Aviso aos navegantes do mundo lácteo: foi dada a partida! Iniciamos a terceira onda na organização da Cadeia do Leite Brasileiro. A história registrará como certidão de nascimento, o seguinte: em 11 de maio de 2004, na sede da FAESP, tendo à frente a Leite Brasil, iniciou-se uma nova revolução, ou seja, o pagamento do leite por sólidos. Refiro-me ao I Seminário Brasileiro Sobre a Valorização dos Sólidos no Leite.
A vida é assim mesmo. Vivemos momentos aparentemente triviais, sem perceber a relevância que o cerca. Veja o caso de Pilatos. Quando ele antecipadamente preparou a morte de Cristo, para depois publicamente se eximir de qualquer responsabilidade por sua morte, estava pensando em duas coisas: se livrar de uma liderança que o incomodava, pois o afrontava pela sua popularidade e, ao mesmo tempo, manter as sólidas relações com aqueles que Cristo chamou de "vendilhões do templo". Pilatos era um reles administrador de um longínquo rincão do Império Romano, longe da Corte. Pilatos armou o teatro para se livrar do risco iminente que Cristo demonstrava nas suas últimas ações, para preservar a estabilidade política de sua administração. Querendo preservar o cargo, entrou para a história da humanidade. E criou seguidores. Afinal, quantos de nós, em diferentes situações, já utilizamos a sua máxima: lavar as mãos? E mostrou habilidade, pois, dois mil anos depois, malhamos Judas, e não Pilatos.
Divagações à parte, tivemos duas etapas organizacionais da Cadeia Produtiva do Leite até agora. A primeira foi na década de 40, quando ficou estabelecido que leite, para ser comercializado, teria de passar por processo de pasteurização. Já pensou o que isso significou, naquela época? Imagine como seu avô reagiu! Somente não houve reações sólidas, porque o Brasil dos anos 40 foi um Brasil autoritário. Ser contrário a decisões do Governo era arriscado.
A segunda onda teve como motivo também o Estado, ou o Governo, quando abriu o mercado brasileiro, desregulamentando o setor e facilitando a importação de lácteos. Mas esta nova onda não foi operada pelo Estado. Quem assumiu a condução do processo de Granelização foi o elo Indústria. Isso ocorreu a partir dos meados dos anos noventa. O que a Indústria de Laticínios diagnosticou foi o seguinte: para se manter competitiva frente aos importados, deveria cortar custos. Um deles, refere-se aos custos de captação.
Neste ponto é necessário fazer uma invocação ao pensamento de Adam Smith - o pai da Ciência Econômica. Há um trecho em sua obra, escrita há dois séculos, que diz o seguinte: quando um produtor de leite escocês levanta às 4:00 hs. da manhã, numa temperatura de zero graus para tirar leite, assim o faz não porque quer ver o filho do consumidor forte, saudável, de bochechas róseas. Mas, exatamente, porque quer obter renda para ver assim os seus próprios filhos. Agindo em seu próprio interesse, faz com que ambos os filhos - o seu e o do consumidor, tenham bochechas róseas e saudáveis. Pensando em si - e somente em si, a Indústria viabilizou a sobrevivência da produção de leite brasileira frente aos produtos importados.
Portanto, preocupada consigo mesmo, preocupada com sua sobrevivência, a Indústria montou o cenário para esta terceira onda: o pagamento do leite no Brasil será feito por sólidos! É questão de tempo. E aí cabe aos agentes se prepararem para esta nova onda. Lembro-me de produtores que me confidenciaram, nos meados dos anos noventa, que não aceitaram as facilidades que eram dadas pelas empresas para a aquisição do tanque resfriador, porque imaginavam que era modismo. Tiveram a chance de o adquirirem praticamente de graça e agora têm de pagar pelo erro de análise - não têm mais o financiamento da Indústria. Confundiram ações conjunturais (passageiras), com ações estruturais (edificantes). Também vários laticínios (o que inclui cooperativas) fizeram leitura errada. Entenderam que a granelização era coisa de multinacional. Hoje, pagam caro pelo erro de análise. Algumas já pagaram com a vida: não sobreviveram.
A terceira onda se iniciou com o evento realizado pela Leite Brasil. E o batismo se dará com o evento que a CBQL e MilkPoint estarão realizando em Passo Fundo. Pagamento por sólidos significa premiar o produtor por aquilo que a matéria-prima apresenta em termos de proteína e gordura. Se queremos preservar o apetitoso mercado nacional para os produtores brasileiros e, mais, se queremos expandir nossa participação no mercado internacional, é necessário que ganhemos competitividade, aumentando a produtividade da matéria-prima. Isso significa produzir mais e melhores derivados lácteos com a mesma quantidade de leite.
Quem tem de introduzir e coordenar qualquer mudança na cadeia produtiva é a indústria. Isso vale para setores do agronegócio ou não. Veja o caso da indústria automobilística. Quando as montadoras captam a necessidade de mudança em algum de seus processos, visando manter competitividade, induzem transformações junto a seus fornecedores. E assim, preservam a si e a seus fornecedores, naturalmente.
É de se esperar que uma nova sistemática de pagamento traga solavancos, ou seja, conflitos entre produtores e indústria. A intensidade dos conflitos estará relacionada ao prêmio que os produtores vierem a receber e como irão captar esse estímulo. Perceba que são duas coisas diferentes. Uma se refere ao estímulo efetivo, ou seja, se é compensatório para o produtor investir em genética e manejo para aumentar a disponibilidade de sólidos. A outra é comunicar com eficiência o que se pretende e que tipo de estímulo está se dando. Ambas são necessárias, mas não suficientes isoladamente.
Baseado na experiência de granelização, é possível que dois outros conflitos tenham de ser superados. O primeiro é imaginar que pagamentos por sólidos leva à exclusão social. O segundo é o cooperativado entender que estará se acentuando o pagamento diferenciado na cooperativa. Nos anos noventa, esta discussão chegou até ao CADE, lembram?
Mas a criança apenas nasceu, e não compensa, neste momento, estimular a discussão de situações que ela viverá na sua adolescência e fase adulta. Voltaremos a estas questões, portanto, quando elas estiverem na ordem do dia.