A Agroindústria do Leite e seus derivados é importante no suprimento de alimentos e na geração de emprego e renda para a população. O Brasil é um dos maiores produtores do Mundo e, Minas Gerais, é a maior Bacia Leiteira do país. Nesse cenário produtivo, é exigido cada vez mais um cuidado maior com o meio ambiente e a adoção de técnicas sustentáveis.
As indústrias de laticínios são grandes geradoras e lançadoras de efluentes em corpos receptores por conta do elevado consumo de água nos processos de produção e higienização (CARVALHO; PRAZERES; RIVAS, 2013). Os efluentes são gerados durante o processo de higienização de pisos, equipamentos, caminhões, processo de produção e falhas operacionais.
De acordo com Mendonça et al. (2015), um pequeno laticínio que processa em torno de 10.000 litros de leite por dia, gera um efluente com concentração de DBO(Demanda Bioquímica de Oxigênio) de aproximadamente 2.000 mg L-1, com potencial poluidor equivalente ao de uma população de 1.111 habitantes.
O soro, subproduto da produção de queijo, considerado o resíduo mais poluente do setor, tem poder de poluição até 100 vezes maior que o esgoto doméstico e, a produção de 10.000 litros de soro, equivale à poluição do esgoto de uma população de 5.000 habitantes (LIRA et al., 2009).
A composição do soro varia conforme tipo de queijo, tratamento térmico dado ao leite e sua manipulação. O aproveitamento do soro (exemplo: setor tecnológico alimentício, nutrição animal etc.) evita maiores impactos no meio ambiente e colabora na eficiência dos sistemas de tratamento.
Em laticínios, a composição dos efluentes varia de acordo com o processo e o produto fabricado, possuindo geralmente um alto teor de matéria orgânica, gorduras, sólidos suspensos e nutrientes. O tratamento destes efluentes é composto, em sua maioria, de tratamento preliminar e primário, para remoção de sólidos suspensos, óleos e gorduras e, de tratamento secundário, para remoção de matéria orgânica dissolvida e de nutrientes (nitrogênio e fósforo). O tratamento terciário é usado em poucos casos, como polimento do efluente tratado (ANDRADE, 2011), para fins mais nobres.
Os tratamentos biológicos, de nível secundário, são tecnologias utilizadas para tratar efluentes biodegradáveis. A degradação ocorre quando o efluente entra em contato com micro-organismos, seja em ambiente aeróbio ou anaeróbio, onde a matéria orgânica é metabolizada, podendo chegar à redução de até 90% da DBO (KARAPANAGIOTI, 2016).
Os lodos ativados, filtros biológicos, lagoas aeradas ou a combinação destes são algumas das tecnologias empregadas nas indústrias de laticínios para remoção da carga orgânica (JUSTINA et al., 2017). Para a escolha do melhor método de tratamento de água residuária é necessário avaliar critérios técnicos e econômicos.
O lodo ativado é uma das tecnologias mais utilizadas nesse setor por possuir alta eficiência na remoção de DBO e atender às exigências impostas pela legislação ambiental. Entretanto, o sistema possui algumas desvantagens como: alto custo de operação, alto consumo de energia, complexidade operacional, além de gerar um grande volume de lodo excedente que precisa ser destinado corretamente, aumentando o custo do tratamento.
Ainda pouco difundida no Brasil, mas, já consagrada internacionalmente como solução de saneamento sustentável, as wetlands construídos, conhecidas também como sistemas alagados construídos (SAC's) ou jardins filtrantes, são tecnologias de tratamento de efluente bastante promissoras para tratamento de efluentes das indústrias de laticínios.
No trabalho realizado por Vieira et al. (2019), um protótipo de SAC's foi utilizado para fins experimentais no tratamento de efluente de laticínios e apresentou remoção de 89% de DQO (demanda química de oxigênio) e 92% de sólidos dissolvidos, atendendo os limites estabelecidos na Resolução CONAMA n.º 430/2011 que dispõe sobre condições, parâmetros, padrões e diretrizes para gestão do lançamento de efluentes em corpos d’água.
Os SAC's são basicamente áreas alagadas construídas e planejadas por meio de técnicas de engenharia que imitam as áreas alagadas naturais como os pântanos, manguezais e brejos. Os elementos estruturais e atuantes no sistema alagado construído são: o material suporte, às plantas e o efluente (FIGURA 1).
Figura 1. Esquema representativo dos sistemas alagados construídos de escoamento horizontal.
O reservatório, também denominado tanque ou reator, de alvenaria ou outro material, é preenchido com material porosos, de alta condutividade hidráulica (ex: brita) para dar suporte às plantas. No material poroso e nas raízes das plantas, desenvolve-se biofilme que atua na degradação da matéria orgânica presente no efluente.
Segundo Brasil et al. (2005), o tratamento de águas residuárias em SAC's vem se mostrando eficiente na remoção de matéria orgânica, representada pela DBO, sólidos suspensos totais (SST), fósforo e coliformes termotolerantes de efluente de esgoto doméstico.
Neste tipo de tratamento, a zona de raiz, o meio suporte e o biofilme interagem com o efluente, removendo os contaminantes presentescomoo nitrogênio, que ocorre através da ação de microrganismos, absorção e síntese de vegetais (colheita e perdas para a atmosfera) e, o fósforo, que ocorre por meio da deposição de sedimentos, absorção por bactérias e plantas epor difusão.
Os SAC's possuem boa eficiência quando se trata de remoção de poluentes nos efluentes de laticínios, principalmente em relação a DBO e DQO. Em um dos estudos de Matos et al. (2012), a remoção de DBO e DQO atingiu eficiências de até 96% e 97% respectivamente, além da remoção de sólidos suspensos totais que variou até 89% e, onitrogênio, que atingiu seu máximo em 70% de remoção.
Além de contribuir para a beleza e paisagismo dos SAC's, as plantas desempenham funções importantes para a depuração do efluente, tais como: aumentam a área de filtragem e de contato para adesão de biofilme; estabilizam o meio suporte e, algumas espécies vegetais, liberam oxigênio nas raízes e elevam o potencial redox; aumentam a diversidade, densidade e atividade biológica; absorvem nutrientes e elementos-traços; liberam exsudatos radiculares importantes para as reações; aumentam condutividade hidráulica no meio suporte; reduzem processos de colmatação e atraem biodiversidade criando um sistema ambientalmente rico.
Diversas espécies podem ser cultivadas em SAC's e é importante selecionar aquelas que toleram condições de alagamento,de sistema radicular bem desenvolvido, que apresentem manejo simples e boa capacidade de extração. A escolha vai depender da disponibilidade da planta, valor econômico, tipo de sistema alagado construído, interesse comercial (retorno econômico, fins para alimentação animal, produção de biomassa, dentre outros).
Na literatura é possível encontrar uma grande variedade de plantas usadas em unidades experimentais com bons resultados. Em um estudo conduzido por Fia et al. (2011), foram cultivados com a taboa (Typhalatifolia) e capim tifton-85 (Cynodon spp.) e apresentaram boa eficiência. Zhang et al. (2007) avaliou a eficiência de SAC’s cultivados com plantas ornamentais: Acoruscalamus, Acorusgramineus, Arumorientale, Iris pseudacorus, Lythrumsalicaria e Reineckiacarnea. Todas apresentaram resultados promissores, com destaque para Acorusgramineus e Iris pseudacorus que, após 15 dias, conseguiram reduzir a DBO em 92,31% e 93,16%, respectivamente.
A poda das plantas faz parte do controle operacional do SAC's e tem como objetivo fornecer estímulos para crescimento, proporcionando maior remoção dos poluentes por meio da fitoextração e prevenir propagação de vetores. A periodicidade da poda dependerá da espécie vegetal escolhida e, caso tenha fim paisagístico, deverá ser maior.
O meio suporte é, também, uma parte fundamental para o bom funcionamento dos SACs e deve ser capaz de promover adesão de biofilme, alta capacidade de troca catiônica e alta permeabilidade (LIMA, 2016).
No Brasil, de acordo com levantamento realizado por Machado et al. (2017), os principais materiais utilizados são brita, areia, areia de cascalho e escória siderúrgica. A escolha dos materiais é feita de forma a associar as características desejadas com a finalidade do tratamento e o fator econômico (SEZERINO, 2018).
Os SAC's apresentam custos de implantação próximos aos das técnicas de tratamento com eficiências similares como o lodo ativado, entretanto, apresentam menores custos de operação, manutenção e não consomem energia e produtos químicos.
Uma desvantagem dos sistemas é que requerem grande área superficial sendo, portanto, um fator importante para sua implantação. Assim, os SAC's se mostram interessantes principalmente em localidades rurais ou afastadas dos grandes centros urbanos, onde disponibilidade de área não é uma limitação, bem como o preço médio do hectare não é elevado, a fim de evitar o aumento do custo dessa tecnologia.
O descarte do efluente após tratamento em SAC poderá ser destinado a águas superficiais, desde que atenda as especificações do corpo receptor e os limites estabelecidos pela legislação (CONAMA n.º 430/2011).
Assim como nos demais tratamentos biológicos, é importante realizar as etapas preliminares e primárias de tratamento antes da entrada do efluente nos SACs e utilizar taxas de aplicação orgânica recomendadas pela literatura.
De acordo com Matos et al. (2010), o controle no fornecimento adequado de matéria orgânica e sólidos ao sistema, propicia aumento nas eficiências de remoção de poluentes e redução no risco de sua colmatação — “entupimento” — precoce, sendo a colmatação um fator redutor da vida útil dos SAC's.
Em muitas situações não é possível aplicar os sistemas alagados construídos, principalmente onde não tem área superficial disponível e a qualidade do efluente não é compatível com a técnica. Para cada situação há uma análise e solução específica de tratamento de efluentes. Para finalizar, é importante dizer que a melhor tecnologia de tratamento é aquela que atenda sua realidade, seja eficiente e que, ao mesmo tempo, possua simplicidade na operação e manutenção.
Referências
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