Em artigo publicado no MilkPoint do dia 14/07/2004 (Clique Aqui para ler) argumentamos que "... a produção de leite a pasto ... quando comparada com sistemas em confinamento, é mais viável economicamente, apresentando margem de lucratividade até 50% maior ....". Nossa afirmativa causou uma surpreendente, mas proveitosa, polêmica entre os leitores. Várias manifestações sobre o assunto foram encaminhadas ao site e publicadas pelo editor, sem falar das mensagens que recebemos diretamente, sempre contendo elogios e questionamentos de produtores, técnicos e especialistas em produção de leite. Tanto nas cartas como nos contatos pessoais, em cada dez leitores, oito discordaram de nosso posicionamento.
O importante, e até honroso para nós que despertamos a discussão, é que as manifestações partiram principalmente de pesos pesados do leite nacional, entre eles técnicos gabaritados no assunto e outros, grandes produtores igualmente experientes e respeitados pelos posicionamentos sensatos que tomam publicamente sobre as questões do agronegócio do leite. Houve um choque entre técnicos da academia e a turma da produção, que realmente entende do curral e vive o mundo selvagem do mercado, dos custos altos, das margens apertadas (freqüentemente negativas), dos preços baixos, da instabilidade dos preços e da falta de políticas consistentes para o setor
É verdade que nossa conclusão foi extraída de resultados de experimento (de "canteiros", como alguns dizem) e, como se sabe, nem sempre um experimento, pelas próprias condições em que é conduzido, reflete as armadilhas do mundo real. Ademais, experimentos acontecem sob condições controladas. Sob esta ótica, avaliação com 32 vacas, ainda que conduzido durante dez anos e com o maior cuidado e rigor possíveis para se evitar erros nas mensurações, jamais poderia fundamentar conclusões polêmicas como esta que tiramos: "leite a pasto dá mais lucro que o leite em confinamento".
Pois bem: estamos aqui para falar mais sobre o assunto. Tentaremos voltar com mais informações e (tentar, quem sabe?) trazer algumas colocações que possam complementar melhor o que falamos. Convidamos os leitores que se manifestaram e também os que em silêncio acompanharam a polêmica, para conosco desenvolvermos raciocínio simples sobre duas fazendas de produção de leite: uma delas produzindo leite no sistema que chamamos "a pasto", em que 60% dos requerimentos nutricionais diários das vacas leiteiras são fornecidos pelo pasto; a outra produzindo leite em confinamento. Cada uma com 100 vacas em lactação, na média do ano.
Custos apurados
Tomando como base as informações e os critérios comparativos propostos e apresentados em detalhes no Anexo (colocado no final deste artigo) e fazendo os cálculos (sugerimos ao leitor fazer os cálculos também), chegamos aos seguintes resultados sobre os custos nas duas fazendas, nas simulações de produtividade (20, 25 e 30 l/vaca/dia no confinamento) e taxa de lotação (3, 4, 5 e 6 vacas/ha na pastagem) propostas:
Estimativa dos custos com a alimentação das vacas em efetiva produção, dos demais custos e da renda líquida em fazendas de leite com 100 vacas em lactação.
Pelos valores apresentados no quadro, algumas considerações que podemos levantar são: a) em termos de custos unitários, a produção de leite em regime de confinamento fica competitiva com a produção intensiva a pasto somente com níveis de produtividades diárias de 30 litros, por vaca; b) com um preço médio de R$ 0,62 por litro de leite (em setembro de 2004 produtores com mais de dois mil litros/dia conseguiram este preço), uma fazenda, com 100 vacas em lactação mantidas em pastagens (taxa de lotação de 3 vacas/ha) e produzindo em média 19 litros/vaca/dia, alcançou rentabilidade bruta superior a uma fazenda com o mesmo número de vacas em lactação, mas em confinamento, produzindo em média 25 litros/vaca/dia.
Com capacidade de suporte de 6 vacas/ha, a fazenda que utiliza a pastagem pode obter uma rentabilidade semelhante a do confinamento com 30 litros/vaca/dia; c) a produção de leite a pasto, mesmo com produtividade individual 30% menor, compete com a produção confinada em termos de rentabilidade; d) a produção de leite em regime de confinamento, para dar lucro na situação atual, precisa ter uma produção média diária por vaca igual ou superior a 25 litros de leite.
A questão da terra
É evidente que, numa fazenda com produção de leite em sistema confinado, a produtividade da terra é maior e, conseqüentemente, os custos indiretos do capital nela empatados pesarão menos nos custos do leite. No entanto, se levarmos em conta a área necessária para se produzir a silagem (lembrar que não é fácil produzir mais do que 70 toneladas de silagem de milho por ha/ano, mesmo considerando dois cultivos anuais na mesma área) e uma taxa anual de juros reais de 6 a 9% sobre o capital investido em terras, percebe-se que este fator de produção onera os custos do leite "a pasto" em pouco mais de R$0,05 (meio centavo) por litro, quando comparado com o confinamento.
Por outro lado, pelos dados do quadro, o uso da pastagem reduziu o custo do leite em até dez centavos por litro, quando comparado com o leite produzido pela fazenda que utiliza confinamento. Explica-se: mesmo sendo "a pasto" a produtividade relativa da terra continua alta, pois, pressupõe uma taxa de lotação de pelo menos quatro vacas/ha durante o período das águas. Suspeitamos, portanto, que a questão da produtividade da terra, mesmo sendo menor na fazenda que utiliza o pasto, não será o principal fator de decisão, ou o que vai deixar ou não confinamento mais competitivo.
Para concluir
Tudo que comentamos anteriormente foi sustentado em produtividades e critérios que podem ser questionados (sugerimos checá-los no anexo). O importante no entanto é que fizemos alguns cálculos que imaginamos que os produtores adeptos (ou não) do confinamento precisam fazer. Existe espaço no Brasil (e vai existir por muito tempo ainda) para uma infinidade e diferentes modelos de produção de leite. Sejam eles grandes ou pequenos, focados no pasto ou no confinamento, com vacas de média ou de alta produtividade, especializados ou mistos. A qualidade do gerenciamento (fazer contas faz parte do bom gerenciamento) e o uso de uma tecnologia adequada é que vão decidir os que vão dar lucro ou não, os que vão sobreviver, ou os que vão "liquidar" todo o plantel em um leilão anunciado numa revista do ramo. A possibilidade de se cometer erros ao fazer contas é muito grande. O erro será maior, no entanto, se deixar de fazê-las. Acertar as contas e errar nos critérios também dá no mesmo.
Confiram os critérios que estabelecemos. Num deles assumimos que os custos que não são relativos à alimentação das vacas em lactação são mais elevados no confinamento do que no pasto. Imaginamos que produzir leite em confinamento envolve maiores investimentos em benfeitorias, instalações e máquinas, maiores gastos com medicamentos e mão-de-obra, investimentos em animais mais caros e possivelmente menos resistentes a enfermidades, manejo mais complicado dos dejetos, não perdendo de vista também a questão do meio ambiente. Isto pode estar tudo correto ou não. Fizemos, no entanto, uma análise que gostaríamos que fosse considerada. Nossos dados sobre a produção em pastagem foram extraídos de pesquisas, mas espelhados em fazendas reais de produção a pasto. Podemos também trocar idéias com técnicos e produtores já experientes no confinamento e fundamentando as contas em dados de fazendas reais e com maiores escalas de produção, maiores produtividades e com bom gerenciamento. Deve ser considerada também a possibilidade de reduzir os custos "enxugando" os investimentos e, principalmente, utilizando alimentos alternativos mais baratos ou mais eficientes.
Anexo:
Detalhamento das duas fazendas comparadas
Fazenda com produção em confinamento:
Nesta fazenda as vacas são holandesas puras, com potencial de 6.000 a 9.000 kg de leite por lactação, recebem toda a sua alimentação (volumosa e concentrada) no cocho, sendo o volumoso uma silagem de milho de boa qualidade. Esta fazenda foi simulada em três níveis diferentes de produtividade média: 20, 25 e 30 litros de leite, por vaca, por dia. As quantidades diárias médias de concentrado e de silagem de milho, fornecidas para cada vaca, ao longo de toda a sua lactação, variaram de acordo com a produtividade. No primeiro caso (20 litros/dia) as vacas receberam em média 8,6 kg de concentrado e 29,8 kg de silagem. No segundo caso (25 litros/dia) 10,4 kg de concentrado e 31,8 kg de silagem e no terceiro (30 litros/dia), 12,7 kg de concentrado e 33,8 kg de silagem.
Fazenda com produção "a pasto":
Aqui as vacas, durante uma média de sete meses mais quentes e chuvosos do ano, permanecem numa pastagem de Cynodon (Tyfton 85 e Coast-Cross), adubada e com manejo rotacionado, sem complementação volumosa de cocho. Nos outros cinco meses, apesar de continuarem na pastagem, faz-se a suplementação volumosa com silagem de milho na média de 30 kg/vaca/dia. Ao longo do ano, recebem uma média de 6 kg de concentrado e produzem 19 kg de leite por dia. São animais com potencial para produção de 4.500 a 6.000 kg de leite por lactação. Esta fazenda foi simulada em quatro diferentes taxas de lotação: 3, 4, 5 e 6 vacas/ha.
Comparação dos custos e das margens de rentabilidade:
A título de simplificação foram estabelecidos alguns critérios, em torno dos quais poderia existir consenso, sem, no entanto, prejudicar a análise e nem "inventar" vantagens para um ou outro sistema.
1. O primeiro critério proposto foi dividir os custos de produção do leite, em duas partes. Uma que se chamou de A e a outra de B, cada uma incluindo o seguinte:
Parte A: inclui somente o custo de alimentação das vacas que estão efetivamente em lactação. Neste custo estão somadas todas as despesas com a pastagem, com a silagem de milho e o concentrado consumidos durante o ano.
Parte B: nesta parte foram incluídos todos os demais itens do custo do leite, entre eles os seguintes: mão-de-obra; medicamentos, produtos sanitários e assistência veterinária; ordenhadeira; inseminação; energia; manutenção do gado solteiro (vacas que não estão em lactação, novilhas e fêmeas em crescimento); juros e depreciações do capital investido em máquinas, equipamentos, benfeitorias e instalações; taxas e impostos; gerente; administração; e escritório. Do total desta parte B foram subtraídas as receitas apuradas com a venda de animais de descarte, processo que já se faz geralmente na determinação dos custos do leite.
2. Sabendo que: a) num sistema a pasto os custos desta parte B tendem a ser menores, se comparados com o confinamento; e b) os custos da alimentação (volumoso, pastagem e concentrados) representam em média aproximadamente a metade dos custos totais do leite (as planilhas de custos indicam isto) e levando em conta estimativas feitas em fazendas reais, assumiu-se que esta parte B, no sistema confinado, teria um valor fixo de R$ 230.000,00 e de R$ 172.500,00 (25% menor) na fazenda que utiliza a pastagem. Ao assumir um valor fixo para os custos da parte B na fazenda confinada, permitiu-se detectar a economia de escala nos vários itens dos custos fixos ao aumentar a produtividade do rebanho. Desta forma, tornou-se possível simplificar bastante as contas, pois passamos a tratar somente da alimentação das vacas em lactação, a parte A do custo, que entendemos seria o diferencial de rentabilidade das duas fazendas comparadas.
3. O terceiro critério proposto foi assumir que os custos unitários dos alimentos seriam iguais nas duas fazendas, e com os seguintes valores (para setembro de 2004):
- concentrado: R$ 570,00/tonelada;
- silagem de milho: R$ 60,00/t (inclui lavoura, processo de ensilagem, armazenamento, perdas totais e assistência agronômica)
- pastagem: R$ 1.395,00/ha (custo de utilização anual estimado para uma pastagem de Cynodon que inclui, entre outros itens, depreciação e juros sobre capital, manutenção anual com adubo (1.000 kg), calcário, mão-de-obra, cercas e assistência agronômica).
4. Como quarto critério, para fazer a comparação, assumiu-se que em cada uma das duas fazendas, pelo menos ao longo dos doze meses de nossa análise, haveria sempre 100 vacas em lactação. Ou seja, no momento em que determinada vaca interrompe a lactação, ela passa para a categoria "gado solteiro" e é substituída por outra recém- parida.
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1João Cesar de Resende e Duarte Vilela são Pesquisadores da Embrapa Gado de Leite