Se um microbiologista que trabalhou nas primeiras décadas do século XX entrasse na maioria dos atuais laboratórios de microbiologia, é bem provável que não tivesse dificuldade em se sentir “em casa”. Em termos gerais, os métodos microbiológicos aplicados na rotina de identificação de bactérias causadoras de mastite permaneceram praticamente os mesmos no último século. Tais métodos se baseiam na inoculação de amostras de leite em um meio de cultura não seletivo, seguido do crescimento de colônias em meios de cultura específicos e caracterização morfológica e bioquímica das espécies bacterianas isoladas. Tais procedimentos microbiológicos demoram em média de 3 a 5 dias para serem concluídos, além de exigirem o uso de vários testes bioquímicos.
Nas últimas décadas, várias técnicas moleculares baseadas na amplificação/sequenciamento do DNA bacteriano (PCR) foram desenvolvidas para identificação de microrganismos, buscando superar algumas limitações dos procedimentos tradicionais. Apesar das técnicas moleculares terem possibilitado a maior especificidade e menor tempo efetivo de análise, ainda não há uma metodologia molecular padrão e amplamente aceita para identificação de bactérias causadoras de mastite. Além disso, um dos principais desafios das técnicas moleculares baseadas em DNA refere-se à dificuldade de diferenciação entre bactérias vivas e bactérias mortas presentes no leite, o que pode levar a um resultado falso-positivo. Desta forma, os programas de diagnóstico de mastite careciam de uma metodologia rápida e que de forma confiável pudesse diferenciar as espécies bacterianas causadoras de mastite.
Em resposta a esses desafios, as técnicas de espectrometria de massas trouxeram um avanço significativo na área de diagnóstico de doenças bacterianas, como a mastite. Esse método surgiu no final da década de 1980, após o desenvolvimento da técnica de dessorção/ionização a laser assistida por matriz seguida de espectrometria de massas por tempo de voo (MALDI-TOF MS). Desde então, milhares de artigos científicos relacionados à microbiologia foram publicados em revistas científicas em todo mundo.
Devido à rapidez e confiabilidade dos resultados e à simplicidade dos procedimentos de análise, a técnica de MALDI-TOF MS está sendo usada para identificação de microrganismos em hospitais, laboratórios clínicos e até em indústrias alimentícias. Quando comparada às metodologias moleculares (baseadas no DNA bacteriano), a técnica de MALDI-TOF MS requer menor quantidade de material biológico e envolve protocolos de preparação mais simples sem precisar de análises iniciais para identificação do gênero bacteriano.
Como a técnica funciona?
Um espectrômetro de massas é composto por 3 módulos principais: (1) fonte de íons, (2) analisadores de massas e (3) detectores (Figura 1). Resumidamente, colônias bacterianas ou extrato de proteínas ribossomais são sobrepostas por uma matriz em uma placa de metal condutora de energia. Depois da cristalização da matriz junto com a amostra, a placa metálica é introduzida no espectrômetro de massas onde é bombardeada com breves pulsos de laser. As moléculas dessorvidas (liberadas) e ionizadas são aceleradas por meio de um campo elétrico e passam por um tubo de vácuo metálico (tubo de voo) até atingirem o detector. Os íons com tamanho menor (menor razão massa/carga) viajam mais rapidamente pelo tubo de voo do que os de tamanho maior. Desse modo, as moléculas ionizadas das amostras formam espectros de massa de acordo com sua razão m/z (massa/carga) e com os picos que indicam as quantidades variáveis das proteínas ribossomais bacterianas. Em uma analogia simplificada, os espectros de massas são como a impressão digital das bactérias, ou seja, cada espécie gera um espectro único e diferente dos espectros gerados por outras espécies bacterianas. Por fim, para a identificação do microrganismo, cada pico gerado pela análise de MALDI-TOF MS é comparado com um banco de dados de referência, o qual possui espectros de mais de 7.000 microrganismos.
Figura 1 – Esquema gráfico do funcionamento de um equipamento de MALDI-TOF durante a identificação de microrganismos.
Vantagens do método
A principal vantagem da técnica de MALDI-TOF é a rapidez na identificação de fungos e bactérias após a amostra ser introduzida no equipamento (10-15 minutos por amostra). Enquanto os métodos microbiológicos convencionais levam de 3-5 dias para dar um diagnóstico sugestivo do agente causador da mastite, a técnica de MALDI-TOF MS é capaz de identificar com precisão uma grande variedade de espécies microbianas em média com até 24 horas após o cultivo das amostras de leite (Figura 2). Devido à rapidez e confiabilidade do teste a técnica de MALDI-TOF MS permite que sejam tomadas decisões direcionadas de tratamento ou decisão de manejo (segregação, descarte), de acordo com patógeno causador.
Figura 2 – Esquema gráfico demonstrando a eficiência da técnica de MALDI-TOF MS para identificação de patógenos causadores de mastite em comparação com o método bioquímico convencional. Fonte: adaptado de Barreiro et al. (2010).
O Laboratório Qualileite-FMVZ/USP é um dos pioneiros na identificação de microrganismos causadores de mastite pela técnica de MALDI-TOF MS. Desde 2009, nosso grupo de pesquisa realiza estudos sobre a aplicação desta metodologia na identificação de bactérias causadoras de mastite e, até o momento, 13 artigos científicos foram publicados em revistas científicas de elevada visibilidade internacional.
O método de MALDI-TOF MS está despontando como o mais novo método de referência de identificação microbiológica e seu uso está sendo expandido para outras áreas da microbiologia, como por exemplo, a identificação de subtipos bacterianos e a detecção de resistência aos antimicrobianos. Recentemente, o Laboratório Qualileite-FMVZ/USP adquiriu um equipamento de espectrometria de massas o qual está disponível para prestação de serviços e colaborações em pesquisas relacionados à identificação de microrganismos causadores de mastite e outras doenças infecciosas em animais.