- Viviani Gomes, Professora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo
- Camila C. Martin, mestranda da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo
Gecria – Grupo Especializado em Medicina Aplicada à Criação de Bezerras - Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia – Universidade de São Paulo.
1- Introdução
A gestão das doenças na criação de bezerras deve ser realizada por meio da elaboração de protocolos operacionais personalizados para as condições das propriedades, de acordo com reuniões e discussões entre produtor, veterinário e colaboradores. O treinamento de pessoal antes da implantação dos protocolos e a criação de métodos para o monitoramento constante dos procedimentos estabelecidos é fundamental para o sucesso do programa sanitário e atingimento dos desejados índices sanitários. Neste contexto, o artigo “Sanidade na Criação de Bezerras” pretende trazer ferramentas que ajudem na elaboração dos protocolos operacionais para a gestão de doenças à serem personalizadas de acordo com a realidade de cada produtor.
2- Falha na Transferência de Imunidade Passiva (FTIP)
A inadequada transferência de imunidade passiva torna a bezerra um fácil alvo para micro-organismos causadores de doenças. A FTIP não é considerada uma doença, porém é o principal fator de risco para as diarreias, inflamações umbilicais, artrites supurativas (séptica) e septicemias (Figura 1).
Bezerras que ingeriram quantidade insuficiente de colostro, foram colostradas tardiamente ou receberam colostro de má qualidade podem desenvolver falha na transferência de imunidade passiva. A FTIP também pode ser observada naqueles animais oriundos de partos trabalhosos (distocias), pois nascem deprimidos e podem apresentar dificuldades para ingerir o colostro no tempo adequado.
A FTIP deve ser detectada pela avaliação dos teores de proteína total no soro das bezerras entre 24 a 48 horas de vida. A avaliação da FTIP deve ser realizada no máximo na primeira semana de vida, pois as proteínas da dieta e a produção própria de anticorpos pelas bezerras pode mascarar a FTIP após o período especificado.
Para a análise, recomenda-se colher amostra de sangue em tubos sem anticoagulantes (tampa vermelha ou cor de tijolo). Deixar a amostra em temperatura ambiente até a coagulação do sangue e obtenção da fração líquida (soro). Deve-se pipetar uma gota de soro no prisma do refratômetro específico para proteína total. As bezerras com valores menores que 5,5 g/dL deverão ser consideradas com falha na transferência de imunidade passiva.
O refratômetro Brix usado para avaliar a qualidade do colostro também pode ser utilizado para avaliar a FTIP nas bezerras, sendo que 8,4% é o ponto de corte para definir a presença ou ausência da falha na transferência de imunidade passiva.
Figura 1 - Proteína total no soro de bezerras antes (D0) e após a ingestão do colostro nos dez primeiros dias de vida.
A prevenção da FTIP deve ser feita por meio do gerenciamento do manejo de colostro, conforme detalhado na parte I dessa sequência de artigos.
Figura 2 – Bezerra apresentando artrite, diarreia e inflamação umbilical decorrente de falha na transferência de imunidade passiva.
3 - Diarreias
A importância das diarreias no primeiro mês de vida é consensual e preocupa muito os produtores e técnicos envolvidos no controle desta doença. A diarreia resulta em perdas diretas com os custos vinculados ao diagnóstico etiológico e tratamento, além das perdas indiretas relacionadas à queda no ganho de peso, desenvolvimento retardado e redução na produção futura.
A ocorrência da doença relatada internacionalmente gira em torno de 20%, entretanto a realidade que enfrentamos no Brasil é bem diferente. Nossa equipe acompanhou um grupo de bezerras (n=20) no primeiro mês de vida, no qual foram observados pelo menos um episódio de diarreia em todos os animais avaliados. Todas as bezerras foram tratadas e nenhuma delas morreu de diarreia. Esta realidade tem sido constantemente relatada por produtores e técnicos: a ocorrência das diarreias é alta, porém a mortalidade pode ser baixa ou nula se os animais forem tratados adequadamente.
As bezerras crescem em ambiente uterino estéril, assim a colonização do trato gastrintestinal das bezerras inicia-se ao nascimento. Nos humanos, as bactérias boas (lactobacilos e bifidobactérias) dos bebês são oriundas do seu contato com as mães durante o processo de amamentação e cuidados gerais com os recém-nascidos. Ressalta-se que usar antibiótico nas mulheres no final da gestação impacta em menor proporção dessas bactérias no intestino dos recém-nascidos. Será que isto ocorre quando usamos antibiótico para vacas secas?
A separação das bezerras das vacas imediatamente após o nascimento e mamada artificial do colostro ao aleitamento pode contribuir para a colonização do intestino com bactérias ambientais, que possuem maior potencial para desequilibrar precocemente a flora intestinal. Esta dinâmica permite destacar que a higienização, desinfecção do ambiente, assim como a contaminação do colostro e/ou leite podem ser os principais fatores de risco para as diarreias nas bezerras recém-nascidas.
A maioria das fazendas que possuem bezerreiros em galpões lavam a estrutura do bezerreiro com água e detergente (amônia quaternária) e guardam a secagem para a passagem de cal com água usando um pincel. Por fim, deve-se enxaguar e aguardar a secagem das estruturas para o uso de vassoura de fogo. Não colocar as bezerras dentro das baias em contato direto com o cal em pó porque irrita muito as mucosas oculares e trato respiratório. Instalações de madeira são difíceis de higienizar, demoram para secar e inviabilizam o uso constante de vassoura de fogo. A frequência de higienização do bezerreiro é um problema porque geralmente é realizada apenas a remoção diária da cama suja dos animais e a higienização descrita anteriormente apenas na saída das bezerras das instalações. Difícil descrever um protocolo ideal porque dependerá muito da estrutura do bezerreiro e disponibilidade de cama, porém a meta é eliminar o máximo de sujeira possível.
Outros fatores de risco à serem destacados como fonte de contaminação são: presença de outros animais no bezerreiro como gatos e cachorros; higienização inadequada de utensílios como mamadeiras, baldes, sondas esofágicas; limpeza do uniforme dos funcionários, como botas, macacões; e higiene das mãos dos cuidadores das bezerras. Ressalta-se que todos os utensílios usados para a alimentação das bezerras devem ser lavados diariamente, de preferência após cada refeição, com água e sabão e enxaguados com água em abundância.
Outra questão importante que devemos pensar é qual o malefício versus benefício do uso de leite de descarte, porque o mesmo também pode influenciar no desenvolvimento da flora do intestino das bezerras recém-nascidas. Além de estimular a resistência das bactérias aos principais antimicrobianos (antibióticos) usados no tratamento de animais e humanos.
A entrada dos micro-organismos causadores de diarreias é a oral-fecal. Os agentes infecciosos envolvidos nas diarreias são as bactérias Escherichia coli, Salmonella sp. e Clostridium perfringens; os vírus Coronavírus e Rotavírus; e os protozoários Eimeria, Giardia e Cryptosporidium, além das verminoses.
A identificação do grupo etário acometido é o primeiro passo para a detecção do agente causal. Bezerras com idade inferior a cinco dias de vida são frequentemente acometidas por Escherichia coli enterotoxigênica; cinco aos 14 dias por Rotavírus, Coronavírus, Salmonella e Cryptosporidium; acima dos 14 dias e próximo ao desmame por Escherichia coli, Salmonella, Eimeria e Giardia (Mc GUIRK, 2008).
Estes micro-organismos penetram nas células intestinais (enterócitos) e promovem modificações na absorção da dieta e/ou hipersecreção que resulta nas diarreias. A destruição dos enterócitos acarreta na redução da digestão e diminuição do ganho de peso.
Independente do agente causal, os principais sintomas associados às diarreias são desidratação e redução na consistência das fezes. Diarreias causadas por Escherichia coli geralmente são aquosas e amareladas, podendo levar a fraqueza, desidratação e redução da temperatura corporal. Cryptosporidium, Rotavírus e Coronavírus causam diarreia com muco, febre e dores abdominais. A Salmonella causa diarreia líquida, fétida, com estrias de sangue e febre. Enquanto que a diarreia é enegrecida com a presença de sangue e muco pode ser observada nas Eimerioses.
Os escores da consistência fecal podem ser utilizados para ajudar na decisão quanto ao início do tratamento (Quadro 1).
Quadro 1 - Escala de escore de fezes de acordo com a sua consistência.
Figura 3 - Escores de fezes de acordo com a sua consistência.
Figura 4 - Bezerra com diarreia apresentando escore de fezes 3.
Os escore de fezes zero e 1 são considerados normais, não havendo necessidade de tratamento, no entanto animais que apresentam escore de fezes 2 e 3 estarão desidratados e devem ser tratados. A hidratação e reposição de eletrólitos (Na+, K+, Cl- e HCO3-) é a principal medida à ser instituída no tratamento das diarreias. Os animais devem receber soro com eletrólitos preferencialmente por via oral, deve-se manter a soroterapia até as fezes apresentarem escore zero ou 1.
Existem soluções eletrolíticas comerciais que podem ser diluídas em água morna, leite ou sucedâneo antes da sua administração, porém soluções contendo o bicarbonato de sódio não devem ser misturadas ao leite, pois aumentam o pH do abomaso e impedem a digestão das proteínas lácteas agravando os quadros de diarreia. Nestes casos o bicarbonato de sódio tem sido substituído pelo acetato de sódio nos hidratantes comerciais onde existe a indicação de misturar o produto com o leite e/ou sucedâneo.
As bezerras que apresentarem desidratação intensa e diminuição da temperatura corpórea ou extremidades (membros) devem receber soro endovenoso, principalmente porque perdem o reflexo de sucção.
Se o bezerro com diarreia apresentar-se muito triste, fraco, não aceitar o leite, apresentar dor (cólica) e febre (40ºC) recomenda-se a administração de antibiótico de acordo com as recomendações do médico veterinário responsável pela criação.
Em animais que apresentam diarreia enegrecida deve-se considerar o tratamento para Eimeria com agentes anticoccidianos como a toltrazurila. Em relação ao tratamento das diarreias ressaltamos que não existe a necessidade de suspender o leite porque a bezerra pode evoluir para a inanição se o caso for persistente. Outro mito é que o antibiótico é mais importante que o soro. Ressalta-se que a hidratação das bezerras deve ser realizada independente da causa das diarreias.
O uso de probióticos pode ter um efeito benéfico para o re-estabelecimento da flora intestinal após os episódios de diarreias. O probiótico atua como um biorregulador microbiano, que mantêm o equilíbrio da microbiota intestinal e ruminal, impedindo a colonização intestinal por agentes patogênicos. Não deve-se usar antibiótico e probiótico simultaneamente.
O conhecimento da etiologia da diarreia é muito importante para a elaboração de um plano preventivo da doença. Conhecer os agentes envolvidos pode auxiliar na melhor definição das fontes de infecção, locais em que os animais estão sendo expostos e principais fatores de risco, resultando em planos de tratamento mais eficazes e recomendações preventivas mais específicas para cada caso.
A vacinação das vacas no período pré-parto é uma medida importante a ser considerada na prevenção das diarreias. Esta estratégia visa o aumento na quantidade de anticorpos no colostro principalmente para micro-organismos causadores da diarreia neonatal (Escherichia coli, Rotavírus e Coronavírus). Ressaltamos que não adianta investir em vacinas se o programa de colostragem estiver inadequado. Aqui ressalta-se que quanto mais rápido for fornecido o colostro após o nascimento, menor será a ocorrência de diarreias. Os anticorpos do colostro revestem a mucosa do intestino formando uma barreira que impede a adesão dos micro-organismos patogênicos.
O esquema de vacinação preconizado contempla a aplicação de duas doses de vacina aos 60 e 30 dias do antes do parto previsto. A eficácia das vacinas deve ser comprovada pelas empresas que as comercializam. Os produtores e técnicos devem questionar a existência de testes clínicos que comprovem a eficácia do produto. Para a Criptosporidiose e Eimeriose a prevenção não é obtida com o auxílio de vacinas.
4 - Inflamações umbilicais
As inflamações umbilicais são consequências de falhas na colostragem e desinfecção umbilical, agravadas por pobres condições sanitárias. Os animais acometidos geralmente apresentam inchaço do umbigo, pele avermelhada, presença de secreção purulenta e dor. Ressaltamos que a região umbilical é composta por vasos (artérias e veia) que adentram o abdome e possui ligação com órgão internos como o fígado resultando na formações de abscessos nessas regiões. Além disso, as bactérias podem circular pelo organismos e instalar-se nas articulações e originar as poliartrites.
Figura 5 – A triagem das bezerras com problemas umbilicais pode ser feita pelo inchaço da região.
O tratamento das inflamações umbilicais pode ser feito de modo conservativo, com a limpeza local e uso de repelentes para evitar miíases. Os antibióticos podem ser associados ao tratamento de acordo com a recomendação do médico veterinário. Em casos extremos é recomendada a drenagem de abscessos ou realização de cirurgias quando as estruturas internas apresentarem-se acometidas.
O monitoramento periódico do umbigo, principalmente nos primeiros dias de vida, por inspeção e palpação, é fundamental para identificação precoce das inflamações umbilicais. A desinfecção do cordão umbilical, associada à higiene das instalações e à boa colostragem são as estratégias mais importantes para a prevenção das inflamações umbilicais.
5 - Conclusões
Este artigo reforça que a gestão das diarreias e inflamações umbilicais inclui a elaboração de protocolos de procedimentos padrão envolvendo higienização das instalações, manejo de colostro e gestão das doenças personalizados às propriedades. Este plano deve ser estabelecido pela equipe de trabalho que envolve produtor, veterinário e colaboradores envolvidos na criação das bezerras recém-nascidas. O monitoramento frequente destes protocolos e treinamento de pessoal são medidas extremamente importantes para a manutenção dos índices de produção e sanitários estabelecidos pela equipe.
6 - Referências bibliográficas
MCGUIRK, S. M. Disease management of dairy calves and heifers. Veterinary Clinics of North America, food animal practice, v. 24, n.1, p. 139-156, 2008.
Leia também:
Sanidade na criação de bezerras - do nascimento às 24 horas de vida - parte I de IV