Em uma das primeiras cenas do filme recém-lançado da Barbie, nós nos deparamos com uma caixinha de leite de vaca e a própria Barbie em questão, interpretada pela atriz Margot Robbie, tomando esse leite. Minha primeira reação foi de apreensão, como se a qualquer cena isso pudesse ser visto como algo negativo. Afinal, lidamos com ataques diários. Mas logo depois entendi que isso se deve por vários motivos, e, na minha opinião, todos excelentes, não havendo nada que possa causar qualquer temor.
O primeiro e mais óbvio é que o filme resgata um passado. A boneca Barbie surgiu em 1959, atingindo seu recorde de vendas na década de 901 (sem contar o resultado atual com o lançamento do filme), durante esse período, as opções ao redor do brinquedo começaram a se expandir, a Barbie conquistou carro, casa, avião. Numa releitura de décadas passadas, portanto, faz todo sentido que o leite consumido seja o tradicional e clássico leite de vaca.
Mas, assim como o próprio filme possui suas inúmeras camadas, – inclusive, se você tem a impressão de que ele é um filme infantil, está totalmente enganado e recomendo fortemente que seja assistido por todos – essa cena também pode ser interpretada com olhares mais profundos. Veja bem, como ressalva importante, a Barbie, sendo um brinquedo fruto do consumismo americano, é o oposto do que podemos considerar “básico” ou “simples”, mas o contexto que o filme resgata traz essa perspectiva de uma volta para um passado, numa interpretação mais ampla.
Nesse sentido, é abordado o conceito back to basics (numa tradução livre: de volta ao básico), permeado por todo o contexto trazido pelo filme ao retratar um brinquedo que fez parte de forma muito significativa da infância dos que cresceram nas décadas de 80, 90 e começo dos anos 2000. Assim como, inegavelmente, o consumo do leite de vaca.
Não é de se espantar que, nos anos 2010, com o crescimento de discussões acerca de diversas correntes feministas, questionamentos relevantes sobre padrões de estética e evolução do senso crítico a respeito da sociedade patriarcal, a Barbie tenha sofrido duras críticas e foi necessária uma grande transformação para que o brinquedo se atualizasse e pudesse seguir fazendo sentido no mundo em que vivemos hoje, para as crianças das novas gerações. Não acho que isso está muito distante do que o leite, e vários outros alimentos (como o ovo e a carne, por exemplo) passaram nas últimas décadas. Adaptar-se é viver, e isso a Barbie, o leite e todos nós precisamos fazê-lo.
Por volta de dois anos atrás, começou a surgir um movimento nas redes sociais que ficou intitulado como “hot girls are drinking cow´s milk again”2 (numa tradução livre: garotas bonitas estão bebendo leite de vaca novamente). Num artigo para a New York Magazine, o blog Grub Street trouxe a percepção de que muitas pessoas estavam deixando de consumir as bebidas vegetais para retornar ao leite de vaca. O artigo ressalta a beleza da simplicidade de poder beber esse alimento natural e sentir o prazer de um café com leite de verdade. Uma ode a uma vida que é básica no sentido que algumas coisas podem ser fáceis e agradáveis.
Quando, passado meu temor inicial de ver a Margot Robbie num filme extremamente divulgado e permeado de críticas altamente relevantes, segurando uma embalagem com os dizeres “cow milk” (leite de vaca) em letras grandes para todos verem, eu me dei conta que tínhamos percorrido um bom caminho. Eu percebi que o leite de vaca pode, sim, trazer o conceito back to basics com a maestria e a propriedade de um produto que foi marcante para inúmeras gerações. Mas, mais ainda, de um alimento que continua trilhando seu caminho para as próximas, buscando as formas de se adaptar à evolução necessária que o mundo pede.
Por isso, vejo com excelentes olhos que o leite de vaca estava ali, tão presente na cena de um filme que tem sua grande importância para esse momento em que vivemos. O equilíbrio que estamos buscando entre o passado e o que queremos de fato trazer de relevante dele pede uma constante necessidade de reflexão. Afinal, não é que esses anos estão distantes em termos de tempo, mas muitas vezes se mostram extremamente distantes no campo das ideias. Reavaliar nossas relações com esse passado e com as experiências que tivemos é a melhor forma de evoluir para o que o futuro demanda.
O conceito back to basics, na minha visão, traz muito dessa tentativa de equilíbrio. Não precisamos descartar tudo o que foi criado lá atrás por ideias retrógradas, mas também não precisamos aceitar tudo com uma nostalgia cega de que antigamente era melhor. Greta Gerwig, diretora do filme da Barbie, fez isso de uma forma, na falta de qualquer outra palavra melhor, genial – e que bom que ela deu essa visibilidade para o leite, permitindo essa interpretação a respeito da similaridade de conceitos entre as relações que permeiam a Barbie e o leite ao longo da história.
A retratação histórica é uma atitude essencial para continuarmos caminhando. O filme da Barbie é permeado pela sensação de nostalgia de um brinquedo tão parte das nossas infâncias, mas ele não mede esforços na autocrítica e não tem receio de apontar dedos, trazendo um discurso ágil e muito voltado para as novas gerações. Que o leite, o agro e todos nós tiremos excelentes lições dessa aparição e dos desafios que as novas gerações nos impõem com o direito de buscar construir um mundo melhor.
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1 DELATTO, Marisa. Império da Barbie: como uma bonce de US$3 virou um negócio multibilionário. Forbes, 2023. Disponível em: https://forbes.com.br/forbeslife/2023/07/imperio-da-barbie-como-uma- boneca-de-3-dolares-virou-um-negocio-multibilionario/, último acesso: 29/07/2023.
2 SUNDBERG, Emily. Whole milk mounts its triumphant comeback. Grub Street, 2021. Disponível em: https://www.grubstreet.com/2021/08/whole-milk-is-back.html utm_source=tw&utm_medium=s1&utm_campaign=nym, último acesso: 25/07/2023
Fonte da imagem: arquivo MilkPoint - cena do Filme Barbie, 2023