Marcelo Pereira de Carvalho
Aproveitando que o "pacato" Canadá veio novamente à tona ao requisitar retaliações comerciais ao Brasil junto à OMC, em função do caso Embraer-Bombardier (a empresa canadense acusa a concorrente brasileira de utilizar juros subsidiados para exportação, ferindo as relações comerciais determinadas pela OMC, como se o país do norte não fizesse o mesmo em outros setores - veja artigo sobre o assunto: " Depois da guerra fria, a guerra comercial", vamos apresentar nesta semana alguns dados relativos ao sistema de produção de leite do país.
A comparação mais evidente se dá com seu vizinho do sul, os EUA. Uma diferença básica é que o Canadá aplica há 30 anos um rígido sistema de cotas de produção, regulando desta forma a oferta de acordo com a procura, ao passo que nos EUA, pelo menos no que se refere à liberdade de produção, vigora o livre-mercado. A meta do Canadá é produzir o suficiente para abastecer seus 30,5 milhões de habitantes, evitando surpresas desagradáveis como quedas bruscas de preços. Outra distinção importante é que a compra de leite é fortemente regulada: nenhum produtor pode negociar por conta própria com indústrias, tendo que participar de federações das diversas províncias, que negociam o leite com cerca de 90 indústrias, fixando preços que visam remunerar decentemente o produtor, descartando-se os 30% menos eficientes, a partir de uma amostragem de custos de produção (dados obtidos em matéria da Balde Branco, set/2000).
Se uma palavra pode resumir a produção de leite no Canadá, esta palavra é "estabilidade". Conforme citado nesta mesma matéria, "produzir leite no Canadá representa saber antes quanto vai se gastar e quanto vai se ganhar", justamente uma das maiores reclamações de produtores em outros países, incluindo os EUA e o Brasil, onde as bruscas variações de preços recebidos impedem o planejamento de longo prazo e dificultam o cumprimento das obrigações de curto prazo.
Mas vamos ao que interessa: qual o impacto deste sistema na rentabilidade do produtor?
Nota-se na tabela 1 que, apesar do custo de produção 20% mais elevado, em função de preços de leite 36% mais altos a fazenda canadense gera lucros 191% maiores do que a americana, fazendo com que o lucro médio por fazenda/ano seja quase igual nos dois países, mesmo considerando que a fazenda canadense (neste estudo) tem mais de 3 vezes menos vacas do que a americana!
Tabela 1 - Comparação de resultados entre fazendas do Canadá e EUA (67 fazendas em Ontario, Canadá, e 510 no Nordeste dos EUA)
Pode-se argumentar que os preços de derivados lácteos pagos pelo rico consumidor canadense devem flutuar nas alturas. Engano: apesar dos produtores receberem mais pelo leite produzido, o preço ao consumidor é menor do que nos EUA. Nos últimos 6 anos, o custo médio de derivados lácteos ao consumidor tem sido entre 5 e 30 centavos mais baixo do que similares do outro lado da fronteira. O próprio editorial da revista americana "Hoards Dairyman" indaga que, "de forma até surpreendente, o sistema americano, orientado ao mercado, gera preços mais baixos ao produtor e mais elevados ao consumidor."
E como se consegue pagar bem pelo leite e mesmo assim não onerar o preço ao consumidor? Subsídios? Não, hoje o subsídio à produção é de apenas US$ 0,01/litro e deverá se extinguir em 2001, segundo a reportagem da Balde Branco. A chave está na organização da cadeia láctea e da própria sociedade, que reconhece a importância de se preservar os produtores.
A matéria que publicamos em 31/10, intitulada "Consumidores canadenses apoiam a política de proteção da indústria de lácteos", resume bem a inserção do produtor de leite na sociedade. A matéria é reproduzida abaixo:
"Em uma recente pesquisa, os consumidores do Canadá disseram que acreditam que o país deve usar tarifas para proteger a indústria de lácteos dos competidores estrangeiros, segundo a organização Dairy Farmers of Canada (DFC).
A pesquisa mostrou que os consumidores canadenses apoiam os componentes primários da indústria de lácteos canadense, incluindo o sistema de gerenciamento de oferta de leite; administração de preços para garantir um retorno justo aos produtores; e controle dos níveis de importação.
Os principais pontos da pesquisa estão colocados abaixo:
- O apoio ao sistema de gerenciamento da oferta de leite continua forte. Cerca de 90% dos consumidores concordam que a indústria de lácteos do país é grande o suficiente para satisfazer as necessidades do mercado. A maioria dos canadenses acredita que esse sistema é de grande interesse para os consumidores;
- Cerca de 85% dos consumidores acreditam que o preço do leite no varejo está razoável ou muito razoável. Já 79% dos consumidores disseram que estão dispostos a pagar mais, para ter a garantia de que os produtos lácteos são mesmo de origem canadense. Eles não acreditam que o livre comércio faria alguma diferença no preço do leite no varejo;
- Os consumidores canadenses acreditam que o Canadá deve se utilizar de tarifas para proteger a sua indústria de lácteos contra a concorrência estrangeira. Quatro de cada 5 canadenses acham que o Canadá deve manter as tarifas nas importações de lácteos a fim de proteger a indústria de lácteos local."
Convém notar que, apesar deste "protecionismo" ao produtor local, o sistema exige alta qualidade do leite e estabilidade na entrega, além do fato dos preços estipulados ceifarem os 30% menos eficientes, o que tem contribuído para a redução do número de produtores e aumento da eficiência de produção: segundo a matéria da Balde Branco, há 30 anos o Canadá possuía 220.000 produtores, 10 vezes o número atual. Isto quer dizer que, mesmo com um sistema regulado, estimou-se a eficiência na produção.
O Canadá definitivamente não é país que apresenta as melhores condições climáticas para se produzir leite. O inverno rigoroso talha a produção agrícola e agrega custos adicionais em função da necessidade absoluta de confinar os animais. Mesmo assim, em função da organização de sua cadeia produtiva e dos demais segmentos atuantes no setor, consegue viabilizar a produção sob condições justas.
O que está de fato na raiz do sistema canadense ? O reconhecimento da sociedade que, por mais eficiente que seja a produção primária, será cada vez mais difícil garantir a sobrevivência ao produtor em um ambiente comercial cada vez mais dominado por grandes empresas, seja na captação de leite como no varejo. Neste ambiente, denúncias de cartelização e pressões de determinados segmentos em relação a política de preços na captação serão cada vez mais freqüentes. A alegria do produtor tende a durar pouco, sendo testemunha a entressafra deste ano, com quedas bruscas de preços sem razão aparente.
Porém, para que isto seja realidade, é preciso antes de tudo organizar a cadeia produtiva e procurar conscientizar a sociedade da importância de se implantar um sistema que preserve o produtor rural, sem, é claro, estimular a ineficiência. O combate às importações e à informalidade e a nova legislação para produção de leite são apenas o início. Se, futuramente, não houver uma maneira de regular a produção ou balizar o preço pago, há o risco do produtor ficar à mercê do mercado, que raramente lhe favorece. Isto é voltar para trás ? Pode em tese ser, mas na atual disposição de forças no mercado de leite, tenho dificuldades de entender como o livre-mercado poderá, no longo prazo, favorecer o produtor (no exato momento em que escrevo este artigo, passa um carro de som anunciando longa vida a R$ 0,58/litro).
O Canadá mostrou que é possível regular a produção e organizar a cadeia de modo a propiciar uma vida decente a quem produz a matéria-prima, certamente o elo mais fraco do segmento, ao mesmo tempo estimulando a eficiência e a qualidade. É evidente que a realidade do país é outra, os problemas são outros.