José Eduardo Portela Santos fala sobre tecnologia e gestão de fazendas

Publicado por: MilkPoint

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Figura 1

José Eduardo Portela Santos, médico veterinário que está há 12 anos fora do Brasil, é professor na escola de veterinária da Universidade da Califórnia, ministrando aulas para pós-graduandos e realizando pesquisas científicas. Atua ainda como responsável pelo Programa Clínico da Universidade da Califórnia, que oferece serviços veterinários para 10 rebanhos de leite, com aproximadamente 24.000 vacas em lactação. O José Eduardo é um dos novos destaques da pesquisa em bovinocultura de leite nos Estados Unidos, tendo ganho, em julho último, o Prêmio de Jovem Cientista da Associação Americana de Ciência Leiteira (ADSA). Confira a entrevista exclusiva dele ao MilkPoint, falando sobre tecnologia, tendências e carreira.

MilkPoint: Quais são os aspectos que hoje mais preocupam os produtores de leite dos Estados Unidos, em especial da Califórnia?

José Eduardo Portela Santos: São basicamente duas grandes preocupações. A primeira delas, sem dúvida, é a importância crescente dada à questão do impacto ambiental que as fazendas de leite têm causado. As principais preocupações nesse sentido abordam dois aspectos: poluição da água de subsolo, por minerais como nitrato e potássio e a contaminação do ar, pela produção de leite estar quase toda localizada em dois vales.

MKP: Esta poluição se deve especificamente aos rebanhos?

JEPS: Os rebanhos têm sua contribuição, pela emissão de ácidos graxos voláteis, metano, amônia, embora, a grande parte venha das indústrias, dos carros, etc. O fato é que são 1.500 produtores de leite no estado e responsabilizar estes produtores sobre esta questão é mais fácil do que responsabilizar o resto da população. A grande preocupação dos produtores com isso é devido ao fato desta maior regulamentação impedir a capacidade dos produtores de expandirem seus rebanhos, aumentarem o número de vacas para se tornarem mais competitivos e terem maior fluxo de caixa, entre outros.

MKP: Qual seria a segunda preocupação dos produtores de leite na Califórnia?

JEPS: A segunda é o preço do leite, que vai ser eternamente a preocupação do produtor americano e de todos os produtores de leite do mundo.

MKP: Mesmo com toda a regulamentação governamental, incluindo preço mínimo?

JEPS: Sim. No estado da Califórnia, o preço mínimo é revisado de tempos em tempos, de 4 em 4 meses. O preço estabelecido reflete o preço do resto do país e principalmente a disponibilidade de derivados de leite. Muitas vezes o preço mínimo para alguns produtores é abaixo do custo de produção, como aconteceu em 2004. Nos últimos 12 meses, o preço pago ao produtor tem sido bastante favorável.

MKP: O bem-estar animal é uma questão que preocupa os produtores da Califórnia?

JEPS: É uma preocupação que esta sempre no radar das pessoas, muito mais por pressões externas e pela consciência do produtor de saber que o bem-estar, até certo ponto, está relacionado ao aumento de produção. Não que as indústrias em si, hoje, enfatizem isso a todo o momento. Hoje, não diria que é o ponto fundamental, mas conforto animal e bem-estar sempre são sempre muito discutidos, embora ainda não afetem os produtores como as outras questões.


"Pressão ambiental e preço do leite são as duas questões que mais preocupam os produtores de leite da Califórnia"



MKP: Como os produtores analisam a questão de competitividade internacional?

JEPS: O foco do produtor norte-americano é o mercado interno. Em termos de mercado externo, eles fazem comparações quanto à qualidade do leite, CCS e padrões sanitários com a Austrália, Nova Zelândia e Europa, mas como praticamente 95% da produção são consumidos internamente, o enfoque é basicamente no mercado interno. O conhecimento de quão competitivo o leite americano é no mercado externo, diria que poucos produtores têm. O que eles sabem é que o preço deles é mais alto que no mercado externo e sabem que são mais competitivos que os produtores europeus.

MKP: Quais as novas tecnologias que estão sendo usadas nos EUA hoje?

JEPS: O que esta acontecendo não é a implementação de tecnologias únicas ou novas. O enfoque está, principalmente, na implementação de programas de controle, por exemplo, programas de controle de saúde animal, programas reprodutivos, desempenho animal. Estes programas acabam incluindo tudo aquilo que é feito desde antes do parto, nos últimos 30 dias de gestação, até os primeiros 60 a 100 dias de lactação, ou seja, até que a vaca seja inseminada pela 1ª ou 2ª vez. Essa é a grande discussão nos últimos anos, como implementar programas nutricionais para melhorar a saúde da vaca, principalmente no pós-parto. As novas tecnologias em termos de manejo nutricional são muito mais voltadas para limitar doenças e talvez melhorar o desempenho reprodutivo do que aumentar 1 litro de leite na vaca. A visão do produtor mais consciente é aumentar a produção através da minimização de problemas no pós-parto e a melhoria do desempenho reprodutivo. Prevenção de problemas e conhecimento naquilo que se passa em termos de manipulação de dados é o que está sendo abordado hoje em programas que visam treinar os funcionários para que eles tenham conhecimento dos porquês. A área de treinamento de pessoas tem sido prioritária nas maiores fazendas e nos melhores rebanhos.

Algumas tecnologias tem se tornado populares, como por exemplo a maior freqüência de ordenha no início do pós-parto. Rebanhos que ordenhavam 2 vezes por dia, hoje passam a ordenhar 4 vezes, e os que ordenham 3 vezes passam a ordenhar 5 vezes por dia as vacas recém-paridas. A outra tecnologia que se tornou bastante popular é a redução do período seco. A maior parte das fazendas não utiliza mais 60 dias de intervalo, mas sim 40 a 45 dias. Algumas tecnologias não são ainda utilizadas hoje, mas há expectativa que nos próximos 2 anos venham a se tornar populares, como a utilização de sêmen sexado com mínima redução da fertilidade em novilhas e em vacas de lactação e métodos mais precoces de diagnóstico de não-gestação em vacas, através da análise de proteína no plasma sanguíneo, ou talvez até mesmo no leite.

MKP: Questões genéticas têm sido abordadas, como por exemplo a longevidade?

JEPS: Muito pouco. Existe a preocupação por parte do produtor, mas não é prioritário. Há alguns rebanhos da Califórnia cruzando vacas holandesas com raças que não tiveram uma seleção tão focada em produção individual, com o objetivo de melhorar o desempenho reprodutivo, a saúde, e reavivar o conceito que nem sempre a maior produção por vaca, que geralmente é obtida pela holandesa, reflete o ótimo econômico. Os rebanhos reportam redução sob o ponto-de-vista de doenças no pós-parto, mas houve alguma perda de produção e redução do valor comercial dos animais F1. A produção de leite norte-americana é baseada na alta produção por vaca e a longevidade é um aspecto menos relevante. Se o animal não for muito produtivo e não estiver prenhe, para o produtor o mais lógico é descartar o animal mesmo este sendo jovem no rebanho. O produtor vê como prejuízo ter que vender o animal no início do período do pós-parto, antes da vaca conseguir completar a lactação.

"O enfoque está na implementação de programas de controle e prevenção, mais do que em técnicas que promovam aumento do leite"



MKP: O que faz um bom técnico hoje nos EUA?

JEPS: Uma das características que o produtor espera de um bom técnico é a capacidade de transmitir conhecimento para as pessoas que exercem as tarefas. Eu caracterizo um bom técnico como aquele que é muito bem informado, tem idéia do que se passa fora do seu ambiente de trabalho e leva ao produtor informações com base em dados científicos. Já se passou aquela época onde valia "eu acredito nisso e pronto". Outro fator é sempre ter soluções específicas para resolver um problema específico, especialmente os problemas mais limitantes de determinado rebanho ou animal. Hoje, o bom técnico deve levantar todos os problemas, mas indicar qual é o primeiro que precisa combater, apontando as soluções. Tem que ser honesto com produtor.

MKP: O que faz, em sua opinião, uma fazenda de leite ser muito boa?

JEPS: Nas fazendas que nós trabalhamos a diferença entre uma fazenda boa e excelente está diretamente relacionada com o grau de envolvimento e afinidade do produtor com a atividade. Os melhores produtores se envolvem com a rotina diária, querem saber o que está acontecendo na fazenda. Também, não descuidam do indivíduo, por maior que seja o rebanho. Querem saber porque tal vaca ficou doente, etc.

A diferença está também na sua capacidade de se comunicar com os funcionários. Os produtores que gerenciam fazendas excelentes têm capacidade de passar suas idéias e estabelecer regras, mas não de forma impositiva, ou seja, possuem uma gestão de pessoal bastante desenvolvida e uma capacidade de comunicação muito boa. Principalmente no oeste da Califórnia, onde qual os produtores trabalham com muitos latinos, há a necessidade de falar espanhol, entender a cultura latina e saber como estimular estes funcionários. Lógico, o que se avalia são parâmetros leite por vaca, reprodutivos, doenças, mas estes são conseqüências do que se faz na fazenda. O recurso humano é o fator principal. O que acaba acontecendo é que nas melhores fazendas, os produtores são bons, tem vários funcionários bons, bem treinados, bem informados e comunicação eficiente.

MKP: Você está há vários anos longe do Brasil. É possível perceber avanços na produção de leite no país, do ponto de vista de eficiência produtiva, qualidade, gestão e entendimento da cadeia do leite?

JEPS: As mudanças são gradativas e vagarosas. O técnico hoje é mais bem informado. No grupo de produtores com os quais pude ter contato, foi possível perceber melhorias no nível de informação. Não se discute mais aquela história de fazenda bonita, com aparência externa grandiosa, como sendo a grande fazenda de leite e sim, hoje, se discute em termos de dados para saber qual é a mais relevante. Estes aspectos se tornaram mais conhecidos pelos produtores. A meu ver, existem ainda inúmeros problemas. Não vejo mudanças drásticas em vários aspectos, há o problema da transmissão de conhecimento para os produtores pelos órgãos técnicos, alguns problemas como a difusão de tecnologia gerada no Brasil. Mas o que mais me desaponta é o fato de o Brasil não enfatizar a qualidade do leite. Muitas vezes as decisões são tomadas mais para agradar forças externas do que enfatizar o consumidor brasileiro, que deveria ser o principal beneficiado por um produto de qualidade. Por exemplo, é inaceitável comprar um litro de leite com dois dias de prazo de validade. Em relação a aspectos sanitários, estes mudaram muito pouco. Há problemas no controle de zoonoses, controle de CCS, redução da contagem bacteriana. Se discute pagamento por qualidade, mas se você for ver o que é feito, nós estamos décadas e décadas atrasados. Por outro lado, os aspectos individuais do produtor em termos de implementar tecnologias e saber o que tem custo/benefício favorável, melhorou muito. Em termo de manejo reprodutivo o que se faz também é bem superior ao que se fazia há 10 ou 15 anos. Hoje o produtor tem maior conhecimento da sua fazenda, sabe quais são os pontos de estrangulamento, tem planos para o futuro.

MKP: Quais são as nossas maiores limitações e desafios?

JEPS: Existem inúmeros. O fator clima é um obstáculo, principalmente se o animal for de alta produção. A estabilidade econômica e a capacidade do produtor saber o que vai acontecer amanhã, afeta o nível de investimento nas fazendas. Onde eu vivo, conheço uma pessoa que pediu um empréstimo em um banco para montar uma fazenda de 600 vacas em lactação. Há crédito e estímulo a iniciativas como essa. A oportunidade das pessoas crescerem nesta atividade é muito maior do que no Brasil. O ano que vem o preço do leite pode cair, mas há expectativa de estabilidade no longo prazo. No Brasil, isso nem sempre ocorre; há um medo do produtor investir, em crescer. E isso é um problema, porque a margem líquida por litro de leite é cada vez menor, de forma que para se manter competitivo, o volume de produção é essencial.

"A diferença entre uma fazenda boa e excelente está diretamente relacionada com o grau de envolvimento e afinidade do produtor com a atividade"



MKP: Fazendo um paralelo com o Brasil, o que um profissional nos EUA tem de vantagem em termos de trabalho (como técnico)? E desvantagens?

JEPS: Do ponto de vista técnico, de maneira geral acredito que os desafios são os mesmos. Independente das condições de trabalho, a função do técnico é encontrar soluções economicamente viáveis e tecnológicas, que possam ser implementadas para solucionar alguns problemas-chave, seja com a vaca ou com a fazenda. O objetivo final é aumentar a saúde do rebanho, desempenho animal, produzir um leite de qualidade, sem resíduos. Como isso é feito depende da propriedade que os técnicos trabalham.

MKP: Como é para o profissional brasileiro atuar nos EUA? Você sofreu ou sofre algum tipo de preconceito por ser estrangeiro, especialmente latino?

JEPS: A valorização de dá pela capacidade profissional. Não sofri preconceito nem por parte dos técnicos, nem por parte dos produtores. O importante é conquistar a confiança destas pessoas com seu trabalho, e isso acaba anulando sua origem, onde você estudou. Existe uma desconfiança inicial natural, até conhecerem seu trabalho, mas isso até certo ponto é normal. Uma das vantagens que eu tive foi que nas fazendas da Califórnia, quase todos funcionários são latinos, principalmente mexicanos. Aprendi espanhol e a fácil comunicação com os funcionários foi um fator que me ajudou. Isso fez com que eles confiassem em mim, gerasse um grau de amizade e isso acabou chegando aos ouvidos do produtor. Do ponto-de-vista científico, na universidade sempre fui bem tratado, meus colegas sempre me respeitaram e o reflexo disso foi ter recebido no ano passado o Prêmio Jovem Cientista. Essa trajetória indica que a valorização da capacidade profissional é mais importante do que outros aspectos.
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Edison França Vieira
EDISON FRANÇA VIEIRA

SANTA MARIA - RIO GRANDE DO SUL - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 09/02/2006

Neste excelente artigo, só não entendi, ou melhor, não foi explicado quando o técnico foi perguntado sobre nossos maiores problemas. Falou sobre o clima, principalmente em vaca de alta produção. No meu entendimento, se existe algo que possa facilitar nossa vida na produção animal em comparação com países como os EUA e a própria Europa é o nosso clima diferenciado, nossos invernos menos rigorosos e nosso maior número de horas/luz/dia.



<b>Resposta do autor:</b>



Caro Edison,



Quando menciono o clima como fator que dificulta o desempenho de vacas de alta produção, eu me refiro exatamente ao fato de grande parte do Brasil ser muito quente e muito úmido durante boa parte do ano. É obvio que os fatores que você mesmo mencionou sobre as características de nosso clima, como invernos menos rigorosos e maior número de horas/luz/dia em comparação com a América do Norte e Europa facilita alguma coisas, como, por exemplo, grande produção forrageira durante quase todo o ano.



No entanto, isto continua sendo um entrave para obtenção de altas produções de leite por vaca, pois temos que lembrar que o que consideramos como frio para nós, seres humanos, nada mais é que a zona de conforto térmico para vacas de leite de raças especializadas.



A vaca de leite seja ela da raça holandesa, jersey, ou outras raças especializadas de origem européia tem sua zona de conforto térmico com temperaturas abaixo de 22<sup>o</sup> C quando a umidade relativa do ar está acima de 40%.



Aumentos em temperatura ambiente e temperatura corpórea da vaca resultam em diminuição na ingestão de alimento, perdas de produção de leite e redução na eficiência reprodutiva.



Veja o que ocorre durante o verão no Brasil. Outro bom exemplo disso é avaliar o que ocorre nos EUA quando comparamos áreas relativamente quentes, mas com umidade do ar muito diferentes. Os estados da Califórnia e Flórida são muito quentes durante a primavera e o verão, mas a Flórida mantêm uma umidade relativa do ar muito mais alta que a da Califórnia.



As perdas de produção na Flórida, a qual já é muito mais baixa, são muito mais desastrosas que no estado da Califórnia. Poucas são as fazendas na Flórida que conseguem produções médias por vaca acima de 10.000 kg, sendo que na Califórnia há inúmeros rebanhos com produções médias anuais acima de 13.000 kg/vaca.



Espero que tenha esclarecido sua dúvida.



Atenciosamente,



José Eduardo

Paulo Fernando Andrade Correa da Silva
PAULO FERNANDO ANDRADE CORREA DA SILVA

VALENÇA - RIO DE JANEIRO - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 17/01/2006

Excelente entrevista. Fica claro, pela mensagem do Prof. Portela Santos,de que fatores como estabilidade econômica e escala de produção são fundamentais para o futuro da atividade tanto nos USA como no Brasil. Naturalmente que a evolução da qualidade do leite também está diretamente relacionada a estes fatores. Temos que nos orgulhar de ter um cientista brasileiro com o destaque do Prof. Santos nos USA.



Paulo Fernando

APLISI

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