Certamente a discussão de sempre será retomada: haverá quem argumente que quem sai é porque utiliza um sistema de produção inadequado, baseado em uma realidade distante da atual, onde não há lugar para subsídios, para o uso intensivo de capital e para um clima que favoreça a produção por vaca. Também, quem sai pode não ser o produtor profissional, que vive da atividade, argumento que pressupõe que as liquidações refletem propriedades mal administradas ou proprietários que cansaram de perder dinheiro na atividade, sempre secundária. Por fim, há espaço para quem diga que as liquidações não representam o que de fato ocorre com o mercado, visto que a produção de leite do país tem aumentado nos últimos 10 anos a taxas médias razoáveis, a despeito do estardalhaço das liquidações, que, em última análise, embutem a mudança geográfica do leite, isto é, as vacas mudam de mãos e região e continuam produzindo.
Acredito que qualquer generalização ou radicalização nesse sentido corre o risco de estar em grande parte equivocada. Não há como negar que, no mar de liquidações de fazendas tradicionais dos últimos anos, existem explorações pouco eficientes ou mal gerenciadas que, como em qualquer atividade, mais cedo ou mais tarde são forçadas a parar pelo próprio mercado. Também, há fazendas com desvantangens comparativas e que optaram por estratégias de exploração inadequadas para a sua situação. No entanto, resumir a discussão a esses pontos é perder a oportunidade de analisar outros aspectos que afetam a competitividade do leite nas regiões tradicionais, sendo tão incompleta quanto a análise que deposita apenas no baixo preço e no alto custo a razão das fazendas pararem.
Um aspecto que me chamou a atenção na lista de liquidações deste semestre programadas pela Embral, principal leiloeira do setor, é que começam a surgir produtores em Goiás entrando no circuito das liquidações. Quais os fatores envolvidos ? Inicialmente, vale lembrar que 2001 foi o ano da grande crise do setor, especialmente no segundo semestre. Goiás foi quem tomou o tombo mais alto de preços, como já foi extensivamente discutido. Mas em 2002 houve recuperação. Embora discussões sobre metodologia de coletas de preços de leite estejam em alta (veja o artigo do pesquisador Leandro Ponchio na seção Espaço Aberto), dados do CEPEA indicam que Goiás teve o melhor preço de leite do país no ano.
Porque então a presença mais intensa de goianos nas liquidações, ainda que de forma modesta comparada a paulistas e mineiros ? Será ainda efeito da necessidade de pagamento dos financiamentos do FCO, cuja torneira foi apertada nos últimos anos ? Ou será que estes produtores representam exceções no que se refere ao sistema de produção e à eficiência ? Ou - talvez seja efeito do próprio amadurecimento da atividade no Estado, que verificou taxas eufóricas de crescimento na década passada e que, agora, vê um certo assentamento da poeira ?
Há, porém, um outro aspecto que precisa ser considerado e que encontra um paralelo com regiões mais tradicionais. Trata-se do custo de oportunidade da terra e da mão-de-obra dessas regiões. Boa parte da migração do leite para as fronteiras se deu em função do baixo custo de oportunidade: terras e mão-de-obra baratas permitiam que a exploração crescesse de forma normalmente rudimentar, sem tecnologia e sem qualidade. Só que, de forma geral, Goiás, que foi fronteira no passado, hoje já não é mais. Imagine produzir leite em Rio Verde, em meio à prosperidade da soja e mesmo do milho: o leite precisa ser bem mais competitivo, gerar receita por área e lucro por área. Isso significa intensificar, assumir mais riscos, depender mais das variáveis do mercado, sejam elas preço do leite, preço do adubo, preço da ração ou do medicamento.
Com a valorização da soja, do milho, da laranja, da cana e até do boi, a pressão sobre atividades não voltadas à exportação, como o leite, fica ainda maior. Daí se explica por exemplo a carta de despedida do produtor paulista Célio Fontão Carril:
"Considero-me um vencedor na pecuária de leite. O leite sempre me propiciou um ótimo fluxo de caixa, pagou todos os investimentos, deixando um lucro líquido de 8% no último ano. Então porque liquidar ? A razão é simples: a topografia, a qualidade das terras, a proximidade da usina de açúcar, a altitude, a qualidade do café aqui produzido, me obrigam a ampliar as áreas dedicadas à plantação de café e cana-de-açúcar".
Tudo bem, é preciso estimular o mercado com mensagens positivas, mesmo quando se deixa a atividade. Esse depoimento, no entanto, indica que surge com força mais um desafio considerável ao setor: a grande atratividade de outras atividades agropecuárias que vivem momentos muito favoráveis, especialmente aquelas voltadas ao agronegócio de exportação.
Para ilustrar essa questão, é interessante conhecer dados de um levantamento feito pela CATI em São Paulo, no ano passado. Foram levantadas a capacidade total de laticínios sob inspeção oficial (SIF, SISP e SIM) em todos os municípios e o nível atual de utilização desta estrutura. Seguem abaixo algumas das cidades, a maior parte localizada em regiões de agricultura próspera, e o nível de ociosidade do setor leiteiro:
A mensagem que fica é simples: há, obviamente, questões complexas que interferem nos níveis de competitividade dos estados, sendo exemplo a guerra fiscal e a redução do poder de barganha e produtor e de laticínios, já discutidas anteriormente nesse espaço. Porém, como pode sugerir a tabela acima para algumas cidades de São Paulo, a competição com outras atividades nesse momento exerce e tenderá a continuar exercendo pressão sobre o leite, atingindo inclusive regiões nas quais o crescimento foi, até recentemente, bastante elevado. O leite precisará, mais do que nunca, de competitividade.