O grande crescimento do agronegócio nos últimos anos gerou a sensação de que não havia limites para nossa expansão. Somos eficientes, bastava produzir que cresceríamos, ganhando sempre mais. Os canais de exportação, sem dúvida, contribuíram para essa percepção, visto que tínhamos e, de certa forma temos, o mundo inteiro para abastecer. Afinal, desde há muito tempo o Brasil seria o celeiro do mundo.
O leite, por não ter ainda o mesmo espaço no mercado internacional, ficando seu mercado restrito ao âmbito interno, com crescimento lento, não participava integralmente desse otimismo. Por outro lado, é sabido que, sob o aspecto técnico e disponibilidade de área, temos enorme potencial de crescimento, a ponto de Ivan Zurita, presidente da Nestlé, ter falado em recente debate na Expomilk que o Brasil está "condenado" a ser o maior produtor de leite do mundo. A colocação é ousada, visto que produzimos hoje ao redor de 25 bilhões de litros por ano, contra 95 bilhões da Índia e 78 bilhões dos Estados Unidos, os dois maiores produtores mundiais, fora a União Européia, mas de qualquer forma sugere mais uma vez o potencial de crescimento do setor no país.
A redução das importações e o aumento das exportações de lácteos em 2004 trouxeram o leite para o grupo dos produtos "iluminados", junto com a laranja, o açúcar e álcool, a carne bovina e a soja, para ficar nos principais. De fato, o aumento das exportações de lácteos alargou os horizontes do setor, permitiu às empresas o desenvolvimento de novas estratégias e contribuiu para que os preços ficassem em um patamar mais alto e mais estáveis, aspectos favoráveis ao estímulo da produção. Apesar de termos exportado apenas 2,5% da produção em 2004, diminuindo a oferta de leite no mercado interno, vale comparar com o programa de redução de oferta dos Estados Unidos, o "Cooperatives Working Together", que enxuga anualmente cerca de 1% do leite do país através do abate de vacas e programas de exportação e que, segundo especialistas, tem contribuído para a melhoria significativa dos preços do leite.
Logo, 2,5% a mais ou a menos de oferta fazem uma grande diferença, ainda mais em um produto com poucas opções de estocagem e perecível. Esse novo cenário e a percepção otimista que se instalou no setor, inclusive estimulando novos investimentos no parque fabril, foram suficientes para que o produtor aumentasse a oferta, resultando em cerca de 10% de crescimento no primeiro semestre.
Esse crescimento, no entanto, esbarrou na demanda interna e no balanço entre importações e exportações de lácteos. Do lado interno, embora o consumo de alimentos tenha crescido 4,5% no semestre, não houve fôlego suficiente para dar conta de 10% de aumento da produção, no caso do leite.
Do lado externo, as importações aumentaram 51% em volume, aumentando a oferta de leite no país. As exportações também cresceram, porém menos: 40,6% a mais em 2005 quando comparadas a 2004. O resultado, simples de compreender, é que sobrou leite e os estoques aumentaram em níveis que forçaram a baixa de preços, chegando ao produtor.
Até aí, não há novidade alguma. Vale a pena, no entanto, refletir sobre alguns pontos. Embora seja perfeitamente possível aumentar a produção de leite a taxas de 10% ao ano ou mais, é preciso ter em mente a existência de mercados para essa produção crescente. No mercado interno, esbarramos na questão da renda, do marketing institucional, do lançamento de novos produtos, das estratégias de marketing. Esses dois últimos pontos merecem uma análise mais detalhada, visto que os dois primeiros têm sido abordados com maior freqüência.
Embora as grandes empresas trabalhem bem essas questões, temos percebido que empresas de médio e pequeno porte têm grandes dificuldades. As estratégias são normalmente reativas, existe pouca diferenciação dos produtos e os canais de venda normalmente não são os que oferecem maior rentabilidade, embora sejam os mais seguros no curto prazo. As inovações são poucas e normalmente estão restritas às grandes empresas do setor. Esse cenário é acompanhado pelo crescimento da oferta de produtos concorrentes, com embalagens mais atrativas, posicionamento moderno e fortes investimentos em mídia.
Do lado externo, estamos caminhando bem no que se refere à abertura de novos mercados. Dois dos principais mercados importadores, o México e a China, devem ser acessados em pouco tempo. Há, porém, a questão da qualidade. No quesito competitividade, é urgente que se estabeleçam programas de melhoramento genético visando aumento do teor de sólidos no leite, e que os programas de nutrição animal e manejo visem cada vez mais a elevação dos sólidos do leite (desde que compense economicamente).
Esse aspecto é de fundamental importância para que tenhamos competitividade. Enquanto o leite da Nova Zelândia tem cerca de 14% de sólidos, o nosso tem 12%, ou seja 15% menos. Coloque 15% de diferença na cotação do dólar e veja que não estamos falando de pouca coisa: seria equivalente a ter o dólar, em vez de R$ 2,35, como hoje, a R$ 2,70. Em se tratando de uma commodity, isso faz toda a diferença. Recentemente, em uma palestra da Companhia Vale do Rio Doce, o palestrante admitiu que parte importante da competitividade da empresa estava na qualidade natural do nosso minério, muito mais rico do que o australiano. A lição disso é que, apesar do câmbio atual ser um complicador, não se pode colocar toda a culpa nele. Como disse Jacques Gontijo, da Itambé, em entrevista ao MilkPoint, se o câmbio permanecer assim, temos de aprender a ser competitivos com ele nessa faixa.
Há, ainda, a questão da qualidade microbiológica e das células somáticas. Embora não tenhamos tido ainda grandes pressões no sentido de apertar o cerco, é preciso olhar para o futuro. À medida que ocupamos espaço no mercado ou que passemos a exportar para mais países, muitos deles com maior exigência, como os do Sudeste Asiático, encontraremos barreiras. Além disso, é sensato pensar em aumento gradual das exigências de qualidade, como um todo. O fato das multinacionais como Nestlé, Fonterra, Parmalat, Danone, etc terem posicionamento global é mais um fator que impele a melhoria da qualidade, visto que cada vez será mais claro o fluxo de lácteos entre empresas do mesmo grupo, entre diferentes países. Se quisermos ter mais opções no mercado externo, principalmente as opções mais rentáveis, é preciso começar já, mesmo porque é um processo lento. Se vamos ser "players" importantes, temos de ter no mínimo a qualidade dos demais "players", no caso Nova Zelândia, Austrália e União Européia. Isso, olhando lá na frente.
A queda de preços nessa "entressafra" nos mostrou várias coisas. Nesse artigo, abordamos a questão das amarras para o crescimento. É preciso ter mercado para crescer. A "crise" nos mostrou também como é frágil a coordenação de informações na cadeia leiteira, dificultando um melhor planejamento entre produção, industrialização e consumo. Teve empresa de grande porte que importou leite neste ano, temendo a falta de produto! Mas essa discussão fica para outra oportunidade.