O queijo é um dos alimentos mais antigos da humanidade. Há relatos associando sua descoberta à época do início da domesticação dos animais (8.000 anos a.C.). Originalmente, a fabricação de queijo era vista como uma possibilidade de prolongar a vida de prateleira do leite. No entanto, com o passar do tempo, o status da produção de queijo mudou em função da crescente demanda pelos diversos tipos de queijos que foram surgindo.
Atualmente, o queijo é considerado um alimento nutritivo bastante apreciado por muitas pessoas em todo o mundo. A grande variedade de queijos que encontramos hoje no mercado decorre dos inúmeros fatores geográficos, climáticos, culturais e econômicos que foram capazes de moldar as características únicas de cada queijo ao longo dos anos. Nesse sentido, os microrganismos desempenharam um papel fundamental nos processos de fabricação e de diversificação dos queijos.
O primeiro relato de microrganismos em queijos foi descrito em 1665 por Robert Hooke em seu livro “Micrographia”. Hooke foi um cientista experimental que contribuiu com grandes feitos para a ciência, dentre os quais estão a descoberta da célula e a criação do microscópio composto.
Em suas observações, Hooke descreveu a presença de um tipo de estrutura azul e branca na forma de manchas felpudas, que podiam ser encontradas em diversos tipos de matérias orgânicas em decomposição, inclusive em queijos.
Sem saber, Hooke forneceu a primeira descrição de um fungo filamentoso em queijo, que mais tarde os microbiologistas identificariam como Mucor. Além das descobertas de Hooke, como os microrganismos influenciaram na trajetória dos queijos? Esse artigo contará brevemente a relação entre os microrganismos e a história dos queijos.
A história dos queijos e dos microrganismos
Inicialmente, pouco se sabia sobre o papel dos microrganismos na produção de queijo, sendo que a multiplicação microbiana era realizada sem nenhum controle e de forma artesanal. A produção de queijos era um processo artesanal, simples e intuitivo, que se baseava principalmente na observação e na experimentação.
No entanto, no século XIX, os cientistas começaram a reconhecer e a entender a importância das bactérias na produção de queijos. Louis Pasteur, por exemplo, descobriu que o aquecimento do leite a altas temperaturas inativava bactérias patogênicas (causadoras de doenças) e reduzia a carga de bactérias deterioradoras e produtoras de ácidos, tornando possível a produção de queijos mais seguros e estáveis.
Originalmente, o processo de pasteurização introduzido por Pasteur objetivava evitar a deterioração de vinhos, porém esse processo térmico foi adaptado para o leite fluido com o objetivo de eliminar bactérias patogênicas.
Assim, a pasteurização foi uma forte aliada para proteger a saúde da população que consumia leite, pois no início dos anos 1900, o leite cru era um dos principais alimentos que veiculava doenças, incluindo tuberculose e escarlatina.
Equipamentos industriais para a pasteurização já estavam disponíveis desde 1895 e a pasteurização do leite foi implementada por razões de segurança e para garantir a padronização e qualidade dos produtos lácteos.
Algumas pesquisas dessa época relatam que os queijos produzidos com leite pasteurizado apresentavam características superiores aos queijos produzidos com leite cru. Vantagens como melhor sabor, maior rendimento, uniformidade e vida útil prolongada que facilitava o deslocamento e comercialização desses produtos foram descritas nesses estudos.
A trajetória histórica dos queijos foi influenciada por fatores geográficos, climáticos, históricos e culturais concentrados na região de origem de cada tipo desse alimento. Além disso, a seleção de microrganismos, como bactérias, leveduras e fungos, naturalmente presentes no leite ou no ambiente de fabricação do queijo, foi determinante para a identidade de cada queijo.
Isso significa dizer que as características sensoriais e microbiológicas dos queijos são o reflexo das tradições culturais e aspectos geográficos específicos de uma região ou de um povo. Esse fato pode ser comprovado quando observamos diversos queijos conhecidos mundialmente, como os queijos Alpinos e os queijos da Serra da Canastra e da região do Serro (MG), por exemplo, os quais apresentam características muito próprias e específicas.
Os queijos Alpinos compreendem uma família única de queijos que compartilham tecnologias de fabricação e composição química semelhantes. Os queijos Appenzeller, Comté, Emmental e Gruyère estão entre as variedades mais conhecidas de queijos Alpinos.
A atividade queijeira nos Alpes foi aperfeiçoada e moldada pelas características geográficas regionais. Devido aos invernos rigorosos alpinos e à localização isolada nas montanhas, surgiu a demanda de armazenar alimentos que não se deteriorassem facilmente.
Assim, os agricultores precisavam transformar o leite em queijos devido às condições geográficas da região, as quais demandavam produtos mais resistentes e com maior vida de prateleira que o leite fluido para suportar o transporte pelas montanhas.
Diante desse cenário, eles desenvolveram queijos duros, elásticos e duráveis, com baixo teor de umidade. Devido às condições ambientais da região, o processo de acidificação era lento e tardio, o que facilitava o alto teor de minerais e pH alto, produzindo um queijo adocicado. Além disso, o sal era escasso e usado com moderação.
Assim, um meio com baixa concentração de sal e com pH relativamente alto foi favorável para a seleção da bactéria Propionibacterium freudenreichii subsp. shermanii, responsável pelo desenvolvimento de olhaduras e pela produção de compostos que conferem sabor doce e de nozes. Portanto, as bactérias do ácido propiônico são importantes representantes da comunidade microbiológica dos queijos Alpinos.
Com o passar dos anos, a importância dos microrganismos na fabricação dos diferentes queijos foi ficando cada vez mais evidente e, assim, os estudos sobre a relação entre esses seres e a produção de queijos se intensificaram.
O surgimento das culturas starters
No início do século XX, os cientistas começaram a estudar os microrganismos envolvidos na produção de queijos com mais detalhes. Eles identificaram várias cepas de bactérias que eram particularmente eficazes na produção de queijos, proporcionando sabores e texturas distintos ao produto.
Essas cepas foram isoladas, cultivadas em laboratório e comercializadas como culturas iniciadoras ou culturas starters. Portanto, as culturas starters comerciais são microrganismos vivos, geralmente bactérias e/ou fungos, que podem ser adicionados diretamente ao leite durante o processo de fabricação de queijos.
As culturas starters foram inicialmente produzidas como um produto líquido, que era adicionado diretamente ao leite durante a produção do queijo. No entanto, esse processo tinha algumas desvantagens, como a dificuldade de armazenamento e transporte dessas culturas, bem como a dificuldade de manter sua qualidade ao longo do tempo.
Foi então que a técnica de liofilização foi utilizada, permitindo a produção de culturas starters em pó. Nesse outro processo, as culturas são congeladas e, em seguida, submetidas ao vácuo, o que remove a água e transforma os microrganismos em um pó seco e estável. Essas culturas liofilizadas podem ser armazenadas por longos períodos de tempo e são fáceis de transportar e usar.
O uso de culturas starters na produção industrial de queijo
Atualmente, a maior parte dos queijos produzidos no mundo é fabricada em escala industrial e a adição dos microrganismos na produção se tornou uma atividade bastante controlada e previsível. Essa mudança no cenário de ascensão do uso dos microrganismos nos queijos foi possível devido ao uso das culturas starters.
Essas culturas ajudam a fermentar a lactose (açúcar natural do leite) transformando-a em ácido láctico e outros compostos responsáveis pelo desenvolvimento das características sensoriais do queijo, como sabor, odor e textura. Hoje em dia, existem diversos tipos de culturas starters disponíveis no mercado, cada uma com suas próprias propriedades e efeitos sobre o queijo.
Dessa forma, a fabricação de queijos de forma industrial foi aperfeiçoada com a utilização dessas culturas com características específicas e condições de produção e de maturação extremamente controladas, permitindo obter produtos mais padronizados. Entretanto, nos últimos anos, temos observado um movimento acelerado do interesse dos consumidores por queijos artesanais, proporcionando o fortalecimento desse segmento em todo o mundo.
Os microrganismos nos queijos artesanais: utilização do “pingo”
Há muitos anos, a produção artesanal de queijo foi substituída pelo direcionamento da produção leiteira para indústrias de laticínios para a elaboração de queijos e outros produtos lácteos em larga escala. No entanto, nos últimos anos, temos observado o ressurgimento e intensificação do interesse e da produção artesanal de queijos no Brasil e no mundo.
Os produtores de leite estão retornando para essa atividade com o objetivo de aumentar e diversificar a renda agrícola familiar.
Os queijos artesanais são definidos como queijos produzidos em pequena escala por produtores independentes e com emprego de técnicas tradicionais que resistiram ao tempo. Embora seja possível identificar mais de 1000 variedades de queijos artesanais no mundo, a maior parte desses queijos pertence a uma das 20 classes de queijo que compartilham aspectos semelhantes de fabricação e de composição.
Essa grande variedade de queijos está diretamente associada à ação das populações diversificadas de bactérias, leveduras e fungos presentes em cada região onde o queijo é produzido. Dentre os fungos e leveduras naturalmente presentes no queijo maturado destacam se os gêneros: Geotrichum, Cladosporium, Penicillium, Candida, Debaryomyces, Kodamaea, Kluyveromyces, Pichia, Trichosporon, Torulaspora e Yarrowia.
Figura 1. Queijo Minas Artesanal produzido com leite cru, com a presença de microrganismos nativos.
Fonte: autores.
As formulações tradicionais de queijos artesanais estão sendo adaptadas para o cenário atual para atender aos padrões regulatórios vigentes. Dessa forma, a segurança microbiológica é um assunto em ascensão à medida que a demanda global por esses queijos cresce.
A preocupação está principalmente no fato desses queijos serem produzidos a partir de leite cru, ou seja, a matéria-prima não é submetida a nenhum tratamento térmico, como a pasteurização. Enquanto alguns países ao redor do mundo consideram os queijos tradicionais produzidos com leite cru como produtos seguros do ponto de vista microbiológico, outros países exigem que o leite seja tratado termicamente (pasteurização) para assegurar a segurança e qualidade desse alimento.
Diversas queijarias artesanais do Brasil voltaram a utilizar leite cru na fabricação de queijo e controlam sua produção para selecionar e induzir o desenvolvimento de microrganismos desejáveis. As tecnologias de fabricação de queijos artesanais desempenham um papel essencial na seleção das cepas e o leite cru atua como uma reserva essencial da comunidade microbiológica. Para isso, a maioria da produção desses queijos utiliza uma cultura natural endógena conhecida como “pingo”.
O pingo corresponde ao soro coletado de queijos de produções anteriores, sendo composto, principalmente, por água, lactose, sais minerais e microrganismos, incluindo Lactococcus lactis e Streptococcus thermophilus.
O pingo é utilizado em queijos artesanais como um agente fermentador natural que ajuda a coagular o leite e a desenvolver o sabor, textura e aroma característicos de um queijo artesanal, tornando cada queijo único e distinto.
Portanto, a diversidade microbiológica presente naturalmente no leite cru é responsável por diversas características sensoriais desenvolvidas no queijo. Além disso, a população microbiana presente no microambiente onde o queijo é fabricado também exerce efeitos no produto final. A somatória desses fatores individuais de cada região compõe o que chamamos de terroir.
O termo terroir refere-se ao ambiente em que um produto agrícola é cultivado ou produzido, incluindo fatores como solo, clima, topografia, flora e fauna locais, bem como práticas agrícolas e de produção tradicionais. Esses fatores podem afetar o sabor, aroma e qualidade do produto.
No caso dos queijos artesanais, o pingo pode conter microrganismos que são exclusivos do terroir em que o queijo é produzido, ou seja, das condições ambientais, microbiológicas e culturais de uma região específica.
No século XXI, a demanda global por queijos artesanais está criando novas oportunidades econômicas. Os consumidores estão interessados em produtos diferenciados, com apelo regional e terroir. Essa demanda criou novas preocupações com a segurança alimentar e com o comércio internacional. Desde então, diversos programas de proteção para produtos agrícolas e gêneros alimentícios artesanais estão sendo implementados, inclusive para queijos.
As queijarias europeias protegem seu modo de fazer queijo artesanal por meio de programas como a Denominação de Origem Protegida (DOP) e Apelação de Origem Controlada (AOC). Esses programas estabelecem regulamentos e certificações para os produtos de reputação reconhecida, fabricados em uma região definida e com o emprego de técnicas tradicionais, a fim de diminuir fraudes e aumentar a segurança alimentar.
O queijo Camembert de Normandie é um exemplo de produto AOC; esse queijo é produzido com leite cru não filtrado de vacas alimentadas sob condições estritas na região de Normandia e apresenta características únicas.
Referências
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