Hélène Beguet e Richard Révy, dois pesquisadores da Enil de Mamirolle, escola da indústria láctea da França, se uniram à Thomas Leroy, cientista da multinacional especializada em máquinas para processar alimentos SPX, e lançaram um sistema de fazer queijo chamado de “tecnologia sem separação”, no qual não existe a etapa de retirar o soro do leite.
Eles apresentaram seus resultados em Paris no dia 26 de março, na Jornada de Estudos da revista Profession Fromager. “Olhamos para a transformação queijeira. Fazer queijo é retirar a água do leite. Então, por que não fazer o contrário, acrescentando água e bactérias a um substrato de proteínas?”, explicou Hélène.
Eles iniciaram sua conferência com dados que justificam uma super transformação no mercado mundial de queijos. Em 2018, a indústria leiteira fabricou 21 milhões de toneladas, sendo 40% queijo mole (fresco), 39% queijo duro, 12% de cremes como requeijão e cream-cheese e 9 % de outros queijos. A produção e consumo se concentra no oeste da Europa e norte dos Estados Unidos, onde já existe um considerável consumo de queijo por habitante. Porém, no resto do mundo realmente falta leite e queijo. No restante do continente americano, África, Europa do Leste e Ásia, existe um aumento crescente previsto de ao menos 4,5% do consumo por ano até 2020.
"Nós queremos dar assistência a esse crescimento do consumo de queijo e garantir a inovação do setor”, justifica Richard. “Além disso, o método pode se adaptar a qualquer receita de queijo”, completa. Empresas de leite em pó francesas, como Ingredia, já tem catálogos de tipos de pós diferentes para diversificar as receitas.
FOTO: Ciete Silveiro/Estadão
O método sem separação
“Para fabricar 100 quilos de queijo precisamos, normalmente, de 1.000 litros de leite. E sobram 900 litros de soro. Com 100 quilos da mistura de proteínas funcionais, gordura, coagulante e fermentos adaptados a essa tecnologia, com a quantidade de água que corresponde ao teor de umidade que desejamos no queijo, fazemos a mesma quantidade de queijo”, explica Hélène.
O substrato são pós de proteínas funcionais bem particulares, concentradas por filtração, em seguida parcialmente 'deslactosadas' e 'desmineralizadas' para controlar melhor a textura. Tudo é misturado por um tanque potente criado por SPX, com possibilidade de esquentar e resfriar. A emulsão é colocada definitivamente na forma, sem dessorar. “A capacidade de misturar uma alta viscosidade permite programar a textura. Temos um módulo que mistura e esquenta, adaptando o tratamento térmico que queremos. Tudo é controlado por regulagens especiais para cada receita. Um módulo ‘dosador’ acrescenta automaticamente os fermentos, que correspondem às matrizes aromáticas desejadas, os coagulantes e o sal. A massa é trabalhada no vácuo para evitar oxidação e ter homogeneidade. 20 a 30 minutos são suficiente para transformar tanques de grande capacidade”, explica Thomas Leroy, da SPX.
“Depois de desenformar ele pode ser curado tradicionalmente”, diz Richard. A escolha dos fermentos também pode induzir a uma cura mais acelerada, com cobertura de mofo branco (géotrichum) em 4 ou 5 dias. O aparelho completo, com o dosador e todos módulos que possibilitam uma gama de textura, que vai desde o creme de queijo até massa prensada não cozida para ser ralada ou fatiada, custa 1,75 milhão de euros.
A platéia admirada perguntou: “Por que vocês não eliminaram também as formas colocando o queijo direto na embalagem?”. “Ainda podemos evoluir para isso”, prometeu Hélène. Sobre a curva do pH da cura do queijo, os pesquisadores responderam que continua a mesma de um processo tradicional, porque os fermentos acrescentados garantem a desacidificação da massa, mesmo sem dessorar. “Outra vantagem é que não precisamos tratar afluentes, não tem soro eliminado no chão da queijaria”, completou Hélène, “e podemos fabricar em qualquer lugar do mundo, mesmo que não tenha rebanhos locais”. Eles fazem testes também com substratos de proteínas vegetais.
Thomas Leroy, Hélène Beguet e Richard Révy apresentam o novo processador de queijo sem separação. FOTO: Débora Pereira/Profession Fromager
Os aspectos legislativos
Podemos chamar isso de queijo? Segundo os pesquisadores, o método é perfeitamente de acordo com as definições de queijo do Codex Alimentarius, uma coletânea de padrões reconhecidos internacionalmente, códigos de conduta, orientações e outras recomendações relativas a alimentos, produção de alimentos e segurança alimentar. O método também concorda com decreto francês de 2007, que define que um queijo pode ser feito de leite ou de matérias-primas lácteas.
Na Itália, uma legislação de 1974 proíbe a transformação de leite em pó em queijo. A União Européia solicitou em 2015 a revogação dessa lei, mas grupos de produtores fazem a resistência para que o governo não aceite. “Esse pó já sofreu um violento tratamento industrial que remove suas qualidades nutricionais e gustativas. Não há mais nada, apenas gordura e proteína”, diz Piero Sardo, um dos fundadores da Slow Food.
No Brasil, como nada é proibido, tudo é permitido. Mas podemos nos mobilizar enquanto consumidores para que a “tecnologia sem separação” seja anunciada nos rótulos e embalagens…
As informações são do blog Só Queijo, de Débora Pereira, para o Paladar, do Estadão, adaptadas pela Equipe MilkPoint.