O estudo do funcionamento de sistemas nos permite perceber padrões de comportamento que tendem a se repetir. Embora minha atenção se concentre em mecanismos da porteira para dentro, fatores externos, como os de mercado, determinam boa parte do sucesso do que se faz na propriedade e não podem passar despercebidos. Na época da regulamentação dos preços, o produtor reclamava do governo e pouco fazia para melhorar sua eficiência. Em parte, isso explica nossa baixa produtividade e qualidade do leite em termos mundiais. Na configuração político-econômica que o mundo adotou, a qual nós nos juntamos, tais reclamações não fazem mais sentido.
Assim, a menos que as regras sejam novamente mudadas e que sigamos um caminho totalmente diferente de nossos competidores no leite, defendo que há dois desafios à frente para o produtor: (a) melhorar constantemente sua eficiência técnica e econômica e (b) entender o funcionamento do mercado para que possa tomar decisões certas na hora certa.
Na verdade, a compreensão do mercado interessa a todos os elos da cadeia, pois muitos investiram na atividade em 2007, sendo que o mercado internacional estava por despencar em 2008. Quantos produtores fizeram isso pagando preços exorbitantes por novilhas e depois tiveram que vendê-las pela metade do preço? Por sorte, os efeitos foram bastante atenuados no Brasil por questões internas, mas lá fora muita gente quebrou.
Será que foi pela crise financeira mundial que o mercado internacional caiu? Os dados que apresentarei neste artigo, e no próximo em mais detalhes, indicam que não, pelo menos não diretamente. Por mais de 24 anos, um poderoso e complexo ciclo de preços tem operado no mercado internacional dos lácteos e, até então, o mundo o desconhece. Talvez não o tenhamos notado antes, nem no Brasil nem em lugar algum, porque quando olhamos para trás, costumamos considerar apenas o passado próximo. Assim, normalmente, o comportamento de preços é analisado através de gráficos do tipo da Figura 1.
Figura 1. Exemplo de como o comportamento de preços é normalmente analisado, com os anos sobrepostos. Aqui, o índice ANZ de preços das commodities lácteas para os anos de 2005 a 2009.
No entanto, se a mesma série é disposta de forma completa, com seus 24 anos de dados, uma nova dimensão se revela (Figura 2). Percebe-se um pico histórico em setembro de 2007, extremos entre altas e baixas aumentando (volatilidade crescente), fundos se elevando com o passar do tempo e, particularmente, um padrão oscilatório regular com ondas se repetindo a cada três anos. Estas informações não estão evidentes na Figura 1.
Figura 2. Índice ANZ de preços das commodities lácteas de janeiro de 1986 a dezembro de 2009 (deriva-se de uma cesta com as principais commodities lácteas comercializadas no mercado internacional, publicado mensalmente pelo Australian New Zealand Banking Group Ltd.).
O padrão chama tanto a atenção que se parece com as oscilações sazonais de produção e preço ao produtor que temos em nosso mercado doméstico, mas elas não podem ser confundidas. Aqui são preços de commodities lácteas no mercado internacional e suas oscilações se dão em intervalo muito maior.
Percebi este padrão no início de 2008, quando os preços lá fora começavam a cair. Acreditava-se, ainda naquele momento, em um novo patamar de preços que havia se estabelecido. O mundo inteiro parecia acreditar na continuidade, não em queda de preços. No início de outubro de 2008 emiti a seguinte previsão direcionada aos cerca de 150 técnicos das cooperativas associadas à CCGL: "os preços das commodities lácteas deverão cair até abril de 2009 para se recuperarem a partir de junho, sendo que o leite em pó integral (LPI) deverá atingir um fundo entre US$ 2.100 e US$ 1.900/t, FOB Oceania" (o LPI estava a US$ 3.700 naquele momento). "Deste ponto os preços deverão se dirigir a um novo pico". Este cenário parecia impossível. Hoje sabemos que os preços realmente caíram, que o LPI atingiu US$ 1.700/t (FOB Oceania) e que a recuperação começou dois meses mais tarde do que esta previsão apontava.
Na época, utilizei um método conhecido como análise técnica, também chamada de análise gráfica, desenvolvido por analistas de mercado para o estudo do comportamento de preços no mercado financeiro. Embora consistente, é sujeita a muitas críticas por sua natureza empírica e por depender de certas premissas duvidosas. Tampouco ajudava a responder questões como: Será que há mesmo um ciclo operando? Como é que se forma e de onde ele vem? Por que a onda de 2004/2005 não se formou?
Mais recentemente, empregando um método científico conhecido como análise da tranformada wavelet, novas e intrigantes informações foram reveladas. Explicarei mais detalhes do método num artigo que deverá dar continuidade a este. Por ora, imaginemos que o índice de preços (Figura 2) é uma música produzida por uma orquestra sinfônica. A transformada wavelet decompõe esta música em sons vindos de seus vários instrumentos e os dispõe graficamente em ondas separadas (wavelets, ou ondas componentes do sinal original).
A análise produziu sete forças componentes, com períodos entre 3 e 286 meses. Para facilitar a visualização e interpretação, agrupei as ondas em curtas, médias e longas, como se analisássemos a orquestra por grupos de instrumentos: cordas, sopro e percussão. Estes três grupos de ondas são mostrados na Figura 3.
Figura 3. Índice ANZ de preços das commodities lácteas de janeiro de 1986 a dezembro de 2009 decomposto pela transformada wavelet e agrupados em três segmentos.
As ondas oscilam em torno de zero (em desvios padrão da média da série), contribuindo para o aumento ou diminuição do índice de preços. A soma de todos os grupos de ondas determina o movimento final do índice (Figura 2).
O grupo de ondas curtas (linha preta da Figura 3) deriva-se do padrão serrilhado de curta duração visto na Figura 2, se repetindo, em média, a cada 4 meses. O grupo de ondas médias (linha vermelha) são as forças que determinam o padrão mais marcante de ondas da Figura 2. Elas completam um ciclo, em média, a cada 36 meses (3 anos). Por fim, o grupo de ondas longas (linha azul) advém das forças que têm determinado a tendência geral altista no longo prazo, com oscilação média de 96 meses (8 anos), em seu efeito conjunto.
O fenômeno que se revela acima adiciona uma nova dimensão ao sistema como um todo. Quanto mais o Brasil intensificar o fluxo de importações e exportações e menos interferir artificialmente neste processo, mais importante será este comportamento dos preços internacionais dos lácteos para o nosso mercado interno. Com esta nova luz que se nos surge, o horizonte tende a se tornar mais previsível. É o que veremos no próximo artigo, quando relacionaremos estas forças a coisas concretas como sazonalidades de produção, ciclo de formação de uma vaca, políticas econômicas, taxa de câmbio etc. Veremos que o comportamento das commodities lácteas é, na essência, muito mais regular que o fenômeno El Niño.
Com melhor conhecimento deste complexo sistema, que é o mercado mundial de lácteos, teremos como nos proteger nos momentos adversos e como melhor aproveitar os momentos favoráveis (produtores, processadores, consumidores, fornecedores, enfim, todos os elos da cadeia). Quanto mais previsível se tornar o mercado, mais seguro será para todos.
Leia a continuação deste artigo (Compreendendo o ciclo do leite no mercado internacional)
Wagner Brod Beskow Mestrado e Doutorado pela Massey University (NZ). Foi professor universitário, pesquisador, diretor de unidade e diretor regional em universidade; ex-diretor de estação de pesquisa agropecuária; 20 anos atuando diretamente com produtores.