Mesmo neste mundo de consumo globalizado o supermercado revela nuanças de uma sociedade. Revela, por exemplo, a relação de preços vigentes no país, ou seja, o que é caro e o que é barato; revela as suas preferências e sua forma de organização. Num supermercado irlandês, eu fiquei desnorteado quando tive que passar umas comprinhas pelo caixa, que era uma máquina. Nada de gente para registrar e embalar suas compras. Lá, gente é caro!
As páginas amarelas revelam o lado econômico do lugar e as relações sociais que daí derivam. O economista Karl Marx disse que a forma de pensar e agir de uma sociedade é ditada por o que produz e como essa sociedade organiza a produção. Portanto, não é necessário conhecer Uberaba e Juiz de Fora, por exemplo, para concluir que são sociedades completamente diferentes. Basta folhear as páginas amarelas das duas cidades. Já o jornal desnuda uma sociedade por inteiro. Em dez minutos é possível saber o que pulsa naquela cidade ou país, os seus valores e suas crenças. É claro que os jornais argentinos “El Clarin” e o “La Nación”, por exemplo, têm de ser passionais como seu povo, não é mesmo!...
Em 2009, comprei nos EUA um livro em tamanho natural de jornal, que reproduz as primeiras páginas do jornal “The New York Times”, de 1851 a 2008. Vejo-o como uma bela maneira de passear pela história mundial contemporânea. No Brasil, o que se assemelha é o livro Primeira Página, do jornal “Folha de São Paulo”, que conta a história do Brasil a partir de 1921. Pois, este jornal colocou na internet a edição completa diária, desde sua fundação.
Então, eu resolvi consultar a edição do dia em que foi decretado o Plano Cruzado. Em fevereiro de 1986 a inflação tinha chegado a 14,4% ao mês e a 255% ao ano. Nessa época, o preço recebido pelos produtores era tabelado pelo Governo. Para os produtores de leite, aquele 28 de fevereiro de 1986 ficou marcado na história, pois haveria um reajuste de 100% no preço recebido pelo produtor, que entraria em vigor no dia 1º. de março. Mas, o governo decretou o congelamento de todos preços da economia no dia anterior, frustrando o anunciado. Portanto, a imensa expectativa dos produtores se transformou em total indignação.
Nesse ano de 1986 o jornal “Folha de São Paulo” criou o Agrofolha – um suplemento semanal voltado para o agronegócio, palavra que, diga-se de passagem, somente iria surgir no Brasil onze anos depois, em 1997. Então, vamos usar o termo da época e dizer que o suplemento tratava de “assuntos agrícolas”... Naquele tempo, eu escrevia artigo mensal sobre o setor leiteiro para o Suplemento Agrícola do jornal “O Estado de São Paulo” e, jovem, com 24 anos, não tive o cuidado de guardar nenhuma cópia para a posteridade, o que lamento. Eu não me lembrava de ter escrito para a “Folha de São Paulo” mas, quem sabe eu não descobriria um texto de minha autoria escrito há 25 anos, hem?! O que será que eu pensava nessa época? Então, me motivei a percorrer as edições do Agrofolha até meados de 1987 e localizei um artigo de minha autoria, que descreve a situação do setor naquele momento e está disponível em https://acervo.folha.com.br/fsp/1987/5/5/74.
Mas, neste levantamento eu fiquei sabendo que, em 1986, o Dr. Fábio Meirelles havia sido eleito pela quinta vez consecutiva presidente da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo, para mais um mandato de três anos. Como ele ainda exerce este cargo atualmente, sou levado a afirmar que é a liderança do agronegócio brasileiro em exercício que mais tempo tem de atividade...
O fato é que esta pesquisa bibliográfica me permitiu muito mais do que satisfazer curiosidade. Na verdade, me permitiu recuperar o que era o Brasil agrícola, há 25 anos! De lá para cá o que será que mudou, o que será que permaneceu idêntico em um quarto de século? O primeiro tópico que me chamou a atenção foram os assuntos tratados. Rã, amora, chinchila, faisão, pêra e rami, cada uma dessas atividades apareceram em várias reportagens, como opções muito interessantes para se ganhar dinheiro. Há reportagens assegurando retorno de 70% sobre o capital investido. Quantos não devem ter perdido dinheiro nestas atividades, não?
Há reportagens mostrando que a Raça Caracu estava suplantando a Raça Nelore... Quantos apostaram naquela Raça em função do que leram? Também era muito recomendado fazer cursos técnicos sobre produção de leite em Israel, um país que, todos nós sabemos, nada tem a ver com as nossas condições sociais, políticas, econômicas e ambientais, não é mesmo? Pois, nas minhas entradas pelo sertão e agreste brasileiros, que são regiões que mais se assemelham ao meio ambiente de Israel, nunca vi o resultado desse dinheiro que nós brasileiros gastamos ao custear treinamentos realizados nesse longínquo e exótico país. Voltando ao Agrofolha, sobre soja, milho e até mesmo café, pouco foi falado. O que ocupou nobre espaço foi a criação de cavalo! Não havia uma edição em que esta atividade não viesse com destaque...
Enfim, essa curiosa pesquisa revelou que naquele período o Brasil tateava por um universo mais que desconhecido. Era um universo inexistente, que ainda seria construído nos anos subseqüentes. Quando se falou em Embrapa, foi para noticiar o início de alguma pesquisa. E, faz sentido. Nos meados da década de oitenta a Embrapa recebeu um grande contingente de jovens técnicos que tinham sido muitíssimo bem treinados no exterior e começariam a fazer seus primeiros experimentos, visando verificar se os resultados obtidos lá fora, em outros países, se confirmariam no ambiente sócio-ambiental brasileiro. Portanto, naquele ano de 1986, era baixo o nosso estoque de conhecimento e de tecnologia. Era escassa a informação técnica de qualidade e muito menos a sua disseminação. Ah, encontrei um texto de página inteira com o título “como enfrentar um formigueiro”... Por aí dá para ter noção do nível de informação que era disseminada. Mas, vale registrar, já se falava em capim elefante, brachiaria e seleção genética de rebanhos voltada para leite, por exemplo, ainda que de modo tímido.
Em 1º. de janeiro de 1987 o governo concedeu um aumento de 51,5% nos preços tabelados para o leite, e não os 100% que os produtores esperavam desde fevereiro do ano anterior. Em valores corrigidos para hoje, por meio do IGP/DI da FGV, o produtor passou a receber R$ 2,03 por litro de leite. Lembre-se que era preço de leite quente, no latão, sem refrigeração. Já o consumidor passou a pagar R$ 3,02 pelo litro de leite em embalagens “barriga mole”. Inacreditável, não? Esses valores não foram alcançados nem naquela alta de preços de 2007. Mas, os produtores não gostaram. Eles esperavam pelo menos que o preço ao produtor fosse para R$ 2,60 e o preço ao consumidor para R$ 4,00. As lideranças do setor espernearam e anunciaram a falência do setor ainda em dezembro, antes de entrar em vigor o aumento. Disseram que era impossível conviver com estes preços tão baixos, que o produtor teria de abandonar a atividade e o Brasil aumentaria sua dependência externa...
Mudando a prosa para continuar na mesma conversa, me surpreendi com o custo da mão-de-obra neste período. Medido em litros de leite e a preços recebidos pelo produtor, em dezembro de 1986 um diarista custava 10,2 litros por dia trabalhado. Um trabalhador que residisse na propriedade recebia o equivalente a 259 litros por mês e um administrador de fazenda (capataz) tinha um salário equivalente a 366 litros ao mês... Esta era a relação de preços de mão-de-obra em relação ao leite, há 25 anos. Faça as suas contas. Por esses salários, hoje você consegue contratar alguém aí na sua região?
Veja, você! Somente em 1987 surgiu a pergunta básica: quanto custa produzir leite? É claro que esta pergunta não teve resposta, pois dados confiáveis não havia. O que havia eram dados de uma ou outra fazenda e dados de estação experimental. Portanto, nada representativo, que permitisse fazer afirmações seguras sobre o custo de produção. Qualquer inferência que dali saísse não tinha nenhuma consistência técnica. Mas, é bom lembrar, os preços eram tabelados. Então, que critérios eram usados para se definir os preços praticados? Como eram feitos os reajustes? Um dia desses vamos conversar mais sobre isso...
Em síntese, há 25 anos o produtor de leite quase nada tinha de informações técnicas disponíveis e nem havia sido despertado para a necessidade de dominar informações econômicas e gerenciais. O tabelamento de preços prejudicava o comportamento do setor, ora com subsídios, ora com represamento de preços. Era um mundo de preços controlados e artificiais, em que a ineficiência de produtor e da indústria era premiada e involuntariamente estimulada pela política do Governo. Num ambiente desses, difícil é obter maturidade setorial. Mas, mudanças ocorreram e hoje estamos em outro patamar. Uma longa caminhada, que teremos oportunidade discutir a partir de agora, neste espaço.
Estou muito feliz por estar de volta ao MilkPoint. Estou em uma nova fase da vida, pessoal e profissionalmente. E o MilkPoint, eu sinto, também está. Neste intervalo de tempo em que estive afastado, nos recriamos, nos remoçamos, e descobrimos que tinha chegado a hora de estarmos juntos novamente, embora nunca tenhamos estado separados, de verdade.
Ocupar este espaço significa a oportunidade me interagir com você e aprender com as suas sugestões e críticas. Nos próximos meses vamos tratar de muitos assuntos, de modo mais intenso do que tratei nesta reestréia. Sempre assuntos atuais. Vamos conversar sobre esse “mundo, mundo, vasto mundo”, que é o mundo do leite. E vamos agir assim, pois, parodiando o poeta Carlos Drumond de Andrade, mais vasto do que este mundo lácteo é o seu e o meu coração...