Embora o fogo tenha sido debelado e o escândalo tenha ficado restrito aos dois casos originalmente encontrados, o momento é oportuno para discutirmos mais a fundo a questão da qualidade do leite, provavelmente o tema técnico mais discutido nos últimos dez anos e que envolve interesses de produtores, de laticínios e de empresas de insumos, como as de medicamentos e de ordenha. Nesse período, a IN 51 foi implantada, iniciamos as exportações, que exigem qualidade e têm sido bem sucedidas, e alguns dos principais laticínios passaram a incluir aspectos de qualidade do leite, notadamente gordura, proteína, CBT e CCS, no cálculo dos preços pagos aos seus fornecedores.
Posto isso, surpreende que, apesar de todo o enfoque que vem sendo dado à qualidade do leite, passando por eventos que discutiram o tema, pela criação de conselhos de qualidade como o CBQL, pelo aparelhamento dos laboratórios da Redeleite e outras ações institucionais relevantes, além de investimentos por parte dos produtores e laticínios, a qualidade do leite tem evoluído pouco nos últimos anos. Dados da Clínica do Leite (ESALQ/USP), publicados no Boletim do Leite de novembro de 2007 (tabela 1) mostram que, no último ano, a qualidade não evoluiu e a dispersão dos dados, especialmente para Contagem Bacteriana e Contagem de Células Somáticas, se mostrou muito elevada, o que pode ser conferido na coluna do desvio padrão. Pelos dados, cerca de 10% do leite analisado estaria acima do padrão máximo de 1 milhão de CCS/mL, o que, segundo a legislação não seria adequado ao consumo humano.
Há, sem dúvida, algum consolo nestes dados, refletido pelo substancial aumento no número de amostras que esse laboratório analisou. Para gordura, proteína e extrato seco desengordurado (ESD), CCS e CBT foram analisadas cerca de 80% mais amostras no último período. Com o aumento do número de amostras, é sensato considerar que passaram a fazer parte das estatísticas propriedades que nunca trabalharam com estes índices e, portanto, estão no início de sua curva de aprendizado.
Mesmo com essa importante ressalva, a estagnação dos dados agregados no último ano surpreende. Há diversas razões para isso, sendo impossível discuti-las em profundidade em um artigo dessa natureza. Certamente, acesso a informação, capacitação de mão-de-obra, infraestrutura, fiscalização e outras mais têm seu quinhão de importância. Também, é possível que existam laticínios que, entre competir pelo produto de melhor qualidade com as grandes empresas, "prefiram" atuar em um segmento de qualidade inferior ou de menor agregação de valor aos derivados. Neste artigo, a intenção é discutir a vertente econômica da qualidade: até que ponto se valoriza a qualidade com bonificações que venham a estimular a melhoria da qualidade?
Os números sugerem que pouco, muito pouco. Das 230 indústrias que analisam o leite na Clínica do Leite, apenas 11 têm programas de pagamento por qualidade. Isso significa cerca de 5% das empresas. Apesar deste grupo incluir as principais captadoras de leite do país, de modo que a proporção da produção sujeita a estímulos decorrentes da melhoria da qualidade seja bem maior do que os 5% mencionados, não há como negar que, independentemente, o número é muito baixo. Volume, no Brasil, ainda é o principal diferencial de preço, em especial quando há escassez de leite, como ocorreu em boa parte de 2007.
O pagamento por qualidade é a principal ferramenta para melhoria da matéria-prima. Dados da mesma Clínica do Leite informam que as empresas que possuem pagamento por qualidade verificam, em seus fornecedores, CBT média de 90 mil UFC/mL, contra 500 mil das que não possuem programas diferenciados de pagamento por qualidade. Difícil haver um argumento melhor do que esse para mostrar que, diante de políticas de estímulo/penalização, a tendência é haver melhoria da qualidade. (Observação: a disponibilidade de infra-estrutura básica, condições de financiamento e acesso a informação/capacitação de produtores, em especial oriundos da agricultura familiar, é um ponto que deve ser fortemente considerado para que a melhoria da qualidade não seja um processo de aceleração da exclusão, com impactos sociais que devem ser avaliados).
Tabela 1. Análise das variáveis de qualidade do leite.
Fonte: Clínica do Leite - ESALQ/USP, publicado no Boletim do Leite. Obs: NU = uréia no leite
Além disso, a principal ênfase de alguns programas está na parte higiênico-sanitária e não tanto na melhoria do teor de sólidos, variável importante para ganharmos competitividade no produto exportado. O caso da DPA, por exemplo, é interessante, especialmente por ser a principal captadora de leite do país. A empresa, uma das pioneiras a começar com o programa em início de 2005, fez uma revisão elevando a sensibilidade da remuneração do produtor para CBT e CCS, cujos bônus (e penalizações) se tornaram mais facilmente alcançados do que para o aumento de sólidos. Para exemplificar, se um produtor elevar a gordura média do leite de 3,58% (média do último ano, na Clínica do Leite), para 3,98%, seu leite terá acréscimo de cerca de R$ 0,0095 por litro, ou seja, menos de R$ 0,01. O aumento do teor de gordura do leite, normalmente, vem em prejuízo da produção, ou seja, dificilmente se consegue aumentar o teor de gordura e a produção de leite. Em função disso, não haveria motivo para se elevar a % de gordura, exceto se a faixa atual refletir problemas como falta de fibra e acidose ruminal, que concorrem para piorar a saúde geral do animal e a eficiência de produção. Em outras palavras, uma estratégia baseada no aumento do teor de gordura do leite não faria sentido econômico, levando em conta essa sistemática de pagamento e uma possível redução na produção.
Há, ainda, uma outra questão. A maior parte dos sistemas de pagamento por aqui remunera por faixas porcentuais e não por quantidade efetivamente produzida. Assim, pode ocorrer da produção total de sólidos aumentar, em função de significativos ganhos porcentuais, mas a receita total se reduzir, caso haja alguma queda na produção atrelada à elevação do teor de sólidos.
No caso da proteína, para saltar de 3,19% (média da Clínica do Leite) para 3,40% (média norte-americana), a remuneração do litro melhoraria mais do que para gordura: R$ 0,0248/litro. Porém, elevar o teor de proteína do leite é tarefa normalmente difícil e cara, exceto se houver deficiência considerável de energia e proteína nas dietas (o que, diga-se de passagem, deve ocorrer em muitas propriedades). Afinal, o teor de proteína do leite varia pouco, o que pode ser aferido pelo desvio padrão, proporcionalmente muito menor do que para a maior parte das demais variáveis descritas na tabela 1.
Para se elevar o teor de proteína do leite, é normalmente necessário investir em concentrados. A vantagem em relação à gordura é que via de regra, aumento do aporte de energia eleva não só o teor de proteína do leite, mas também produção, o que evita a situação conflitante verificada com a gordura. De qualquer forma elevar a proteína não é barato. Em janeiro de 2005, quando as principais empresas começaram a pagar por qualidade, a saca do milho estava cotada a R$ 17,30; em novembro de 2007, o valor subiu para R$ 27,40, um aumento de 58,5%. O farelo de soja passou de R$ 529/tonelada para R$ 694/tonelada, acréscimo de 31%. Embora, ao contrário do que ocorre com a gordura, aumentos no teor de proteína do leite podem acompanhar aumentos na produção de leite, mas considerando que elevar a proteína do leite é tarefa difícil e custosa, fica a pergunta se os atuais programas de pagamento por qualidade estimulam suficientemente a melhoria do teor deste nutriente que está diretamente relacionado ao rendimento industrial de queijos e outros lácteos.
Esta diferença de custos remete ao fato de que os programas de pagamento por qualidade das principais empresas foram concebidos em 2005, quando o preço do leite estava menor do que em 2007 (embora 2005 tenha sido um ano de preços médios interessantes) e, fundamentalmente, os custos de produção, em especial de suplementação, eram menores. Assim, em janeiro de 2005 os bônus de qualidade apresentavam uma relação benefício/custo mais favorável do que hoje e, mantida a tendência de elevação nos custos de produção, têm de ser revisados de tempos em tempos.
Em função disso, talvez o estímulo para a melhoria dos sólidos tenha sido insuficiente, o que seria um dos fatores responsáveis pela não-evolução dos teores de gordura e proteína nos últimos 2 anos, mantendo-se em patamares inferiores aos de outros países e muito inferiores a de concorrentes exportadores, como é o caso da Nova Zelândia, que apresenta em média 8,4% de gordura + proteína (os dados da Clínica do Leite indicam 6,8%, quase 20% a menos).
De fato, acredito que poucos nutricionistas vão hoje formular dietas pensando em aumento do teor de sólidos caso este aumento não venha acompanhado de aumento na produção total de sólidos, incorporando a variável de produção na conta. Igualmente, acredito que poucos selecionarão touros com base na melhoria de sólidos caso não haja um concomitante aumento da produção de leite, o que nem sempre ocorre.
Por outro lado, a obtenção de bônus pela redução dos teores de CCS e CBT parece bem mais palpável: leite com CCS abaixo de 240 mil células/mL consegue sobrepreço de R$ 0,012/litro no programa da DPA, sem contar os benefícios indiretos de redução de perdas de produção, melhorias na saúde animal, possível redução nos custos de medicamentos, redução de descarte, etc. No caso da CBT, leite com menos de 40 mil UFC/mL atinge bônus de R$ 0,024/litro, basicamente com medidas de higiene e refrigeração adequada do leite. Sendo assim, neste programa, o estímulo à melhoria da qualidade higiênico-sanitária é maior do que o estímulo à melhoria da qualidade composicional do leite.
Embora tenhamos tratado, neste artigo, de duas vertentes distintas envolvendo qualidade do leite, isto é, as variáveis higiênico-sanitárias e as variáveis composicionais, relacionadas aos teores de nutrientes, fica claro que, em linhas gerais, o estímulo à melhoria de ambas, pela via de mercado, é modesto, principalmente porque são poucas as empresas que remuneram por qualidade e, com importância secundária, porque talvez os programas existentes hoje não sejam suficientemente atrativos para permitir evolução considerável em sólidos.
Talvez, para as condições brasileiras, em que grande parte do leite é consumido no país e na forma fluída, e em que volume tem de fato sido o principal direcionador, não faça sentido mesmo dar ênfase muito grande ao aumento do teor de sólidos, exceto para empresas com grande foco exportador. Comparar com a Nova Zelândia, país que exporta mais de 95% de sua produção, não parece apropriado. Mesmo assim, a tendência é de valorização de sólidos, seja porque o futuro do país inequivocadamente depende das exportações, seja porque, no mercado interno, os produtos lácteos que deverão ter o consumo elevado no futuro são os que dependem do rendimento industrial.
No caso das variáveis de qualidade microbiológica, a conversa é outra e bem mais imediata. Neste episódio da fraude, como bem observou o Prof. Paulo Machado, da ESALQ/USP, a repercussão não deixa dúvidas de que o consumidor valoriza a qualidade, embora seus conceitos de qualidade nem sempre reflitam aqueles que os técnicos do setor consideram. Pode-se dizer, porém, que a partir de outubro de 2007, o consumidor brasileiro despertou para a tal "qualidade do leite" e, de agora em diante, manterá o produto sob permanente escrutínio, tolerando cada vez menos problemas como os verificados. Sob esse prisma, a baixa ocorrência de programas de pagamento por qualidade preocupa, e muito. Isso sem abordar a fundo que o leite "spot", comercializado entre empresas, e que representa parcela importante e crescente, via de regra não tem em seu comércio parâmetros de estímulo/penalização à qualidade compatíveis com as futuras exigências do mercado.
Obs: os valores de pagamento por qualidade foram calculados a partir do material disponível no site da DPA, em 04/01/08. https://www.dpamericas.com.br/SPLDPA_pagamentodeleite.aspx