Não obstante o notável desenvolvimento e a visibilidade da fruticultura irrigada para exportação, o território semi-árido nordestino sempre esteve associado à atividade pastoril, suporte de sua conquista desde os primórdios da colonização e que se constitui, ainda hoje, em atividade economicamente predominante e culturalmente determinante da sua identidade sertaneja. Assim é que nele se encontram a quase totalidade do rebanho caprino brasileiro e as principais bacias leiteiras do NE, cuja produção, predominantemente oriunda de pequenas explorações de base familiar, se reveste de inquestionável relevância socioeconômica. De fato, nenhuma outra atividade assegura os benefícios aportados pela atividade leiteira em uma pequena propriedade - fluxo-de-caixa semanal, menores riscos e alta liquidez do capital imobilizado em animais - sobretudo no semi-árido, onde poucas opções de reconversão econômica são viáveis, face à sua inconsistência climática.
Malgrado os riscos climáticos, sempre presentes e por demais conhecidos, que restringem a sustentabilidade da agricultura dependente de chuvas, e sem considerar a disponibilidade mais barata dos fatores básicos de produção (terra e mão-de-obra de reconhecido valor), existem ainda outras consideráveis vantagens comparativas no ambiente semi-árido para a produção animal em geral e para a bovinocultura leiteira em particular:
- clima seco, com baixa umidade relativa do ar, favorável à sanidade animal e vegetal, com custos reduzidos para sua manutenção;
- a baixa umidade relativa do ar favorece, ainda, o resfriamento evaporativo, melhorando as condições de conforto térmico para a vaca leiteira, com repercussões no seu desempenho produtivo e reprodutivo;
- solos de média a alta fertilidade natural que, se adequadamente manejados, requerem pequeno aporte de fertilizantes, além de permitirem a oferta de forragens de boa qualidade na estação chuvosa que, sendo conservadas, diminuem a necessidade de aquisição de quantidades elevadas de rações concentradas;
- ainda, por conta do ambiente seco, maior durabilidade das construções rurais, com menores custos de depreciação e manutenção.
- infra-estrutura agrossilvipastoril assentada em espécies nativas e adaptadas ao ambiente semi-árido;
- diversidade temporal e espacial dos subsistemas cultivados;
- uso de animais rústicos, geneticamente compatíveis com o ambiente;
- manejo que assegura o bem-estar animal;
- práticas de conservação de forragem: ensilagem e fenação;
- reciclagem de resíduos vegetais p/animais e de resíduos animais p/cultivos;
- métodos preventivos e uso de produtos e processos naturais nos controles fito e zoosanitário;
- recomposição da biodiversidade, com ênfase no componente arbóreo em reflorestamentos, arborização de pastagens, cultivos em alamedas, cercas vivas forrageiras e outros sistemas agroflorestais.
Neste contexto, sem escala de produção e sem condições de assalariamento, premido pela necessidade de maior produtividade para fazer face à progressiva fragmentação fundiária, recorrem às tecnologias "modernas", copiando modelos importados de regiões mais favorecidas. Abandonam o uso da tração animal, que limitava a área de solo movimentada a cada ano, e que impunha certa rotação de terras, pela tratorização terceirizada com grades aradoras, aumentando excessivamente a movimentação do/e sobre o solo: em geral rasos e com baixos teores de matéria orgânica. Esse processo não só permitiu expressivo aumento da área plantada com o milho - possibilitado também pelo desenvolvimento de cultivares de ciclo curto - como trouxe o uso descontrolado de herbicidas de alto poder residual (Picloram+ 2,4 D). Somada a isso, a fragilização dos rebanhos, resultante da utilização de animais com alta mestiçagem da raça holandesa, implicando no uso desregrado de pesticidas e antibióticos, tem levado a sinais já perceptíveis de degradação ambiental e de contaminação alimentar que, ao lado de outras ameaças, configuram um quadro de comprometimento da sustentabilidade da cadeia produtiva do leite, conforme ilustrado na figura 1 para o sertão sergipano, que se repete em outras regiões semi-áridas nordestinas.
Este paradigma produtivista, em busca da produtividade a qualquer custo, gerando elevado passivo sócio-econômico e ambiental, em um processo de intensificação injustificado - o NE possui a maior população rural do país e baixos preços de terra - possivelmente acontece por orientação técnica equivocada, e/ou por pura imitação de regiões mais favorecidas, que por sua vez o imitam de paises desenvolvidos, onde pequeno número de produtores precisa produzir de forma intensiva, porém subsidiada. Se terra e mão-de-obra não são os fatores de produção mais escassos, porque perseguir altos níveis de produtividade por hectare, ao invés da produtividade por capital investido ou por milímetros de chuva, que são os fatores de produção mais limitantes no semi-árido nordestino? Portanto o não alcance dos índices de produtividade obtidos em regiões favorecidas, sempre citados como padrões a serem atingidos, não deveria ser razão para qualquer tipo de percepção de inferioridade entre nordestinos. Quando ajustadas as produtividades elevadas de leite/ha do centro sul (sem irrigação) por milímetros de chuva, por exemplo, verifica-se que não se é tão ineficiente quanto se pensa. O que deveria contar é o custo de produção de leite e sua melhor qualidade, para inserção competitiva no mercado.
De outro lado, tangenciada na discussão da qualidade do leite, há o lado obscuro da contaminação causada pela aplicação indiscriminada de pesticidas usados na pecuária leiteira - ecto e endoticidas cada vez mais freqüentes e menos eficientes, por conta da progressiva resistência aos princípios ativos utilizados. A normativa 51 toca muito de passagem neste tema, não o regulamentando da maneira que o faz quanto à qualidade bacteriológica, à CCS e aos resíduos de antibióticos, "coincidentemente" relacionados com perdas industriais. Pouco tem sido feito para se conhecer esse lado da questão, certamente porque laboratórios e esses tipos de análises toxicológicas custam muito caro, inviabilizando pesquisas nesta área, porém mais provavelmente pelo desinteresse de todos os agentes da cadeia produtiva em um problema que ainda não lhe causa perdas econômicas. Como o consumidor médio brasileiro tem uma percepção ingênua da qualidade dos lácteos, parece óbvio que nada será feito nessa direção salvo se as perspectivas de exportação, principalmente para a União Européia, despertem, a exemplo da carne, para a implementação do programa de controle de resíduos e revelem a gravidade do problema, que certamente não será fácil resolver, tamanha a dependência desses insumos em nossa agropecuária: aliás, um mercado bastante atraente, quarto maior no mundo em agrotóxicos, com um movimento de quase US $ 1,5 bilhão ao ano.
Assim, enquanto a lógica "modernizante" da cadeia produtiva do leite ameaça excluir, de forma crescente, uma parcela incomensurável de produtores do setor formal, a produção ambientalmente mais amigável e mais "limpa", com certificação de origem, demandada por mercados mais exigentes, surge como oportunidade, sobretudo para a produção familiar e particularmente no semi-árido, onde seria possível, com seu clima seco e outras vantagens comparativas, produzir leite e derivados com alto valor agregado.