No que se refere ao consumo de lácteos (ou melhor, ao balanço entre oferta e demanda de lácteos), tivemos até agora 3 momentos distintos. O primeiro, de algumas semanas, no início da pandemia, assistiu ao aumento das compras de abastecimento, resultando em elevação dos preços de alguns produtos, como leite UHT e leite em pó, ao mesmo tempo em que produtos com forte participação no food service (como queijos), caíram de preço.
O segundo momento ocorreu a partir de meados de abril, quando os efeitos da quarentena no consumo se mostraram mais evidentes: as compras de abastecimento visando estocagem em maior quantidade deixaram de ocorrer, ao mesmo tempo em que ficou claro que não voltaríamos ao normal tão cedo. Os preços do leite UHT sofreram queda no atacado, visto que haveria um limite para o leite antes destinado ao food service pudesse ser processado em outros produtos lácteos, como o UHT.
O terceiro momento é o que vivemos agora. A entrada da entressafra, intensificada pelo desestímulo em função da queda de preços ao produtor e do aumento dos custos de alimentação, fizeram o mercado mudar novamente. Agora, assistindo à elevação dos preços no atacado para todos os principais lácteos, inclusive aqueles mais afetados pelo virtual fechamento dos canais de food service. Alguns laticínios criam programas de incentivo para a produção de leite extra. O leite spot passa dos R$ 2. Agora vai!
A sensação que se tem é que, no final, o bicho não foi tão feio assim. Estamos passando pela pandemia com danos – sem dúvida – mas nenhum fatal. Há até uma possibilidade de recuperar nos próximos meses as perdas de abril e maio. Mas...
Há um componente fundamental cujo efeito ainda não conseguimos quantificar, mas que tudo indica ter papel preponderante para a pré-conclusão acima. Trata-se dos programas de auxílio emergencial de renda implementados pelo governo. De acordo com as estimativas do mercado, a queda de renda até agora foi da ordem de R$ 70 bilhões, ao passo que os benefícios agregados já são de R$ 200 bilhões e podem chegar a R$ 250 bilhões. Como cita neste vídeo Mansueto de Almeida, Secretário do Tesouro, os beneficiários do Bolsa-família estão tendo o equivalente a 18 meses do programa, concentrados em 3 meses (considerando 2 pessoas por família, recebendo R$ 600 mensais).
É sensato considerar que esse aporte de liquidez, ainda que não efetuado de forma homogênea (provavelmente muitos que precisam não estão tendo acesso), em grande parte é direcionado ao consumo de alimentos.
Uma matéria da Folha de São Paulo atesta essa hipótese. Pesquisa da consultoria Horus indica que “o valor das compras no varejo de mantimentos subiu nos dias seguintes à liberação do auxílio emergencial de R$ 600, em sinal de que o recurso foi usado para a obtenção de itens de primeira premência. A média saltou de um patamar em torno de R$ 35 no dia 14 de abril, quando saiu a primeira parcela, para mais de R$ 55 no dia 18 e a quantidade de produtos na sacola saiu de seis para dez”. Além disso, o auxílio emergencial deslocou o pico de compras para o meio do mês, algo que normalmente não ocorre.
Não há como saber quem pesa mais na balança para determinar o atual momento de mercado: a falta de oferta (incluindo importações) ou o aumento artificial da renda. O Índice de Captação de Leite do CEPEA (ICAP-L) indicou pequena queda, de 0,6%, entre março e abril. Normalmente, a queda é maior. Mas maio pode ter tido resultado diferente, com redução mais pronunciada, o que explicaria uma parte do movimento ascendente.
Eu jogo minhas fichas, porém, no auxílio de renda. Acredito que seja ele quem está mantendo o mercado andando. A grande questão é: o que ocorrerá quando o auxílio terminar? Fala-se em prorrogação de 2 meses, mas o fato é que não há dinheiro para manter o programa por muito tempo. O melhor dos mundos é que seja feita uma eliminação gradual, que coincida como a retomada da economia e dos trabalhos, permitindo aquilo que se chama de soft landing (aterrisagem suave). Mas nada garante ou indica que isso irá ocorrer. Se isso não for a realidade, em algum momento teremos o choque de demanda encontrando o produtor animado com a recuperação dos preços (oferta em recuperação).
Por isso, cuidado com a euforia. A verdade é que estamos andando sobre gelo fino. E navegando em mares desconhecidos, para terminar com mais uma metáfora.