A cana-de-açúcar é um volumoso amplamente utilizado na produção de leite no Brasil, principalmente na época seca do ano, quando ocorre sua maior disponibilidade e a utilização de pastagens é limitada. Dentre as vantagens da cana-de-açúcar para alimentação animal, destacam-se a alta produção de matéria seca por área, que resulta em custo de produção reduzido; o alto valor energético decorrente da elevada concentração de açúcares; e a disponibilidade constante durante o período de escassez de alimentos (época seca). Por outro lado, a cana apresenta também algumas desvantagens nutricionais, como fibra de baixa digestibilidade e teor de proteína bruta muito reduzido. Além disso, quando ensilada, a cana-de-açúcar sofre processo de fermentação alcoólica realizado por leveduras, o que acarreta perdas elevadas de matéria seca.
Grande parte das desvantagens envolvendo a cana-de-açúcar já foi contornada, seja com resultados de pesquisas ou por experiência prática de utilização do volumoso (confira a o Radar Técnico de Conservação de Forragens para ler diversos artigos sobre cana-de-açúcar). Um exemplo disso é a suplementação com ureia e outros ingredientes proteicos para corrigir o desbalanço entre proteína e energia da cana. A ensilagem de cana-de-açúcar vem recebendo muita atenção recentemente e o uso de aditivos tem minimizado o problema de fermentação alcoólica no silo. A aplicação desse conhecimento permite que a cana-de-açúcar seja utilizada com sucesso em sistemas de produção de leite, principalmente como alternativa de volumoso para época das secas em exploração intensiva de pastagens.
Entretanto, quando a cana é oferecida para vacas com produções de leite mais elevadas, outro fator limita sua utilização. Como mencionado anteriormente, a fibra da cana é degradada lentamente no rúmen, o que reduz a taxa de passagem (o material tem que ficar mais tempo no rúmen até que atinja o ponto necessário para seguir pelo trato digestório), criando efeito de enchimento que reduz o consumo de matéria seca e, consequentemente, de energia. Dessa forma, as vacas podem apresentar queda na produção de leite devido ao menor consumo de energia em dietas com cana-de-açúcar e alta participação de volumoso na dieta. Essa situação foi observada em um experimento publicado em 2010 (Pires et al., 2010), no qual silagem de milho foi substituída por cana-de-açúcar fresca em dieta com 50% de forragem. Quando mais da metade da silagem foi substituída pela cana, ocorreu redução de consumo e produção, mesmo com vacas produzindo apenas 13 a 18 L/dia. Situações como essa ajudaram a criar uma cultura de que cana-de-açúcar só é recomendada para vacas de baixa produção.
No entanto, existem estratégias para se utilizar a cana para vacas confinadas com produções mais elevadas. Uma alternativa interessante é a de reduzir a participação da forragem da dieta para que o efeito de enchimento seja diminuído. Associado a isso, deve-se escolher ingredientes para balancear a dieta que melhor complementem a cana. Nesse cenário, o caroço de algodão se destaca como boa opção por diversos motivos. O caroço de algodão é uma semente oleaginosa, “subproduto” do beneficiamento do algodão em caroço para extração da fibra de algodão. Embora grande parte do caroço seja prensado para produção de óleo, seu uso na alimentação de ruminantes na forma integral é bastante expressivo. O caroço de algodão é um alimento único, pois fornece simultaneamente energia, proteína, fibra e fósforo em concentrações elevadas, constituindo-se numa excelente opção para dietas de animais de alta produção.
Outra característica interessante do caroço é que sua fração fibrosa (FDN), que apresenta alta efetividade. Maior efetividade de fibra requer mais mastigação e resulta em maior produção de saliva que, por sua vez, promove melhora do ambiente ruminal, essencial para evitar queda do teor de gordura do leite, principalmente em dietas com alta densidade energética. A maior parte da energia do caroço é oriunda de lipídios, em sua maioria insaturados, que são tóxicos aos microorganismos do rúmen e podem reduzir a degradação de fibra. No entanto, esse efeito parece ser minimizado no caroço de algodão pelo fato da gordura estar “naturalmente protegida” dentro do grão, coberto pela fração fibrosa, que requer ruminação para que a gordura seja liberada. Isso faz com que os ácidos graxos insaturados sejam liberados no ambiente ruminal de forma gradual, permitindo que os microorganismos realizem biohidrogenação, processo que transforma os ácidos graxos insaturados em saturados, que não são tóxicos aos microorganismos.
Alguns estudos já foram realizados no passado avaliando a suplementação de caroço de algodão em dietas a base de cana-de-açúcar. Um experimento realizado na Esalq (Martinez, 2008) suplementou níveis crescentes de caroço de algodão (0, 17 e 34% MS) para vacas de média produção (16 L/d) recebendo dietas com 63% de cana-de-açúcar fresca. O caroço foi adicionado em substituição à polpa cítrica, milho, farelo de algodão e uréia. O consumo de alimentos, a produção de leite e sólidos foram mantidos até o nível de inclusão de 17% e sofreram redução quando o caroço ocupou 34% da MS da dieta. Vale ressaltar que a inclusão de volumoso na dieta desse experimento era bastante elevada (63%), o que já atua como limitador do consumo de matéria seca.
Outro experimento realizado a mais tempo (Ludovico e Mattos, 1997) utilizou vacas secas (que consomem menor quantidade de alimentos) para estudar o efeito do caroço de algodão no consumo e parâmetros ruminais em dietas com 66% de cana-de-açúcar. Doses crescentes de caroço foram testadas (0, 10, 20 e 30% MS) e os autores observaram que a inclusão de 10% de possibilitou o máximo consumo de matéria seca e aumento na taxa de passagem. Além disso, o número de protozoários no fluido ruminal foi reduzido linearmente conforme caroço de algodão foi adicionado a dieta.
Baseado nesse cenário, o grupo de pesquisa em Qualidade e Conservação de Forragens, da Esalq/USP realizou um estudo recente (Morais et al., 2013) para testar a combinação: caroço de algodão e silagem de cana-de-açúcar, sendo esta a única fonte volumosa da dieta. Para balancear a dieta de modo a atender as demandas nutricionais dessas vacas, a relação volumoso:concentrado foi 37:63. Com base no que foi visto no trabalho de Ludovico e Mattos (1997), incluir gordura na forma de caroço de algodão poderia melhorar o consumo de MS por aumentar a taxa de passagem, que é um problema com a baixa digestibilidade da fibra da cana, além de aumentar a eficiência energética das dietas por reduzir os protozoários e assim diminuir a produção de metano.
Dessa forma, a dieta controle continha, além da cana, milho moído, farelo de soja, polpa cítrica e farelo de agodão. Na dieta teste, o caroço de algodão foi incluído no nível de 10% da MS, em substituição ao farelo de algodão e à polpa cítrica. As vacas utilizadas no experimento foram selecionadas de modo a abranger uma faixa de produção de leite, já que o segundo objetivo do estudo era avaliar se as respostas ao caroço de algodão seriam afetadas pela demanda nutricional (decorrente da maior ou menor produção de leite) dos animais. A hipótese era de que vacas com produção mais elevada fossem mais beneficiadas pela inclusão do caroço.
A tabela 1 apresenta alguns dos resultados preliminares do experimento. A inclusão de 10% de caroço de algodão na MS da dieta não aumentou o consumo de alimentos como ocorreu com as vacas secas no experimento de Ludovico e Mattos. Muito pelo contrário, o consumo foi significativamente reduzido. No entanto, a produção de leite e de leite corrigido para 3.5% de gordura foram aumentadas, resultando em maior eficiência alimentar. Como pode ser visto na última linha da tabela, a dieta com caroço resultou em maior excreção de energia no leite por quilo de alimento ingerido, o que significa que menos energia foi perdida em outros processos, como mantença, produção de calor, urina e fezes. Esse dado concorda com a hipótese inicial de que o caroço de algodão reduziria as perdas energéticas por diminuir a população de protozoários no rúmen e a produção de metano. No entanto, essa é uma conclusão especulativa, uma vez que não foi feita a contagem de protozoários neste experimento.
Tabela 1. Desempenho de vacas em lactação alimentadas com caroço de algodão
Outro dado muito interessante é o aumento na produção (significativo) e no teor (numérico) de gordura no leite com inclusão de caroço de algodão. As pesquisas sugerem que o efeito do caroço de algodão na gordura do leite é dependente do volumoso principal da dieta. Geralmente se observa redução do teor de gordura quando o volumoso principal é silagem de milho, enquanto ocorre aumento quando a dieta contém silagem de alfafa como volumoso. No caso da cana de açúcar, este experimento mostrou resultados positivos do caroço na gordura do leite. De fato, se observarmos os dados de comportamento ingestivo na tabela 2, podemos perceber que a dieta com caroço de algodão induziu maior tempo de mastigação por quilo de alimento ingerido e maior tempo de ruminação do que a dieta controle. Isso aumenta a produção de saliva, que auxilia na manutenção de ambiente ruminal favorável para produção de gordura no leite.
Tabela 2. Comportamento ingestivo de vacas em lactação alimentadas com caroço de algodão
Por fim, o segundo objetivo do trabalho era estudar a interação entre a resposta das vacas ao caroço de algodão e o nível de produção. Curiosamente, todas as vacas responderam à inclusão do caroço, independente do nível de produção e demanda energética. A resposta de leite corrigido para gordura (eixo Y) plotada contra consumo de MS no início do experimento (eixo X) está apresentada na figura 1. É possível observar que os pontos estão distribuídos aleatoriamente pelo gráfico, não seguindo nenhum comportamento linear ou quadrático.
Figura 1. Relação entre CMS no início do experimento e a resposta de leite corrigido para 3.5% de gordura à inclusão de caroço de algodão na dieta controle.
Esse experimento nos mostrou que é possível sim utilizar cana de açúcar com sucesso para vacas de maior produção; que o caroço de algodão é uma excelente opção de suplementação para a cana, aumentando o desempenho e a eficiência alimentar das vacas; e que o efeito positivo do caroço foi independente do nível de produção das vacas. Dessa forma, o caroço é uma opção muito interessante principalmente para propriedades no centro-oeste do Brasil, onde concentra-se a produção de algodão.
Referências
Pires et al., 2010. Substituição de silagem de milho por cana-de-açúcar e caroço de algodão sobre o desempenho de vacas holandesas em lactação. Ci. Anim. Bras., Goiânia, v. 11, n. 2, p. 251-257.
Martinez, J.C. 2008. Avaliação de co-produtos na alimentação de vacas leiteiras mantidas em pastagens tropicais durante a estação chuvosa e alimentadas no cocho durante a estação seca do ano. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. Disponível em www.teses.usp.br.
Ludovico, A. e Mattos, W. R. S. 1997. Avaliação de dietas à base de cana-de-açúcar e diferentes níveis de semente de algodão. R. Bras. Zootec., v. 26, n. 2, p. 403-410.
Morais et al., 2013. Whole cottonseed does not interact with nutrient demand to improve performance of dairy cows fed sugarcane silage. Resumo apresentado na 50ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Zootecnia, Campinas.