O uso responsável de antimicrobianos (ATM) na produção animal é um tema de crescente relevância para saúde humana, animal e ambiental. Com esse objetivo, uma aliança quadripartite de instituições internacionais (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, Organização Mundial da Saúde - OMS e a Organização Mundial de Saúde Animal - OIE) promove anualmente a Semana Mundial de Conscientização sobre o Uso de Antimicrobianos, realizada de 18 a 24 de novembro, de 2023.
No Brasil, dentro do setor agropecuário, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), em parceira com diferentes instituições, organizou no dia 21/11/23, um seminário virtual para abordar o tema dentro na área de saúde animal e incentivar o uso responsável dos antimicrobianos por todos os envolvidos nas cadeias de produção de proteína animal.
Recebi o convite para falar sobre “O uso responsável de antimicrobianos na bovinocultura leiteira”, e a íntegra de toda a programação está disponível. A apresentação abordou três temas principais, destacando-se a visão geral e da importância do uso atual de ATM na produção de leite no Brasil, além das estratégias e ferramentas para o uso responsável dos ATM.
Os antibióticos são ferramentas essenciais para o tratamento de doenças bacterianas em animais e humanos, sendo atualmente indispensáveis para garantir a saúde e bem estar dos animais de produção. No entanto, a questão central é que o uso irresponsável aumenta o risco do desenvolvimento de resistência das bactérias, que é um fenômeno amplamente descrito e estudado.
Diferentes estudos indicam que o uso indiscriminado de antimicrobianos na produção animal, especialmente como promotores de crescimento ou usados para prevenção de doenças, intensifica a resistência bacteriana, refletindo negativamente na saúde humana e animal. Para termos uma noção da magnitude desse desafio de saúde pública, um estudo recente publicado na conceituada revista The Lancet estimou em 1,27 milhões o número de mortes de pacientes em 2019, associadas com a resistência bacteriana aos antibióticos, atribuídas a seis principais patógenos (Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Streptococcus pneumoniae, Acinetobacter baumannii e Pseudomonas aeruginosa). Essas estimativas podem estar subestimadas, considerando as deficiências de diagnóstico e de bases de dados confiáveis em muitos países.
Assim, como forma de mitigar o desenvolvimento da resistência bacteriana, é consenso internacional a necessidade de promover ações e medidas para o uso responsável de ATM na saúde humana e animal. Nas fazendas leiteiras, o principal uso de antibióticos ocorre no tratamento da mastite. Um estudo recente, desenvolvido pelo Gecria USP (Martin, 2017) com base em levantamento de 1034 fazendas leiteiras, revelou que cerca de 80% do uso de ATM em vacas em lactação ocorre para tratamento de mastite e de que cerca de 53% das fazendas utilizam o leite de descarte para alimentação das bezerras após uma semana de idade.
Figura 1. Principais doenças que necessitam o uso de antimicrobianos para tratamento de vacas em lactação
Fonte: Martin, 2017
O uso responsável de antimicrobianos na produção de leite baseia-se em três pilares:
- implementação de medidas de prevenção/controle de doenças bacterianas, para minimizar o necessidade de tratamentos com ATM (reduzir a necessidade de uso);
- diagnóstico precoce e rápido dos patógenos causadores das doenças (usar corretamente, quando necessário); e
- uso de testes de sensibilidade aos antimicrobianos para auxiliar nas decisões de tratamentos, quando possível (usar antimicrobianos com maior chance de cura). Na maioria das fazendas leiteiras, as decisões de tratamento das doenças infecciosas bacterianas mais comuns (p. exemplo, mastite, metrite e diarreia) ainda são feitas apenas com base em sinais clínicos, mas sem o uso de métodos de diagnóstico dos agentes causadores.
Atualmente, os protocolos de tratamento seletivo da mastite clínica são amplamente amparados em estudos que indicam que cerca de 50% dos casos de mastite clínica não necessitam de tratamento com ATM, seja porque não há infecção (quando não é possível isolar o agente causador) ou porque a infecção é autolimitante, com alta chance de cura espontânea (por exemplo, mastite causada por bactérias Gram negativas). Assim, somente os casos graves de mastite clínica têm a necessidade de tratamento imediato com ATM, enquanto os demais casos podem aguardar até 24 horas o diagnóstico microbiológico para tomar a decisão de tratamento.
O uso do tratamento seletivo de mastite clínica (MC) leve e moderada permite reduzir pela metade o uso de antimicrobianos em comparação com o tratamento convencional, além de diminuir em um dia a necessidade de descarte de leite, sem alterar o tempo de cura da MC e a saúde do úbere. Da mesma forma, o uso do tratamento seletivo de vaca seca reduziu em cerca de 66% o uso de antimicrobianos, em comparação com a terapia de vaca seca convencional de todos os quartos mamários, sem afetar negativamente a saúde das vacas leiteiras.
Em resumo, para promover o uso responsável de antimicrobianos na bovinocultura, o tratamento seletivo da mastite clínica representa um passo crucial para reduzir o risco de resistência bacteriana, concentrando o tratamento apenas nos casos com diagnóstico de agentes que exigem o uso de ATM, minimizando o uso indiscriminado de antibióticos. Essa prática não apenas contribui para a redução de custos, diminuindo o uso excessivo de antimicrobianos, mas também resulta na diminuição do descarte de leite.
É fundamental compreender que o tratamento com antimicrobianos deve ser reservado para situações em que seja realmente necessário, sem substituir medidas de controle e estratégias complementares, como a vacinação. O desafio futuro reside na redução ou eliminação do uso preventivo de antibióticos, uma transição crucial para promover práticas mais sustentáveis na bovinocultura e preservar a eficácia dos tratamentos antimicrobianos.
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O uso responsável de antimicrobianos na bovinocultura leiteira e íntegra da programação.
Carga global da resistência bacteriana aos antimicrobianos em 2019: uma análise sistemática - The Lancet
MARTIN, C. C. Influência do uso precoce de antibiótico no desenvolvimento da microbiota intestinal, resposta imune e incidência de diarreias em bezerras recém-nascidas. 2017. 218 f. Dissertação (mestrado) - Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Departamento de Clínica Média, São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/10/10136/tde-15012018-143627/publico/CAMILA_CECILA_MARTIN_original.pdf