No último dia 29, tivemos mais uma prova da evolução da cadeia produtiva do leite, que vem fazendo sua lição de casa e se tornando competitiva em um espaço exíguo de tempo. A prova ocorreu no debate "Onde estamos? Para onde vamos?", promovido pela Associação Brasileira dos Criadores de Girolando, durante a Megaleite, em Uberaba.
O debate, moderado pelo grande repórter José Hamilton Ribeiro, da Rede Globo, teve como entrevistados Jacques Gontijo, da Itambé, Rodrigo Alvim, da CNA, e Maçao Tadano, do MAPA (Roberto Rodrigues, o convidado original, havia deixado o governo no dia anterior). Como entrevistadores, além de mim, André Mesquita, da Serlac, Fernando Brasileiro, da Girolando, Lino Rodrigues, da FEA/USP e ASBIA, Paulo Martins, da Embrapa Gado de Leite, René Machado, da DPA, Roberto Jank, da Agrindus, Láctea e Leite Brasil.
Os temas do debate em nada se assemelharam a discussões setoriais do passado, normalmente marcadas por pleitos paternalistas, acusações infrutíferas e por um grande desconhecimento das características do mercado interno e externo, que impediam uma discussão mais objetiva e voltada para o futuro. Aliás, dado o histórico de relacionamento entre os agentes e a restrita transparência, a realização de eventos semelhantes por si só já era algo improvável.
Dessa vez, não. Estavam ali, para discutir os problemas, as soluções e as aspirações do setor, lideranças de produtores e da indústria, a pesquisa, o governo e prestadores de serviço. Vale aqui o registro de que o pioneirismo de realização desse tipo de evento foi a Leite Brasil, junto a Faesp, através dos já tradicionais debates da Expomilk. A Girolando soube trabalhar o modelo de forma muito eficiente e merece o sucesso do evento, medido pela presença de algumas centenas de produtores e pela sensação de que estamos evoluindo.
O otimismo marcou o evento. Jacques Gontijo, da Itambé, acha que em 2015, estaremos consumindo cerca de 160 kg de leite per capita e exportando 3 bilhões de litros anuais, refletindo uma produção interna de cerca de 36 bilhões de litros (pelos meus cálculos), 44% maior do que a atual. São números expressivos, que demonstram não só o grande potencial de aumento da produção comentado também por Rodrigo Alvim, mas também a confiança em nossa capacidade de aumento do consumo interno e de participação no mercado externo. Confiança no setor pode parecer o mais básico dos insumos, mas em se tratando de um setor historicamente (auto)-desprezado, não deixa de ser uma mudança e tanto.
Falou-se também no papel do governo; em nenhum momento, mencionou-se medidas paternalistas. Pelo contrário, cobrou-se o papel de normatização e fiscalização, além de maior agilidade nas negociações internacionais ("por que fazemos tão poucos acordos bilaterais, ao contrário do Chile?", perguntou René Machado, da DPA), uma legislação mais condizente com as necessidades do mercado e a rápida ampliação dos laboratórios de análise de leite, para que não haja esse óbvio gargalo.
Paulo Martins, da Embrapa, centrou sua participação nas necessidades de pesquisa para que o setor venha a colher, de forma sustentável e crescente, os resultados que está se propondo atingir. A inovação e o desenvolvimento interno de novas tecnologias e produtos na área de alimentação, envolvendo lácteos, foi um dos pontos altos da discussão.
Abordou-se ainda a questão do marketing de lácteos, algo que vem fazendo parte de qualquer discussão na história recente do setor. Jacques, da Itambé, reforçou que sua empresa é a favor da iniciativa e fará parte desde o início, assim que houver um programa nacional. René, da DPA, perguntou a Alvim o que acha do impacto dos produtos subtitutos, que vem afetando o mercado de lácteos. Nova realidade, novas preocupações.
Roberto Jank, da Leite Brasil, Láctea Brasil e Agrindus, reconheceu que mudou muito a maneira pela qual os laticínios compram leite no país. Há apenas 10 anos, as práticas comerciais eram marcadas pela falta de transparência e pela relação de curtíssimo prazo. Hoje, começa-se a sinalizar (alguns laticínios, é verdade) preço com maior antecedência e há claras iniciativas no sentido de aumentar a fidelização e a capacitação da rede de fornecedores de leite.
Lino Rodrigues, professor da FEA/USP e presidente da ASBIA, fez a provocação: "além de falar do potencial de crescimento na produção, que tal começarmos a abordar a questão da rentabilidade?" Sim, é uma questão relevante. Os dados do recém-divulgado Diagnóstico da Pecuária Leiteira de MG em 2005, belo trabalho coordenado pelo Prof. Sebastião Teixeira Gomes, da UFV, e viabilizado pela OCEMG, FAEMG, SENAR-MG e SEBRAE-MG, mostram que a rentabilidade média do capital investido na atividade foi inferior a 2% ao ano, muito baixo sob qualquer padrão de comparação. Com o crescimento de atividades como cana-de-açúcar e madeira, o setor tem diante de si um desafio significativo.
A prova final da evolução por que passa o setor talvez tenha sido a conversa que tive com um participante ao final do debate. Sua conclusão foi de que há um grande potencial futuro, mas só os eficientes é que participarão do jogo, tanto na produção como na indústria.
Pode-se argumentar que o cenário relativamente calmo do mercado de leite contribuiu para que o debate tenha sido marcado por estas questões e não por aspectos pontuais, como preços de leite. O argumento não deixa de ser válido. Afinal, embora não esteja nenhuma maravilha, o leite está melhor do que outras atividades do agronegócio. Porém, não acho que a principal razão seja essa. Mesmo durante a brusca queda de preços do ano passado, as manifestações não repetiram o passado, sugerindo que esteja realmente em curso uma mudança. Há, no entanto, outra possível explicação.
Ao longo do debate, fiquei pensando se não estávamos ali tratando de apenas um lado que compõe o complexo segmento leiteiro. Afinal, todos ali presentes eram, inequivocadamente, participantes do jogo, preparados para o aumento da competição, capazes de captar as oportunidades do mercado e se beneficiar delas.
Lembrei-me do ótimo livro do jornalista Thomas Friedman, "O Mundo é Plano", em que discorre como se deu aquilo que ele denominou "achatamento" do mundo, processo pelo qual produtos e serviços puderam ser desenvolvidos em regiões improváveis, antes tidas como bolsões de pobreza, como a Índia e a China. Friedman menciona como fatores-chave que determinaram o achatamento do mundo a queda do muro de Berlim, em 1989, a oferta pública de ações do Netscape, em 1995 (que propiciou enorme fluxo de recursos para instalação de infra-estrutura mundial de comunicação), a criação de softwares de fluxo de trabalho, que permitem a colaboração à distância, o advento de comunidades de colaboração auto-organizadas, a terceirização e por aí vai.
Essas rápidas mudanças criaram espaço para novos jogadores no mercado, sejam países, empresas ou pessoas. Friedman mostra o que fizeram e estão fazendo aqueles que sabem fazer a leitura correta da nova realidade e se posicionar frente a ela. São os que estão entrando no barco e fazendo-o andar, cada vez mais rápido. Ele mostra, também, que na esteira do mundo plano, há o "mundo não-plano", cheio ainda de países que estão ficando à margem desse processo, caracterizados por grande número de doentes (a exemplo dos aidéticos na África), incapacitados (sem a formação necessária para as crescentes demandas do mercado) e frustrados (a exemplo dos terroristas).
O debate de Uberaba havia reunido, afinal, integrantes do "mundo plano" do leite brasileiro, aqueles que já fazem parte do jogo, entenderam as novas regras e querem simplesmente não ter obstáculos desnecessários. Por isso, querem agilidade por parte do governo, acesso a diversos mercados, legislação tributária mais clara e marketing de lácteos para que o mercado cresça. Em suma, não têm medo da competição, mas sim de não poder competir.
A pergunta feita ao final do debate por Roberto Jank a Jacques Gontijo, trouxe à tona o "mundo não-plano" do leite. Com base no Diagnóstico do Leite em MG, que aponta que apenas o estrato dos produtores de mais de 1.000 litros diários é rentável, ele calculou que precisaríamos de apenas cerca de 50.000 produtores de leite no Brasil para produzirmos o que produzimos hoje. Supondo que temos hoje 800 mil produtores, Jank perguntou: "O que será feito dos outros 750.000 produtores?". A pergunta, como não poderia deixar de ser, ficou sem uma resposta definitiva, não só por parte do entrevistado, mas de todos os presentes. Afinal, lidar com o mundo não-plano do leite talvez seja tão difícil quanto com o de Friedman.
O mundo plano do leite está de parabéns, fazendo a lição de casa e olhando para frente. O mundo não-plano, porém, demanda uma discussão à parte, que procuraremos fazer em uma próxima oportunidade.