De acordo com os dados oficiais do IBGE, o Brasil produziu em 2014 cerca de 35,17 bilhões de litros de leite, dos quais 70,3% ou 24,75 bilhões, representam o mercado inspecionado. Por consequência, a produção informal chega a 10,43 bilhões de litros ao ano (também dados de 2014). Se analisarmos os efeitos da balança comercial na disponibilidade de leite por habitante, teremos:
Está é, evidentemente, uma conta simplificada, já que não considera estoques de passagem entre os anos. Todavia, analisando uma série mais ampla, a metodologia é confiável e aponta que nosso consumo atingiu algo próximo a 175 kg/pessoa no pico, em 2013.
Pois bem. O questionamento que se faz aqui é: até que ponto esse consumo de fato representa a realidade? Há consideráveis implicações de mercado caso, por exemplo, encontremos subsídios para apontar valores bem mais altos ou bem mais baixos do que este: caso os valores sejam mais altos, isso significa que estamos mais próximos do consumo de países de renda mais alta, apresentando potencial de mercado futuro, menor. Já o oposto, se os dados indicarem que, na realidade, nosso consumo é menor do que o apontado acima, teremos a situação inversa: o potencial de expansão do mercado será maior do que aquele hoje considerado.
Mas porque os dados oficiais não estariam corretos? O IBGE é uma instituição séria, referência em estatísticas para diversos setores da economia. Ocorre, porém, que a estimativa do setor informal de qualquer segmento é, por definição, sujeita a aproximações, uma vez que obviamente não há controle dessa atividade, seja pela via tributária, seja pela via da produção. E, como todos sabemos, temos um déficit de informações estatísticas que nos forçam a estimar os dados faltantes a partir de outras variáveis mais ou menos conhecidas.
Antes, é importante definirmos o que está embutido no leite informal. Sem dúvida, o leite “de canequinha”, bem como queijos informais, entram nessa conta. Mas não só eles: há o leite que permanece nas fazendas, seja na alimentação de bezerros, seja para consumo do produtor, sua família e funcionários. Assim, ao contrário do senso comum, o leite informal não é somente aquele que é vendido. Uma parte deles – a dos bezerros – não deveria entrar na conta do consumo. Mas acaba entrando.
Vamos inicialmente estimar o produto informal que vai para o mercado. A consultoria Canadean estimou, para 2013, um mercado de leite fluido informal da ordem de 1,25 bilhão de litros/ano. Esse valor, segundo a mesma empresa, caiu 44% entre 2004 e 2013. Consideremos, então, que em 2014 o mercado de leite fluido informal foi de 1,2 bilhão de litros, supondo que a queda anual desse segmento tenha permanecido para 2015.
Há, também, os queijos. Estimativas de profissionais ligados a esse mercado estimam que o mercado informal varia de 180 a 260 mil toneladas, dependendo do ano. Isso seria equivalente a cerca de 18 a 20% da produção total de queijos, o que nos parece crível. Ainda no campo das suposições do bom senso, consideremos que cerca de metade dessa produção seja de queijos tipo minas frescal, com consumo de 6 kg leite/kg de queijo, enquanto a outra metade seja de muçarela e afins, com 10 kg de rendimento. Fiquemos, então, com a média de 8 kg de leite para cada kg de queijo. Temos então que, considerando 220 mil toneladas de queijo sem fiscalização, multiplicadas por 8 litros de leite, encontraremos o total de 1,76 bilhão de litros de leite destinado a queijos informais.
Para fins de simplificação vamos considerar que, por ser provavelmente negligenciável, o valor de iogurtes informais seja zero, o mesmo para leites em pó (nesse caso de fato é zero).
Desta forma, chegamos ao valor final de 1,2 + 1,76 = 2,96 bilhões de litros de leite destinados à venda informal. Vejam que, dos 10 bilhões oficiais, apenas 3 bilhões são efetivamente vendidos. Um número bem mais baixo do que o apontado oficialmente, mas que faz sentido se considerarmos que o acesso a produtos sob inspeção tem se tornado cada vez mais frequente.
Resta saber, então, aonde estão os outros 7 bilhões que perfazem a estimativa oficial.
Nesse ponto, a análise fica um tanto mais complicada, mas ainda assim é possível de ser feita.
Comecemos com o leite que fica para consumo próprio. Inicialmente, consideraremos o número de produtores de leite que estimamos a partir de trabalho realizado em julho de 2013, junto com a Leite Brasil. Naquela ocasião, amostramos 33% do leite inspecionado, a partir de 55 laticínios, e chegamos ao número de 251.000 produtores de leite, com produção média de 244 kg/dia.
Vamos arredondar para 300.000 produtores no sistema formal, admitindo que nossa amostragem talvez tenha puxado um pouco para baixo. Assim, 300.000 produtores no sistema formal, com média de 204 kg/dia. Parece sensato, para a realidade atual, lembrando que o último Censo data de 2005/06, 10 anos atrás, portanto. Muita coisa ocorreu de lá para cá na economia brasileira, sendo pouco provável que continuemos com algo próximo aos 900.000 produtores que vendiam leite naquela época.
Vamos supor ainda que essa produção de 204 kg/dia é realizada por 1 família, em média, tomando 2 litros de leite por dia (na forma de queijo, leite, coalhada, etc), leite este que não vai ao mercado. Temos então 300.000 produtores x 2 litros x 365 dias = 219 milhões de litros, que são produzidos mas não vão ao mercado, compondo assim também o volume informal.
Com esse pequeno acréscimo, atingimos 3,18 bilhões de litros no mercado informal. Temos, ainda, o leite consumido por produtores informais. Aqui, temos um problema, porque a variável de partida para se calcular esse dado – a produção total informal – é justamente a variável que queremos calcular. Para efeito de simplificação, vamos considerar que temos ainda outros 300.000 produtores (incluindo aqueles que possuem uma vaquinha como lazer do sítio de final de semana), também consumindo 2 litros/dia. Teremos assim mais 219 milhões de litros, o que perfaz um total de 3,40 bilhões de litros vendidos ou consumidos nas fazendas.
Resta, por fim, contabilizar o leite dos bezerros, exceto aquele mamado diretamente da vaca que, para fins de produção, não existe, já que não pode ser ordenhado e, portanto, quantificado.
De início, quantifiquemos o número de vacas e de partos anuais. Supondo uma média de 7 kg vaca/dia, para produzirmos os 28,19 bilhões até agora calculados, precisaríamos de 11 milhões de vacas leiteiras. Supondo, digamos, 70% de vacas em lactação (baixa eficiência média), são 15,6 milhões de vacas no rebanho. Supondo ainda um intervalo entre partos de 16 meses (má reprodução), são 11,7 milhões de partos ao ano.
Dentro de nossas suposições, vamos considerar que 5% são natimortos – caímos então para 11,1 milhões de partos. Estão acompanhando? Vamos ainda admitir que 100% das fêmeas são criadas e que apenas 50% dos machos são criados, o que daria então um total de 8,36 milhões de bezerras(os) alimentados por ano.
Para tentar estimar o volume de leite consumido, vamos utilizar alguns dados do trabalho feito pela equipe da Profa. Carla Bittar, da ESALQ, que amostrou 179 produtores com variados perfis tecnológicos.
De acordo com este trabalho, 35% dos rebanhos mantêm os bezerros com as mães. Como esse leite não é quantificado, para efeitos estatísticos vamos desconsiderar essa produção. Assim, passamos a falar apenas de 65% dos rebanhos que, de fato, recebem leite ou sucedâneo. Como estes rebanhos provavelmente são maiores do que os que mantém os bezerros com a vaca, o correto seria ajustarmos para, por exemplo, 80-90% dos bezerros, já que estes rebanhos teriam mais bezerros. Por outro lado, como a amostragem foi pequena e talvez concentrada em um perfil tecnológico médio superior à média nacional, é provável que, na realidade, mais de 35% dos bezerros ficam com as vacas, consumindo um leite que, estatisticamente, não existe. Mantemos, então, os 35%. Assim, estamos falando de 5,43 milhões de bezerros alimentados.
Ainda, o trabalho verificou que 87% do consumo destes bezerros é composto de leite de vaca, seja leite que iria para o mercado, leite descarte (mas que foi produzido e ordenhado) e leite de transição. O restante, 13%, representam os sucedâneos. Assim, chegamos a 4,7 milhões de bezerras alimentadas com leite por ano. É evidente que o número real não é esse, mas entendemos que esse número é defensável, considerando as premissas adotadas.
Resta saber, então, quantos litros de leite diários essas bezerras tomam, e por quanto tempo. O mesmo trabalho aponta que 41% dos rebanhos utiliza o equivalente a 4 litros/dia ou menos até os 30 dias (valor que sobe para 58% após esse período), de forma que 4 litros diários nos parece uma boa estimativa.
Já para o período de aleitamento, vamos considerar 90 dias. Por fim, consideremos ainda que a taxa de mortalidade nos primeiros 90 dias é de 8% e, para facilitar a análise, o período médio de vida desses bezerros será de 45 dias até o momento em que morrem. Desta forma, corrigiremos o valor total, reduzindo 4% o número de bezerros: (50/90)*8% = 4,512 milhões.
Assim, esses 4,512 milhões milhões de bezerros consumiriam 1,62 bilhão de litros de leite (4,512 x 4 litros x 90 dias). Ainda, precisamos fazer um último ajuste, já que essa quantidade de 1,62 bilhão foi feito com base em uma produção de 28,19 bilhões, o que não é a realidade já que adicionamos até agora mais 1,62 bilhão (e portanto teríamos mais partos e mais bezerros). Assim, façamos o seguinte cálculo: 1,62/28,19 = 5,75% do leite vai para bezerros. Desta forma, esses 1,62 bilhão de litros demandariam o equivalente a 1,6/(1-0,0575) = 1,72 bilhão – 1,60 bilhão = 120 milhões de litros a mais para esses bezerros. Assim, 1,60 bilhão + 120 milhões = 1,72 bilhão para bezerros ao ano, praticamente o mesmo valor dos queijos informais, e que não é consumido!
No total, temos então 5,12 bilhões de litros informais, assim distribuídos:
Desta forma, a produção brasileira em 2014 teria sido de 29,87 bilhões de litros ao invés de 35,17 bilhões. A informalidade seria de 17,1%, mas apenas 11,4% seriam consumidos e somente 10,0% efetivamente vendidos. É importante fazer a ressalva que, se colocarmos uma lupa nas várias regiões do país, certamente os dados variarão muito; falar em 10% de informalidade em alguns estados é algo fora da realidade, mas é preciso olhar a floresta antes de olhar cada árvore.
Principal implicação
A principal implicação destes números, caso estejam corretos ou próximos da realidade, é que nosso consumo seria significativamente menor do que os números com os quais temos trabalhado.
Para calcular o consumo diante destes números, , é necessário ainda subtrair o total do leite que vai para os bezerros. Assim, a produção total consumível pela população seria de 28,20 bilhões de litros.
Refazendo a tabela inicial, teríamos:
Evidentemente, os números relativos ao consumo per capita para trás também estariam errados (Gráfico 2). Porém, se considerarmos que a informalidade era maior no passado, faz sentido inferir que o erro era menor, isto é, levando em conta que o consumo por pessoa em 2001, por exemplo, de acordo com a análise acima, seria menor do que os dados oficiais, é pouco provável que tivesse uma diferença de 20% como agora. Isso significa que, muito provavelmente, nosso consumo per capita cresceu menos do que estimamos, ficando esta análise para uma próxima oportunidade.
Gráfico 2. Consumo per capita a partir dos dados oficiais e do fluxo de importações e exportações. Fonte: MilkPoint Inteligência.
Como consequência positiva dessa análise, tem-se o fato de que, analisando o mercado potencial futuro, este é bem maior do que hoje estimamos. Supondo por exemplo uma meta de 200 kg/pessoa/ano e a população atual, teríamos um potencial de expansão de 12,24 bilhões de litros de consumo anual (e não 5 bilhões, como se consideraria a partir de dados oficiais), sem considerar um crescimento populacional, de cerca de 0,9% ao ano.
É evidente que essa análise parte de uma série de premissas, logicamente passíveis de crítica. Mesmo assim, nos parece que eventuais ajustes não mudariam a conclusão de que nosso consumo é menor do que o estimado. Significativamente menor, diga-se de passagem.
Pós-artigo: revisitando o início do MilkPoint...
A real quantificação do mercado informal tem sido motivo de discussões há muito tempo. Nos primórdios do MilkPoint, tivemos um interessante debate de ideias entre os Professores Sebastião Teixeira Gomes, Elizabeth Farina e Luis Fernando Laranja da Fonseca. Na ocasião, o Prof. Sebastião levantou a polêmica de que o mercado informal não passava de 15% do total, ante os 40% estimados oficialmente. Já o grupo do Pensa/USP, do qual faziam parte a Profa. Beth e os pesquisadores André Meloni Nassar (hoje secretário de política agrícola do MAPA), Marcos Jank (hoje na BRF) e Fátima Ribeiro, questionaram a metodologia do professor Sebastião, apontando que o número correto seria 28%, ainda assim abaixo dos 42% oficiais.
Aqui, alguns artigos dessa discussão, da época em que havia, paradoxalmente, um maior debate de ideias do que hoje no leite brasileiro:
Leite clandestino: um problema real!, Elizabeth Farina, Marcos Jank, André Nassar e Fátima Ribeiro
O outro lado do leite clandestino, Sebastião Teixeira Gomes
Mais um dedo de prosa sobre o leite informal, Luis Fernando Laranja da Fonseca