É fácil fazer uma análise ex-post do que aconteceu no mercado de leite esse ano. Grande aumento (13,3%, segundo dados do IBGE) na produção no primeiro semestre, câmbio desfavorável, leite mais barato na Argentina e consumo interno incapaz de dar conta do recado se juntaram, como fios desencapados, usando expressão do consultor José Roberto Mendonça de Barros, para derrubar os preços do leite a partir da metade do ano. Mais difícil teria sido fazer a previsão desse cenário, mesmo porque uma variável importante, o câmbio, fugiu (e continua fugindo) de todas as previsões e expectativas. Como dizia o Prêmio Nobel Niels Bohr, "previsões são sempre difíceis, especialmente quando se referem ao futuro"...
O gráfico 1 mostra que, nessa tempestade que foi se formando (cujo início remonta ao ano passado, com melhor relação de troca, preços mais estáveis e atividades concorrentes ao leite em pior situação de rentabilidade), tivemos as primeiras trovoadas de peso em maio, mês em que houve grande importação de leite, principalmente da Argentina.
Naquela época, os preços argentinos estavam na casa dos U$S 0,16 por litro, contra valores próximos a US$ 0,25 no Brasil. Além disso, a curva de produção de leite na Argentina, que é marcada por uma estacionalidade considerável, começa a crescer justamente em abril e maio (gráfico 2). Vale lembrar que, após alguns anos de queda na atividade leiteira na Argentina, o ano passado e este ano trouxeram novos alentos ao setor, ainda mais considerando a menor rentabilidade de culturas concorrentes como a soja.
Gráfico 1. Exportações, importações e saldo da balança comercial de lácteos do Brasil (em volume).
Fonte: MDIC, elaborado por MilkPoint.
O resultado dessa conjunção de fatores, a verdadeira "fome com a vontade de comer", foi a entrada considerável de leite no país no primeiro semestre, a ponto do Brasil recuperar o posto de principal destino do leite exportado pela Argentina. Em valor, até setembro, as exportações argentinas para o Brasil cresceram 39,3% sobre igual período de 2004, atingindo US$ 51 milhões, ou 11,9% do total exportado pelo país vizinho no período. Em volume, foram 29,2 mil toneladas, ou 14,9% do total.
O resultado levou à indignação diversas pessoas, incluindo parlamentares que propuseram medidas para que as importações de lácteos fossem proibidas (leia aqui).
Gráfico 2. Curva de produção de leite na Argentina. Fonte: Direção da Indústria Alimentícia, Secretaria da Agricultura, Pecuária, Pesca e Alimentação (SAGPyA).
Embora a intenção ao se propor tais medidas possa até ter sido boa - no caso, sempre que há envolvimento político em medidas dessa natureza, fico com receio de pura demagogia - a proibição das importações teria, no longo prazo, um efeito bem mais danoso para o setor do que seus benefícios de curto prazo. A razão é simples: o país busca se posicionar no mercado internacional como um futuro grande exportador; o mercado de lácteos está entre os mais protegidos do mundo; o Brasil participa de iniciativas relevantes, como a Aliança Láctea Global, visando redução do protecionismo; em face a esse cenário, qual o argumento para, ao primeiro revés, o país adotar uma postura protecionista?
Caso as importações fossem simplesmente proibidas sob o argumento de que estariam lesando produtores nacionais, estaríamos utilizando os mesmos argumentos dos países que protegem seus produtores com subsídios e que resultam em preços mais baixos para os lácteos comercializados internacionalmente. Afinal, ao que consta, o protecionismo existe justamente para proteger os agricultores e a indústria local.
Talvez o fato de, historicamente, o setor ter sido vítima de importações com dumping contribua para essa visão um tanto distorcida da postura que devemos ter no comércio internacional. Nesse aspecto, nunca é demais lembrar: caso as importações sejam viabilizadas por intermédio de práticas desleais como o dumping, a situação é outra. Temos o direito de impor salvaguardas, tanto que o Brasil obteve sucesso, a partir de 2001, com as medidas anti-dumping. Qualquer coisa fora disso, porém, corre o risco de atrapalhar os planos de longo prazo do setor no mercado externo que, acredita-se, trarão ganhos muito maiores do que os potenciais benefícios advindos do fechamento de fronteiras para os lácteos.
Certamente o governo sabe bem desse jogo, mas é importante que tal análise seja conhecida em entendida pelo setor lácteo. Estar aberto ao mercado internacional, por outro lado, tem lá suas conseqüências. Uma delas, obviamente, é que o preço interno não pode permanecer por muito tempo acima do preço externo, sob o risco de que haja entrada de lácteos até que o preço esteja alinhado. O gráfico 3 traz exatamente essa análise. Nas barras amarelas, está a cotação do real em 1995 (note que, para esse ano, a série contempla apenas a média anual, ao passo que de 1998 em diante, os valores são mensais). A linha vermelha traz os preços do leite, de acordo com o CEPEA/USP. A linha azul é a novidade: trata-se de um preço "virtual" para o leite comercializado no mundo. É calculado a partir da conversão do preço das commodities lácteas vendidas no mercado internacional, em leite "in natura".
Em um mercado relativamente aberto como o nosso, a análise é simples: a linha vermelha não pode permanecer por muito tempo acima da linha azul. Caso isso ocorra, o resultado é conhecido: vai haver importação de leite (e redução nas exportações). Essa análise é de certa forma simplista, porque há outros custos envolvidos na transformação do leite externo em interno, mas mesmo assim é um bom indicativo.
Analisando o gráfico, percebe-se que, a partir do início desse ano, o aumento dos preços do leite (em real) e a valorização da moeda fizeram com que a curva vermelha desgarrasse da azul, resultando em cenário atrativo para aumento das importações e, de forma oposta, queda das exportações em um determinado momento. Da mesma forma, a linha azul não deve ficar muito tempo acima da linha vermelha, porque, nesse caso, exporta-se o produto. De 1999 a 2002, isso ocorreu, mas foi fruto provavelmente do Brasil não estar estruturado para exportar: falta de conhecimento do mercado, ausência de estruturas para exportação (como a Serlac), ausência de acordos internacionais para comercialização de lácteos. À medida que o viés exportador foi se estabelecendo, foi havendo alinhamento entre os mercados interno e externo. Isso, claro, vale para commodities. No caso de produtos de maior valor agregado, como o próprio leite condensado, é possível fugir um pouco dessa relação direta com o preço das commodities lácteas internacionais.
Gráfico 3. Conversão do Real em Dólar, preços do leite em dólar e preço "virtual" do leite no mercado internacional. Fonte: Banco Central, Cepea/USP e FIL-IDF. Elaboração MilkPoint.
Pode-se argumentar que o preço internacional é reduzido em função de subsídios que também criam distorções nos mercados internos - o que é verdade. Conforme pode ser lido em notícia publicada no MilkPoint (clique aqui para ler), o produtor da União Européia recebe, hoje, US$ 0,35/kg de leite, o que seria equivalente a R$ 0,756/kg com o câmbio defasado de hoje. O norte-americano, outro que tem o setor protegido, não vem atrás: US$ 0,34/kg. Para eles, a regra do equilíbrio dos preços internos com o preço externo não vale: o produto externo, ainda que mais barato, não entra em quantidades significativas a ponto de alterar o mercado, ao passo que, internamente, os produtores e exportadores recebem dinheiro (subsídio) para que possam continuar competindo.
A mensagem final é que, enquanto o Brasil luta para obter acesso a mais mercados e redução do protecionismo mundial, é necessário avaliar a competitividade dos lácteos do país no mercado internacional e trabalhar no sentido de melhorá-la, como fazem os neozelandeses e os australianos. Essa postura pró-ativa tem chances de, no médio prazo, trazer resultados muito mais interessantes e duradouros do que medidas de eficácia duvidosa como o fechamento de fronteiras para lácteos. Em um próximo artigo, analisaremos alguns aspectos a respeito da competitividade dos lácteos brasileiros no exterior.