Marcos Veiga dos Santos
Em recente artigo publicado pelo Prof. Laranja (O estranho caso do soro de leite - 02/03/01), foram levantados questionamentos sobre o intrigante aumento das importações de soro de queijo, as quais significaram um incremento de cerca de 40% em relação ao ano anterior. As respostas para as questões da destinação do soro de queijo, abordadas no artigo, não foram ainda respondidas completamente, mas vamos abordar neste radar um trabalho de pesquisa que pode trazer mais elementos para a discussão.
Um estudo realizado na Universidade de Brasília (UnB) traz algumas contribuições para detectar fraudes pela adição de soro de queijo em bebidas lácteas distribuídas pelos programas governamentais de merenda escolar. Devido aos preços reduzidos do soro de queijo em relação aos do leite e pelo fato destas bebidas apresentarem uma série de ingredientes que dificultam a detecção de fraudes, as bebidas lácteas são um dos principais alvos deste tipo de adulterações.
Para melhor compreendermos como este tipo de fraude pode ser detectada é importante conhecermos um pouco mais sobre as proteínas do leite. No leite bovino são encontradas duas classes principais de proteínas: as caseínas (também chamadas de proteínas verdadeiras do leite) e as proteínas do soro. O grupo das caseínas representa cerca de 80% do total das proteínas, enquanto as proteínas do soro, as quais estão incluídas neste grupo a lactoalbumina, a lactoglobulina, a lactoferrina e as imunoglobulinas, perfazem os 20% restantes. Desta forma, esta relação entre caseína (80%) e proteínas do soro (20%) deve ser mantida no leite, caso não haja adição de proteínas do soro na sua formulação. Naqueles produtos nos quais esta relação está alterada pode-se dizer que existem fortes indícios de fraude.
Embora as proteínas do soro tenham valor nutricional semelhante ao das caseínas, a substituição do leite por soro precisa ser descrita com clareza no rótulo, para que o consumidor não "consuma gato por lebre", uma vez que o preço final do produto com substituição será bem menor, dependendo da porcentagem de inclusão de soro.
De forma geral, os métodos de análise de proteína apenas determinam a concentração total e não distingue deste valor qual a relação entre caseína e proteínas do soro. No entanto, os pesquisadores da UnB, utilizando uma técnica denominada de eletroforese em gel, a qual separa as proteínas pelo seu tamanho, peso e outras características, foram capazes de analisar a relação entre caseína:proteína do soro em um total de 58 amostras de bebidas lácteas distribuídas na merenda escolar. Considerou-se como adulterada as bebidas lácteas com concentração de proteínas do soro maior que 28% da proteína total.
Os resultados do estudo revelaram que 49% das amostras de bebidas lácteas com sabor café e 29% das bebidas com sabor de chocolate encontraram-se adulteradas com a adição de soro sem a correta discriminação com o rótulo. O leitor mais atento pode estar se perguntando o seguinte: se a inclusão de soro não interfere no valor nutricional e em outras características, qual o problema em incluir este ingrediente na formulação de bebida lácteas destinadas a merenda escolar? A resposta é simples. A substituição em si não é o problema central, desde que seja provado que esta alteração não traz prejuízos para a função nutricional da merenda escolar. No entanto, como esta substituição não é descrita no rótulo, a empresa pode aumentar a sua margem de lucro, pois com a adição de soro, ocorre diminuição dos custos, sem a conseqüente diminuição do preço final, visto que o preço da tonelada de soro em pó importado é menos da metade do preço do leite em pó.
A questão central é que, se é possível reduzir o custo sem alterar a qualidade, estes produtos podem ser vendidos a um preço menor e assim, a diferença de recursos que seriam gastos pelo governo poderiam ser investidos em maior disponibilidade de merenda escolar a ser distribuída. Paralelamente, como a substituição não é revelada, e pode-se supor que seja feita com produto importado a preços subsidiados na origem, esta prática é bastante maléfica à competitividade e à estrutura de preços do leite ao produtor.
Vale a pena ainda lembrar que este tipo de fraude pode ocorrer em outros produtos como o leite fluido, com objetivos claros de diminuir os custos da matéria-prima e/ou aumentar as margens de lucro. Seria extremamente salutar que trabalhos de pesquisa similares a este fossem realizados com leites fluidos e leite em pó encontrados no mercado a preços muito baixos, para tentarmos esclarecer as dúvidas que ainda pairam sobre o soro de queijo.
Fonte: Cienc. Tecnol. Aliment. Campinas, 20(3):314-317, 2000.