
Otávio Farias, 31 anos, é administrador de empresas e gerente geral da Hoogwegt do Brasil, braço do Hoogwegt Groep, com sede na Holanda. A Hoogwegt é uma trading especializada em leite e derivados há mais de 40 anos, com forte atuação mundial. Suas subsidiárias ao redor do mundo estão situadas nas principais zonas de produção de leite na Europa, America do Norte, América do Sul, África do Sul e Oceania, estando fortemente presentes nos principais mercados importadores de lácteos como México, Argélia e China. A empresa movimenta anualmente mais de 1 milhão de toneladas expressas em sólidos de leite e fatura acima de EUR 1,5 bilhão.
Farias tem mais de 10 anos de atuação em mercados mundiais de leite e derivados, tendo iniciado atividades comerciais em lácteos com países do Mercosul, Canadá e Estados Unidos. Depois trabalhou também com os principais países exportadores da Europa, negociando commodities lácteas para o mercado brasileiro, América Central e do Sul. Tendo observado a mudança de tendências no Brasil, já nos anos de 2000 e 2001, passou a focar esforços no desenvolvimento de exportações do Brasil, tendo fornecido regularmente produtos lácteos brasileiros para mais de 40 países. Farias deu esta entrevista exclusiva ao MilkPoint, falando sobre a participação brasileira no comércio exterior de lácteos.
MilkPoint: Qual a sua avaliação para as exportações e importações de lácteos pelo Brasil em 2006?
Otávio Farias:A taxa de câmbio irá definir a balança comercial, os volumes importados e exportados de leite e derivados em 2006. O dólar baixo viabiliza importações e por conseqüência inviabiliza exportações. O cenário contrário inverte a situação. É dificil prever números com exatidão, mas pode-se estimar que os volumes exportados podem atingir pelo menos os volumes performados no ano de 2005. Estimo que as importações deverão ser menores que ano passado devido a maior oferta no mercado interno (aumento da produção em 2005). Além disto, se o Real estiver forte em relação ao dólar, poderá ainda que momentaneamente inviabilizar aumento de exportações, represando excedente da produção local; isto criaria um bloqueio natural às importações porque haveria muita disponibilidade no mercado doméstico. Soros de leite e lactose poderão ter aumento nos volumes importados, apesar da elevação de preços no mercado mundial.
MKP: Como o câmbio está afetando esse panorama?
OF: O câmbio tem influência direta nas exportações e importações brasileiras. Havendo maior valorização do Real frente ao Dólar, o setor poderá ser negativamente afetado. Real valorizado significa mercado interno deprimido por nao haver escoamento via exportações. Este mesmo câmbio valorizado significa potencial importação mesmo em momentos de boa oferta interna, deprimindo mais ainda o mercado doméstico.
Um mercado mundial com demanda menos agressiva pode trazer menos oportunidades para o Brasil também. O Brasil tem sido menos agressivo ultimamente por conta do câmbio e também recente aumento de preços ao produtor. Outras origens têm sido mais oportunistas e competitivas. Apesar de os produtos lácteos brasileiros seguirem ganhando espaço no mercado mundial, os volumes exportados são ainda pequenos se comparados com origens vizinhas como Argentina e Uruguai. No entanto, Brasil parece estar no caminho certo e deve se posicionar entre os grandes players nos próximos 10 anos.
As importações podem ser momentaneamente viabilizadas por um Real mais valorizado, aliado a preços mais baixos sobretudo no Mercosul. O Brasil já está importando leite em pó e a tendência poderá seguir se os preços de leite in natura ao produtor seguirem aumentando. É uma faca de dois gumes - de um lado, o produtor comemora preços mais altos pelo litro de leite, que por sua vez inflaciona preços no mercado brasileiro, viabilizando importações a preços mais competitivos no mercado internacional, que chegam ao Brasil com dólar baixo.
MKP: Dá para dizer que o crescimento neste ano será pela via do mercado interno?
OF: O crescimento do consumo parece ter ocorrido, dado um maior poder de compra de população, de 130 lt/per capita/ano para 137 lt/per capita/ano em 2005 (Fonte: CNA, OCB/CBCL, Leite Brasil e Embrapa Gado de Leite). Desta forma, pode se dizer que parte do crescimento poderá ser motivado por um consumo interno maior, mas talvez a produção seja motivada também por custos de grãos e farelos mais baixos (por conseqüência também da crise no mercado de frangos - gripe aviária), gerando melhor retorno ao produtor considerando atuais preços de leite in natura ao produtor. O setor produtivo deve observar que o preço do leite brasileiro hoje é mais alto que os concorrentes mais próximos. Para competir no mercado mundial, é preciso ter eficiência na base da produção, racionalizando custos e ainda assim aumentar a produção. Se os preços aumentam excessivamente, como ocorrido no ano passado, as exportações ficam prejudicadas e uma janela se abre para importações.
MKP: Quais são os obstáculos que temos para nos tornarmos grandes exportadores?
OF: Qualidade do leite é o primeiro passo. As maiores indústrias brasileiras tem tido cuidado neste sentido. A DPA tem feito trabalho formidável no campo, influenciando outras a premiarem produtores por sólidos.
"Para competir no mercado mundial, é preciso ter eficiência na base da produção, racionalizando custos e ainda assim aumentar a produção".
MKP: E quais são os pontos fortes do Brasil?
OF: A capacidade de resposta muito rápida à demanda do mercado local e mundial. Conseguimos desenvolver no Brasil, em poucos meses, produtos especiais nunca antes exportados, fazendo concorrência aos maiores exportadores no mundo. Isto é um sinal de como Brasil irá surpreender mais ainda o mercado mundial.
Outro ponto forte está na reconhecida vocação do Brasil para agricultura. O setor de leite não fica atrás neste sentido. Melhores estímulos já significaram grande aumento de produção. É preciso frisar, novamente, que o aumento de produção deve estar aliado à qualidade do leite. Outro desafio é aumentar a porcentagem da produção formal, forçando a saída dos produtores informais que afetam negativamente o setor, talvez até mais do que as importações.
MKP: Como os lácteos do Brasil são vistos lá fora?
OF: Para surpresa de muitos, os lácteos brasileiros são vistos como de boa qualidade. Nunca tivemos um caso de reclamação ("claim") por qualidade em leite em pó, por exemplo! Já tivemos situações de qualidade com queijos que é praticamente um produto "vivo" e onde ajuste de qualidade é mais delicado. Este é um processo de aprendizado que outros países já passaram e pelo qual o Brasil deverá passar.
MKP: Que papel (tipos de produtos) o Brasil deverá ter, em sua opinião, no futuro em relação às exportações de lácteos?
OF: O Brasil será forte em commodities: leite em pó, queijos, manteiga e possivelmente UHT também. Não há duvida que no leite condensado o Brasil deverá tomar o lugar de vários exportadores hoje ativos no mercado mundial. Neste aspecto, devemos dar creditos a Itambé e Nestlé.
MKP: Quais devem ser os grandes mercados importadores de lácteos brasileiros no futuro?
OF: O Brasil já cobriu quase todos os continentes, com exceção das regiões onde o excedente é claramente muito maior do que a produção local (exemplo: Oceania) e também Europa, que apesar de ser grande importador de lácteos, nao é ainda opção para o Brasil por questões sanitárias. Já as Americas do Norte, Central e do Sul, assim como Caribe, África, Oriente Médio e Ásia já experimentaram produtos brasileiros e continuam demandando produtos brasileiros.
MKP: Você vê possibilidade das empresas nacionais terem um papel relevante nas exportações, sendo responsáveis por fazer todo o processo, ou a maior parte das exportações será feita por multinacionais e tradings especializadas?
OF: Sem dúvida, empresas nacionais podem ter papel nas exportações. O que as multinacionais têm é conhecimento de mercado de longa data e relacionamentos já estabelecidos. As tradings especializadas observam os mercados com olho clínico, têm fontes de informação para tomada de decisão. As tradings são também grandes tomadoras de posição, fechando de uma só vez grandes volumes, o que no Brasil é pouco comum. Algumas milhares de toneladas de leite em pó ou queijos significam muitos milhões de dólares. Neste sentido, aliar-se com tradings especializadas é muito boa opção.
Há a questão de fluxo de caixa também. A indústria nem sempre quer esperar o fluxo natural da operação para receber o pagamento pela exportação. As grandes licitações implicam em algum período para recebimento de grandes volumes exportados. Operando via tradings, pode ser optar por formas de pagamento mais rápidas que o fluxo natural destas grandes operações. Há também a questão de risco comercial e financeiro em venda direta em mercados como África e Oriente Médio. Um caso de inadimplência pode comprometer o bom resultado de um ano todo. Venda via tradings sérias e conhecidas significa pagamento certo e em alguns casos especiais, até previamente ao embarque.
MKP: Como você avalia a discussão em torno das importações de soro de leite?
OF: O setor costuma ver com maus olhos a importação de soro de leite sem se dar conta da importância do produto que tem propriedades nutricionais importantes e aplicações diversas em alimentos e nutrição animal. Em primeiro lugar, o soro de leite precisa ser de muito boa qualidade para qualquer aplicação, mesmo que seja em bebida láctea. Recentemente li comentários no MilkPoint de que o Brasil nao só importava muito soro de leite mas que também deveria ser de má qualidade. Pois os compradores brasileiros fazem exigências de alto nível aos exportadores em relação aos parâmetros fisico-químicos, microbiológicos e higroscopia dos soros de leite que são importados. Comprar soro ruim é um tiro no pé, já que suas aplicações são muito reduzidas, seu preço de revenda muito prejudicado e a qualidade dos produtos finais também são influenciadas negativamente.
É papel do governo fiscalizar o mal uso do soro de leite, como o uso ilegal para extensão de leite em pó, muito comum no passado, ou para uso no leite UHT. O Leite Modificado passou a legalizar no Brasil o uso de soro de leite em misturas secas ou não de Leite em Pó. Não há nada de errado nisto. Em um país como Brasil em que deve-se encontrar formas mais baratas de oferecer alimentos, o Leite Modificado é claramente uma opção. Muitos países são grandes consumidores do que chamamos Leite Modificados. Na Ásia, principalmente, há os chamados "recombiners" que são indústrias que preparam produtos e misturas lácteas, o que aqui chamamos leite modificado, e diversos outros produtos com base nos diversos ingredientes com WPCs (Whey Protein Concentrate), WPI (Whey Protein Isolate), Soros de Leite Desmineralizados, Desproteinizados, Permeatos, Lactose, Buttermilk powders (Leitelho), etc. Na nutricão animal, o soro de leite contribui fortemente com o setor de suínos, cujas exportações são importantes para o Brasil.
Além destas questões, deve ser considerar a realidade de que a produção de soro de leite no Brasil não supre nem um terço da demanda doméstica. Por esta razão também, preços no Brasil de soro de leite em pó são quase invariavelmente menos competitivos que o produto importado.
"Os lácteos brasileiros são vistos como de boa qualidade [no mercado externo]. Nunca tivemos um caso de reclamação por qualidade em leite em pó"
MKP: Qual o destino do soro importado?
OF: O soro de leite importado no Brasil é destinado à nutrição animal e alimentos. Se há uso ilegal em produtos lácteos, cabe ao setor se mobilizar e ao governo fiscalizar. O uso de soro de leite e outros ingredientes em leite em pó foi legalizado pelo advento do leite modificado. Não se pode penalizar indústrias sérias que se beneficiam do soro de leite importado por conta de alguns fraudadores.
MKP: Você vê possibilidade do Brasil secar soro ou mesmo produzir ingredientes presentes no soro?
OF: O Brasil deve sim montar estruturas de secagem e processamento do seu enorme volume de soro de leite. É um desafio o fato do setor queijeiro ser muito pulverizado, mas a questão ambiental pressiona a indústria a tomar providências. Esta, por outro lado, não pode negligenciar o fato de que soro de leite em Pó Doce (comum) custa hoje quase três vezes mais do que há tres ou quatro anos. A demanda mundial por soro de leite aumenta muito mais rapidamente que a produção, portanto trata-se de uma oportunidade.
Os investimentos são altos e pode-se fazer como na Europa, parceria de uma ou mais empresas do setor. Tem se falado ultimamente que o soro de leite passou a ser o produto e o queijo o subproduto. Recentemente, estava-se especulando que o aumento de produção de queijos observado na Europa nos últimos meses pode ter sido influenciado diretamente pelo aumento da demanda por soro de leite local na Europa e também no mercado mundial.
Há basicamente 4 estágios de processamento do soro de leite. O Brasil precisa por os pés no primeiro estágio, que se trata de processar o Soro Integral, sem retirada de minerais, separação de proteína, nada. A partir daí, passa-se a retirar minerais, para se obter Soro de Leite Desmineralizado, com usos mais amplos na indústria alimentícia. Depois, passa-se a retirar a lactose para produção de concentrados protéicos e isolados protéicos. Esses estágios demandam investimentos muitos maiores, logicamente. Num último estágio, há o processamento por meios ainda mais sofisticados para obtenção de ingredientes como lactoferrina, lactoperoxidase, e outras frações da proteína do soro de leite para uso em produtos nutracêuticos.
