Consideraremos Alergia ao leite de vaca (APLV) como a situação caracterizada por resposta imunológica que ocorre após o consumo ou contato com as proteínas (alérgenos) do leite de vaca (Cocco et al, 2019).
A APLV acomete principalmente indivíduos na faixa etária pediátrica (Flom et al, 2019). No Brasil, esses dados são escassos e limitados; estudo conduzido por gastroenterologistas pediátricos apontou uma incidência de 2,2% e a prevalência de 5,4% em crianças nos serviços avaliados (Vieira et al, 2010).
Os principais sinais e sintomas relacionados a APLV são manifestações cutâneas (urticária e /ou angioedema), sintomas gastrointestinais (dor abdominal e vômito) e menos frequentemente sintomas respiratórios (tosse e /ou sibilância); podem também ocorrer reações anafiláticas (Barbosa et al, 2017).
O diagnóstico de APLV por mecanismo IgE mediado se dá através da história clínica do paciente; este diagnóstico pode ser complementado por teste cutâneo (Teste de Punctura ou Prick test) e pela quantificação de anticorpos IgE específicos para leite de vaca e suas proteínas constituintes, que são principalmente a α-lactolbumina (αLA), β-lactoglobulina (βLG) e caseína (Cuomo et al, 2017). Entretanto, o teste padrão ouro para o diagnóstico inicial e evolutivo da APLV é o chamado Teste de Provocação Oral (TPO).
O TPO consiste em uma ferramenta não só para a confirmação diagnóstica da doença, mas também para constatar a aquisição natural de tolerância ao alimento inicialmente causador da alergia alimentar. O TPO duplo-cego e placebo controlado é considerado o padrão ouro para o diagnóstico das alergias alimentares; entretanto é também o de mais difícil execução.
Assim, o TPO pode ser realizado também de forma aberta ou simples cego. Na prática clínica, o TPO aberto é o mais utilizado, por sua praticidade, sendo uma alternativa aceitável de acordo com American Academy of Allergy Asthma and Immunology Work Group Report (2009) e com National Institutes of Health/National Institute of Allergy and Infectious Diseases Food Allergy Guidelines, 2010 (Cocco et al, 2019).
Porém, quando os sintomas iniciais ou tardios são subjetivos, recomenda-se o TPO duplo cego placebo controlado, pois os resultados nesses pacientes são mais difíceis de serem interpretados (Fiocchi et al, 2002).
Uma vez feito o diagnóstico de APLV, inicia-se o tratamento, que na grande maioria dos casos consiste em dieta de exclusão de leite de vaca e seus derivados, pois acredita-se que a eliminação dietética do alérgeno possa ter como alvo o sistema imunológico adaptativo, suprimindo com o tempo a resposta induzida pelo antígeno (D’Auria et al, 2019). Estima-se que menos de 10% dos casos de APLV persista até a fase adulta (Solé et al, 2018).
A restrição dietética, porém, leva em muitos casos ao impacto emocional entre pais e crianças com o aumento do estresse pelo controle do consumo alimentar das crianças e o custo para manter a dieta restritiva e promover as substituições; estes acabam sendo fatores que limitam a continuidade da restrição da dieta ao alérgeno identificado (Golding M., et al, 2021). Por isso, diagnósticos e tratamentos mais precisos são importantes para melhor manejo da alergia alimentar (Ali A., et al, 2021).
O TPO para APLV pode ser feito com leite líquido ou leite “cozido” (Baked Milk). Define-se "leite cozido" (Baked Milk) como o leite que passou por "processo de cozimento" — tratamento térmico — de 180 graus Celsius por pelo menos 20 minutos.
Este processo se dá, portanto, quando preparações que contém leite líquido são levadas ao forno caseiro, nas condições já descritas. Isto provoca desnaturação das proteínas do leite com mudança conformacional, que resulta em alteração da sua alergenicidade (Quiroga, 2014).
Quando o TPO Baked se revela negativo, há a possibilidade do consumo de uma série de alimentos antes proibidos. Embora não seja neste momento permitido o consumo de leite e derivados "não cozidos", o consumo de alimentos Baked reduz o estresse associado à dieta de exclusão, melhorando consideravelmente a qualidade de vida do paciente (Solé et al, 2018). Também se considera que o consumo de alimentos Baked seja uma importante ferramenta para acelerar a aquisição de tolerância natural ao leite líquido (Jong et al, 2022).
Estudos recentes têm demonstrado novos rumos para diagnósticos e tratamentos mais precisos das alergias alimentares. Alguns polimorfismos genéticos parecem afetar a metilação do DNA, aumento ou redução da velocidade de acetilação das histonas e maior produção de proteínas responsáveis pela inflamação presente na alergia. O reconhecimento desses polimorfismos pode resultar em exames mais precisos para os diferentes casos de alergias alimentares (Ali A., et al, 2021).
Alguns estudos mostram que, durante a cascata inflamatória que ocorre na alergia alimentar, há aumento de interleucinas pró-inflamatórias produzidas pelas células T, como, por exemplo, IL-10, IL-33, IL-25. Estas respostas podem vir a constituir eventualmente um caminho para diagnóstico e tratamento mais preciso (Sahiner UM, et al, 2021; Nedelkopoulou N., et al, 2021; Murdaca G., et al, 2019).
Assim, novos caminhos têm surgido para melhores diagnósticos e tratamentos das alergias alimentares, para melhor qualidade de vida e o desenvolvimento infantil.
Leia também:
- Alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e leite A2
- APLV: uso de peptidases na produção de derivados lácteos
Referências
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