito ainda mais expressivo.
Consideradas em conjunto, a maior efetividade física da fibra, a melhor distribuição das partículas (maior proporção entre 8 e 19 mm) da dieta e a menor seleção contra partículas longas foram associadas a maior teor de gordura no leite, como esperado.
O escore de ruminação sugere que essa relação é resultado de mudanças no ambiente ruminal e, provavelmente, do fluxo de ácidos graxos reguladores da gordura do leite para o intestino.
O fato de que o agrupamento dos lotes por teor de gordura do leite individual possibilitou a detecção dessas diferenças em manejo alimentar cria oportunidades para o desenvolvimento de ferramentas de monitoramento nutricional a partir da análise de leite, mesmo em uma condição complexa de fazenda.
Futuras investigações deveriam focar em modelar essa relação entre a média de gordura do lote e distribuição adequada do tamanho de partículas da dieta. A partir disso, indicadores e referências poderiam ser criados a partir do teor de gordura no leite do lote, o que auxiliaria na detecção de problemas de manejo alimentar.
Gostou do conteúdo? Deixe seu like e seu comentário, isso nos ajuda a saber que conteúdos são mais interessantes para você.
Foto do artigo: Freepik