Nos dias que antecederam ao Carnaval, participei de um interessante workshop organizado pela DPA (joint-venture entre Nestlé e Fonterra nas Américas), com o objetivo de discutir os fatores que limitam a competitividade da pecuária leiteira brasileira. Embora sob o enfoque de custo de produção sermos (hoje) competitivos mundialmente, a questão ali era discutir onde estão os drenos de eficiência na cadeia produtiva, a começar pela fazenda, e o que poderá ser feito, pelo setor privado, no sentido de aumentar a eficiência e a saúde econômica da atividade.
Esse artigo é, de certa forma, minha visão sobre o tema, não tendo a pretensão de representar um consenso da opinião dos participantes (leia mais sobre o evento aqui), ainda que grande parte dos pontos críticos discutidos tenham sido consensuais. Também, contei com a valiosa colaboração de nossos leitores na enquete da semana passada, que, ao contribuirem com suas opiniões acerca desse assunto, facilitaram meu trabalho e permitiram refletir sobre vários aspectos. O artigo, enfim, foi escrito a diversas mãos.
Ao falar de pontos que estrangulam a competitividade, sempre se começa com a baixa produtividade dos fatores produtivos, sejam ele a vaca, a terra, o trabalhador. Não deve ser novidade para ninguém que, embora crescendo devagar, os níveis de produtividade são ainda muito baixos e que esse aspecto representa um dreno de competitividade da cadeia do leite. Em outra vertente, a reduzida escala de produção complica o problema, ao tender a gerar custos fixos mais elevados, menor poder de barganha na compra e venda, custo mais alto de coleta, entre outros. Há de se ressalvar que, mesmo produzindo pouco, um pequeno produtor pode usar seus recursos de forma muito mais eficiente do que um grande produtor.
O resultado de tudo isso tende a ser a baixa rentabilidade do capital e, com isso, a menor atratividade do leite como negócio. Até aí, não creio ter colocado nada que centenas de artigos, palestras e livros que analisaram o setor nesses anos todos já não o tenham feito. Também não seria novidade dizer que as informações técnicas que permitem o crescimento já foram produzidas, mastigadas e ruminadas à extensão por um grande número de técnicos em revistas, jornais de cooperativas e laticínios, congressos, etc. Em outras palavras, embora sempre importante, não é pesquisa que falta para saltarmos dos 5 kg/vaca/dia, 15 meses de intervalo entre partos, 1000 litros/ha/ano e outros índices que dão pouca margem a comemorações.
A questão, portanto, reside no porque de estarmos nessa situação: há um problema particular com o produtor de leite brasileiro, que não consegue evoluir no conjunto? Será a atividade que, no Brasil, não vai mesmo - nosso negócio é frango, laranja, cana, soja, boi de pasto... ? O que é, afinal, que faz do leite um primo pobre das ditas cadeias de sucesso, entre as quais até o boi hoje se inclui?
Tendo ciência da complexidade do tema, que não pode ser esgotado em um ou outro artigo e que com certeza apresenta espaço para outras visões, gostaria de abordar os aspectos de mercado que, na minha opinião, afetam negativamente o mercado de leite e contribuem para estarmos nos níveis atuais, fazendo o leite perder espaço para outras culturas e atividades nas regiões com mais alternativas.
Acredito que o ambiente de negócios para a pecuária de leite, no Brasil, está longe de ser favorável. Indo mais longe, é ruim mesmo. Há, primeiro, as características que fazem com que a cadeia leiteira agregue menos valor do que deveria oum, quando agrega, faz com que menos desse valor chegue ao produtor.
Hoje, não só a cadeia do leite está nas mãos das grandes redes de supermercados, como diversos outros setores. Isso é notícia diária na mídia de qualquer lugar, seja aqui ou no exterior. O varejo pressiona e são poucas as empresas que conseguem agüentar o tranco e impor parte de suas margens. A maioria precisa mesmo vender para fazer caixa no dia seguinte. A qualquer sinal de mínima sobre-oferta, o supermercado fareja na hora e, o que era para ser uma garoa, vira um dilúvio. Quando era para chover mesmo, então...
Nesse cenário, a situação atual do leite longa vida gera um complicador. Em matéria que fizemos nessan semana, com algumas das grandes empresas do setor, fica clara a armadilha em que estão presas: de um lado, uma enorme competição, um produto comoditizado, um supermercado que, ciente de seu poder de barganha, o exerce com eficiência, até onde dá, tendo a seu lado um consumidor com baixo poder de consumo; do outro, custos industriais elevados, com pouca margem de manobra. O resultado é empresas trabalhando no limite, da mão para a boca. A volatilidade, nesse ambiente, é alta. A agregação de valor, baixa. Isso impacta na saúde da cadeia do leite a medida que leite longa vida é um produto-chave, balizador de preços. Como mudar esse cenário é um desafio, e dos grandes, para todos os envolvidos na cadeia do leite longa vida.
Outro fator que contribui em algum grau para a não agregação de valor é a desinformação do consumidor, seja por desconhecer e/ou não valorizar de leite alta qualidade, seja por confundir conceitos (a preferência de muitos pelo leite informal, por exemplo). Há que se ressaltar, porém, a enorme importância da quantidade e qualidade da demanda que temos. A renda da população é, sim, fator significativo de restrição ao consumo de lácteos, tanto que a análise do consumo por faixa de renda mostra uma relação crescente; sempre que há incremento da renda, o consumo de lácteos aumenta.
O efeito da renda é traduzido pelas ações do governo, historicamente voltadas à política de alimentos baratos. Vale lembrar que qualquer aumento de preços é rapidamente trazido à mídia, não raro com o governo engrossando o coro dos críticos, sem que se analise se o aumento é mesmo oportunismo ou simplesmente recuperação de margens. Na semana passada, atendi a uma repórter de um grande jornal noturno da televisão, que queria fazer uma matéria sobre a pressão para aumento nos preços que produtor e indústria estavam fazendo, aproveitando-se da crise... Há duas semanas, os supermercados foram à mídia denunciar aumentos de preços impostos pela principal empresa do setor, o que a faz retroceder. A cultura dos alimentos baratos, a âncora que viabilizou o Real, tem seu lado extremamente benéfico e necessário para a sociedade, mas muitas vezes é injusto ao produtor e à indústria.
As exportações, ainda incipientes, são também um fator restritivo à geração de renda no setor, além de ter o papel de atuar como importante estabilizador do mercado em momentos de sobre-oferta. Há, ainda, as fraudes, a sonegação, informalidade...
Isso tudo faz com que a cadeia do leite agregue menos valor do que deveria ou poderia. Resta, agora, analisar o quanto dessa fatia chega ao produtor, e em que ambiente de negócios ele hoje opera.
Essa discussão sempre começa com a perda de espaço das cooperativas para empresas privadas, em grande parte multinacionais. Também não é novidade alguma que, em todos os países em que o produtor de leite tem uma situação, digamos, mais confortável, acontece uma das duas coisas, ou as duas: forte interferência governamental e/ou predomínio das cooperativas, pelas razões já extensivamente discutidas (leite é perecível, são centenas de milhares de produtores, leite é commodity, etc.).
Portanto, movimentos no sentido de resgatar as cooperativas são bem-vindos, mas ... mas é importante que sejam cooperativas bem geridas, com estratégias de negócio bem alinhadas, com portfólio atrativo de produtos e escala compatível com o tipo de produto que vende. As cooperativas perderam espaço justamente por não cumprir esses requisitos nos últimos 15 anos, abrindo espaço para outros mais competentes - e com mais recursos, claro. Multinacionais são multinacionais. Porque em outros países não cresceram tanto a ponto de dominar o mercado, ou dominar etapas do processo produtivo, como a captação de leite? Alguns trabalhos realizados mostram que, com algumas exceções, as cooperativas têm alto custo administrativo, baixa escala e agregam pouco valor. Nesse cenário, a questão não é querer repassar os ganhos ao produtor: é não ter o que repassar. Assim, o resgate do cooperativismo é fundamental, porém embasado em práticas modernas de gestão e alinhado com o mercado atual, que mudou muito de 20 anos para cá.
Nos cabe também analisar o ambiente de negócios em que o produtor de leite hoje opera. É compatível com uma visão empresarial? Eu diria que não; mais ainda, está longe, muito longe disso.
O produtor hoje não sabe o preço do leite que já está produzindo e muitas vezes já foi entregue. Não dispõe de instrumentos para minimizar os riscos de mercado, seja na compra de insumos, muitas vezes cotados em moeda estrangeira, seja no preço do leite, sempre contado em moeda nacional. Não tem horizonte. Não é prática comum o laticínio sinalizar o que espera do mercado e dele próprio para 1, 2, 5 anos. Para onde estamos caminhando? Que tipo de leite queremos hoje e vamos querer no futuro? Quais as tendências para a produção de leite na sua região? Não sabemos. Não temos indicadores únicos de preço por região e volume, que permitam conhecer a realidade de cada região, conhecer o passado e prever um pouco o futuro.
Não há, igualmente, clareza na relação entre os elos, criando-se um ambiente de oportunismo de ambos os lados. Contratos de longo prazo, nem pensar. E não se trata, necessariamente, de contratos com preço fixo, mas sim atrelados a variáveis que possam ser conhecidas, cujo comportamento pode ser em algum grau, previsto. Hoje, quase todo o risco está com o produtor. Nesse sentido, o Conseleite é uma evolução, ao pelo menos trazer mais transparência a essas variáveis. O problema, ao que consta ou que dizem, é que o Paraná é único.
Paralelamente, há escassez de capital de baixo custo (tudo bem, é um problema nacional e não só do leite), que não dá fôlego justamente a quem tem condições de crescer. Pense no que você poderia fazer em sua fazenda ou sua indústria se tivesse acesso a capital barato. Outro dia, um produtor me ligou surpreso e esperançoso, em meio a crise, por ter "descoberto" um financiamento atrativo e sem burocracia que viabilizaria a implantação de um sistema irrigado, cujo projeto aumentaria sua eficiência e sua renda.
Nesse cenário, pergunto: há como planejar a atividade? Há estímulo para investir na atividade, pensando em estratégias de longo prazo? Quem tem mentalidade empresarial, seja pequeno ou grandre, que analisa esse cenário, investe no setor?
No workshop da DPA, perguntei ao Stuart Donald, neozelandês radicado no Brasil e que abriu uma consultoria para orientar grupos estrangeiros a investir no agribusiness brasileiro, quais as diferenças entre o mercado de leite brasileiro e neozelandês. Uma das principais, segundo ele, é que o produtor da Nova Zelândia, sabe o preço do ano inteiro, com antecedência, seja ele alto ou baixo, dependendo do mercado. Consegue se planejar, avaliar se a atividade compensa, se vale a pela investir. No Brasil, mal sabemos o preço do mês que passou. A outra diferença, segundo Mark Leslie, da Fonterra, é que o produtor tem alta eficiência econômica e minimizou seus riscos ao ser acionista de uma grande cooperativa, com atuação global.
Pode-se argumentar, e é verdade, que nos Estados Unidos, outro país normalmente citado como referência, os preços são muito voláteis e pequenas sobre-ofertas causam grandes estragos. No entanto (abordaremos esse assunto em outro artigo), a grande volatilidade nos EUA é recente, a ponto do sistema americano estar sob análise crítica dos próprios americanos. Muitos lá invejam o sistema canadense, onde o protecionismo aliado à um rígido sistema de controle da oferta mantêm o produtor em situação confortável.
Para finalizar esse artigo, que já ficou longo, tendo a concluir que o produtor de leite brasileiro é fruto do meio em que vive. Na ausência de horizonte, perde menos quem não investir, quem não maximizar risco, quem operar pensando em custo mínimo e não em lucro máximo. Ganha quem for flexível, ainda que flexibilidade possa significar coisas esquisitas como parir um bezerro de corte de uma vaca leiteira. Isso parece explicar o marasmo dos níveis de produtividade, a falta de novos projetos no setor, a perda de espaço do leite para outras culturas que, se não remuneram melhor em todos os casos, o fazem com menos trabalho e mais segurança.
Cabe a nós refletirmos criticamente sobre esses pontos e, caso encontrem respaldo, arregaçar as mangas e começar a trabalhar. Afinal, não há motivo pelo qual a cadeia do leite não possa ser vitoriosa como outras, seja calcada em pequenos, médios ou grandes produtores, independente do critério adotado para definição dessas categorias (prefiro o critério da mentalidade do que do porte).
Temos uma demanda a ser suprida no país que, esperamos, vai voltar a crescer. Temos um real potencial exportador, caso contrário empresas com forte atuação nesse mercado e visão de longo prazo não estariam se estabelecendo por aqui. Resta saber se, quando e como resolveremos nossas mazelas e possamos enfim aproveitar ao máximo nossas vantagens.